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GRITO DE GOL NO SAMBÓDROMO

1 / março / 2017

por André Felipe de Lima


(Foto: Reprodução)

Tudo (ou quase tudo) começou com aquele célebre desfile do Salgueiro em 1971, com o samba-enredo “Festa para um rei negro”, que levantou o público na Avenida Presidente Vargas, local em que eram realizados os desfiles das escolas de samba antes da transferência da festa de Momo para a antiga Marques de Sapucaí, hoje mais conhecida pela alcunha de “Sambódromo”. O Salgueiro estava verdadeiramente espetacular. Um desfile revolucionário comandado pelo genial Arlindo Rodrigues, com a pincelada memorável de Maria Augusta, que buscou nas histórias de príncipes africanos que chegaram ao Brasil no período escravocrata a essência ideal para um enredo que apresentaria ao Carnaval carioca nomes que se tornariam lendas no universo do samba, como Joãosinho Trinta, Lícia Lacerda e Rosa Magalhães. Uma equipe de craques carnavalescos sob os cuidados do grande Fernando Pamplona.


Desfile do Salgueiro em 1971 (Foto: acervo O Globo)

O refrão salgueirense “O-lê-lê, ô-lá-lá / Pega no ganzê / Pega no ganzá” era entoado em uníssono. Um Carnaval de sonhos em vermelho e branco. Legal. Mas aí vem a pergunta dos leitores: mas o que, afinal, esse samba do Salgueiro tem a ver com futebol? Simplesmente tudo!

A partir daquele Carnaval, a arquibancada do Maracanã incorporou de vez o samba-enredo em dias de jogos. Felizes da vida torcidas do América, Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco cantavam o samba salgueirense após gols ou vitórias de seus times. “Gol do Zico” e da geral e da arquibancada se ouvia imediatamente: “O-lê-lê, ô-lá-lá / Pega no ganzê / Pega no ganzá”. O mesmo se ouvia após os gols do Rivellino, do Jorginho Carvoeiro, do Edu Coimbra, do Paulo Cezar Caju, para sermos democráticos.


Desfile do Salgueiro (Foto: Rubens Seixas/O Globo)

Opa, mas e “Touradas em Madri”, marchinha cantada por Braguinha, que se ouviu durante a Copa do Mundo de 1950? Muitos questionarão, até com alguma dose de razão. Ali não teria sido, talvez, a primeira incursão do samba na arquibancada? Sim, justo. Mas no quesito samba-enredo, a nota “10” original ficou com o Salgueiro, em 1971.

VEJA O VÍDEO COM O SAMBA-ENREDO E IMAGENS DO DESFILE DO SALGUEIRO DE 1971: http://globotv.globo.com/rede-globo/carnaval-historico/v/salgueiro-sagra-se-campea-em-1971-com-festa-para-um-rei-negro/1196532/

Quando o assunto é “torcida”, logo vem à mente as marcas “Flamengo”, no futebol, e “Mangueira”, no samba. Falar em Flamengo é falar em massa. Falar em Mangueira, idem. Mas nem todo rubro-negro é verde e rosa, ou vice-versa. Escolas de samba e times populares nem sempre têm correlação em nossos corações. Eu, por exemplo, sou publicamente vascaíno e portelense, igualzinho ao meu ídolo Paulinho da Viola. Já o meu ídolo no futebol, Ademir Marques de Menezes, o “Queixada”, talvez sequer curtisse escolas de samba. Uma suposição arriscada que somente após uma vigorosa investigação biográfica poderia ser confirmada. Mas arrisco-me nesta pretensiosa tese inicial para o papo poder prosseguir.

No Rio de Janeiro, as escolas de samba — desde que emergiram no final dos anos de 1920 — assumiram um caminho independente ao do futebol, embora, em alguns (poucos) desfiles, reverenciando o esporte bretão ao longo de oito décadas. Ao contrário de São Paulo, que desde o surgimento de suas primeiras agremiações de samba, na década de 1930, viu a popularidade do futebol na cidade como um democrático e inclusivo estimulador carnavalesco.

Em 1933, a Frente Negra Brasileira criou a Taça “Arthur Friendenreich” — maior ídolo do futebol nos primeiros 30 anos do século XX — com o intuito de alavancar os cordões e ranchos de samba da cidade, fundamentalmente os de raízes africanas, que já existiam desde as primeiras décadas. Naqueles primeiros momentos da Taça “Friedenreich”, destacavam-se Vai-Vai, Cordão das Bahianas, Bloco Mocidade, Cordão da Barra Funda e Bloco do Boi.

Uma escola de samba propriamente dita na capital paulista só nasceria em 1935, com o surgimento da Primeira de São Paulo. Somente na década de 1990 o futebol volta a ocupar importante espaço no carnaval paulistano com a Grêmio Recreativo Cultural e Escola de Samba Gaviões da Fiel Torcida, uma agremiação formada por integrantes da maior torcida organizada do Corinthians. Em seguida, o maior rival do alvinegro nos gramados, o Palmeiras, também se viu representado na passarela do samba pela Mancha Verde, a maior facção de torcedores do alviverde. O carnaval de São Paulo não seria o mesmo após o ingresso de torcidas organizadas nos desfiles de escolas de samba. No Rio, como destaquei, ocorre o oposto.

Sempre houve reverência das escolas de samba ao futebol e a algumas de suas principais personagens, sejam clubes ou ídolos. Mas jamais houve uma tentativa franca das torcidas organizadas cariocas de criarem suas versões para a Marquês de Sapucaí, substituindo a bola e as chuteiras por pandeiros, tamborins e lantejoulas. Talvez apenas uma torcida dita organizada tenha cogitado tal possibilidade: a Raça Rubro-Negra. Mas a ideia não passou (literalmente) de um sonho de verão. E por falar em Flamengo, o clube mais popular é o que mais recebeu homenagens dos carnavalescos e sambistas cariocas até aqui.

Como esquecer do grande carnaval da Estácio de Sá em 1995, ano do centenário do Clube de Regatas Flamengo? O refrão impregnou o dia a dia na cidade: “Cobra coral/ Papagaio vintém/ Vesti rubro-negro/ Não tem pra ninguém”.

A escola de samba amargou, no entanto, um frustrante sétimo lugar, mas foi ovacionada pelo público. Nem todos torciam pela Estácio, mas, em comum, a paixão pelo Flamengo. Porém vascaínos, tricolores e botafoguenses também cantarolaram o samba-enredo composto por David Correa, Adilson Torres, Déo e Caruso. Ou seja, o samba estava acima do bem ou do mal. Há, no Rio, uma nítida separação de paixões. A clubística não interfere na sambista e por aí vai.

Semanas antes do desfile, a diretoria da Estácio de Sá aguardava um apoio prometido pelo então presidente do Flamengo, Kleber Leite, que recuou da oferta inicial e preferiu não mais misturar as coisas. Clube de futebol em um canto, escola de samba em outro. Cada um no seu papel social de alegrar as massas. Afinal, o Flamengo, no mês anterior ao Carnaval, investira os tubos para trazer Romário, maior ídolo mundial na ocasião. Desculpa melhor para não liberar a a grana para a Estácio impossível: “cofre liso, completamente vazio”.

Mas haveria uma resposta do maior rival do Flamengo. Em 1998, ano do centenário do Clube de Regatas Vasco da Gama, a escola de samba Unidos da Tijuca, cujo presidente “eterno”, o português e vascaíno Fernando Horta, teve como missão sair-se melhor que a Estácio em 95. Questão de honra que o então mandachuva do Vasco, Eurico Miranda, compartilhou. O Clássico dos Milhões saiu do Maracanã para o Sambódromo. Apesar do bom samba-enredo “De Gama a Vasco, a Epopéia da Tijuca” — até hoje cantado pela torcida nas arquibancadas —, o desfile da Unidos da Tijuca foi um fiasco, com a agremiação carnavalesca sendo rebaixada para o grupo de acesso. As piadas foram intermináveis, e aí incluídos tricolores e alvinegros a engrossarem o coro dos rubro-negros gozadores. De consolo para o Vasco, o título da Taça Libertadores da América e do Campeonato Carioca daquele ano. No gramado o Vasco estava quase imbatível. Já na passarela…

Maior campeã do Carnaval carioca das últimas décadas, a Beija-Flor de Nilópolis também já reverenciou o futebol. Isso aconteceu em 1986, ano em que a Argentina conquistou a segunda Copa do Mundo na história e a azul e branco despontou na avenida com o samba-enredo “O mundo é uma bola”. Foi, sem dúvida, o mais cantado naquele carnaval. Na voz de Neguinho da Beija-Flor, o refrão levantou a moçada na Sapucaí: “É milenar/ a invenção do futebol / fez o artista / ter um sonho triunfal”. Ao contrário da Estácio e da Unidos da Tijuca, a Beija-Flor saiu-se melhor, ficando em segundo lugar no desfile, atrás apenas da Mangueira, que rendeu homenagens ao Dorival Caymmi, com o enredo “Caymmi mostra ao mundo o que a Bahia e a Mangueira têm”.

Dois anos após o grande carnaval futebolístico da Beija-Flor, foi a vez de a União da Ilha do Governador, reconhecidamente uma das escolas de samba que mais empolgam o público nos desfiles, embarcar na onda da bola.

O enredo em homenagem a Ary Barroso, radialista, compositor e (sobre tudo e todos) rubro-negro desde aquele minuto antes do nada, fez o Sambódromo transformar-se em uma arquibancada do Flamengo, com destaque para a veterana e pioneira da genitália desnuda Enoli Lara como rainha da bateria e Renato Gaúcho no auge (digamos, em vários gramados). Ambos roubaram a cena juntos. Enoli, muito tempo depois, narrou detalhes do casal de foliões na passarela e… na cama. Mas o papo aqui é samba e “Aquarilha do Brasil” reproduziu com extrema competência uma das facetas mais populares de Ary Barroso durante as transmissões de rádio: sua eloqüente paixão pelo clube da Gávea. Quando saía gol do Mengão, o locutor levava à boca a sua famosa gaitinha e a tocava de forma ensurdecedora. O refrão da União da Ilha marcou época: “A gaitinha tocando/ É gol /a galera vibrando, Mengo!”.

O futebol somente voltaria a atrair a atenção de alguma escola de samba do Rio em 2002, quando a Unidos de Vila Isabel levou à passarela o enredo “O glorioso Nilton Santos… sua bola, sua vida, nossa Vila”. A escola pleiteava um retorno à divisão especial, contando com a “Enciclopédia” do futebol. Com o ídolo botafoguense Nilton Santos comandando o time no Sambódromo, a escola de samba ficou apenas um décimo atrás da Acadêmicos de Santa Cruz, a campeã. Por culpa de um jurado trapalhão, a Vila terminou fora da elite do Carnaval carioca no ano seguinte. O refrão do samba levantou, porém, a galera alvinegra: “Bate palma, bate-bola, bate junto bateria / Igualzinho ao Nilton Santos, toca com categoria / É o gingado da baiana, é futebol, samba no pé / A galera já delira, minha Vila ‘dando olé’”.

VEJA A REPORTAGEM DO ESPORTE ESPETACULAR SOBRE O CARNAVAL DO NILTON SANTOS: https://globoplay.globo.com/v/3179468/

O centenário do Fluminense, em 2002, por pouco não passou em branco na Sapucaí. Deixaram para homenagear o clube tricolor somente no carnaval do ano seguinte. Mesmo assim, uma lembrança que coube a Acadêmicos da Rocinha, que disputava o desfile no grupo de acesso A. Sem desmerecer a escola de samba da zona sul, o Fluminense merecia ser tema de enredo no grupo especial, como aconteceu com Flamengo e Vasco. Coube à Rocinha um 10º lugar, na frente apenas das rebaixadas Unidos da Ponte e Boi da Ilha. De bom naquele desfile somente o trepidante puxador Carlinhos de Pilares, morto em julho de 2005, uma das vozes mais empolgantes do carnaval carioca nas décadas de 1980 e de 90.

Dias após o tropeço da Rocinha, mas no desfile do grupo especial, a Tradição pegou carona no pentacampeonato mundial do Brasil, em 2002. A estrela do desfile foi, naturalmente, o atacante Ronaldo, que foi, inclusive, o motivo do enredo “O Brasil é Penta, R é 9 – O Fenômeno Iluminado”. Mas a bola da Tradição sequer bateu na trave. Simplesmente foi zunida para além das arquibancadas do Sambódromo. Na noite do desfile, o próprio Ronaldo fez forfait. Estava doente e deixou a turma da Tradição na mão. A escola de samba teve, porém, alguma dose de sorte. Ficou em 13º lugar e se livrou do rebaixamento, que coube à Acadêmicos de Santa Cruz. Ronaldo, aliás, seria novamente lembrado para um enredo de escola de samba, mas não no carnaval carioca. Sua história foi baixar em outro terreiro… de samba.

Os paulistanos da Gaviões da Fiel levaram para a avenida, em 2014, uma reverência ao ídolo, que encerrara a carreira no Timão, em 2011. Ao contrário do que aconteceu com o desfile da Tradição, Ronaldo prestigiou a Gaviões e foi, com a família a tiracolo, se esbaldar na passarela.


Ronaldo no desfile da Gaviões (Foto: reprodução)

No mesmo ano em que os corintianos saudaram Ronaldo, a Imperatriz Leopoldinense fez o mesmo no carnaval carioca, mas com outro ídolo: Zico.

O enredo “Arthur X: O Reino do Galinho de Ouro na Corte da Imperatriz” levantou a Sapucaí e foi prestigiado por vários craques das antigas e de todos os clubes que foram à passarela do samba dar um forte abraço no Galinho de Quintino. Como esquecer aquela parte do refrão que diz “Zico faz mais um pra gente ver!”? Eu, vascaíno, reconheço, não gosto de lembrar, mas admito: Zico foi um cracaço incomparável! Eis aí o grande barato do universo das escolas de samba, justamente essa harmonia festiva sem as paixões doentias que tomaram conta de nossas arquibancadas.

O futebol e, principalmente, seus torcedores precisam aprender um pouco com o mundo do samba. No mais, Evoé Momo!… e muita bola na rede para a gente soltar o grito gol!

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Os editores tentaram identificar os autores das imagens, mas não obtiveram sucesso. Caso o autor se manifeste, teremos o imenso prazer de citá-lo.

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