DORES E AMORES DE UM CARIOLISTA
entrevista: Sergio Pugliese | texto: André Felipe de Lima | fotos e vídeo: Daniel Planel
Foram tortuosos 22 anos com o grito de campeão sufocado. A noite de 13 de outubro de 1977 determinara o ponto final da agonia. Corinthians 1, Ponte Preta, 0. Gol “santo” do Basílio. Mas há uma personagem que entrou para a história pelo lado mais polêmico e obscuro daquela final, talvez a mais emblemática em toda a história do Campeonato Paulista. O jogador em questão chama-se Ruy Rey, que, ao lado de Dicá, constituía-se na principal arma da Macaca para manter o Timão entregue a sua sina. Mas naquela noite Ruy Rey não era o Ruy Rey que todos conheciam, ou seja, o bem-humorado, o das comemorações cênicas, o do beijinho para a torcida. Ele gritava, esbravejava, erguia os braços a todo instante reclamando do apito do juiz Dulcídio Wanderlei Boschila. Parecia “pedir” um cartão amarelo. E foi o que aconteceu lá pelos 15 minutos do primeiro tempo. Ruy Rey meteu a mão na bola e prosseguiu a jogada. Boschila apitou, ele não ouviu. Quando se deu conta que o lance parara, reclamou. Chiou à beça. Boschila irritou-se. Todas as quase 100 mil pessoas naquele Morumbi estavam tensas, afinal. O juiz puxou o cartão vermelho. Ruy Rey expulso e a Ponte Preta refém daquela situação lastimável. Dali em diante, o Timão tomou conta do jogo. Era visível o nervosismo dos jogadores da Ponte. Havia raça, mas faltava luz, quesito que sobrava do outro lado. Deu Timão. Fim da espera. Quanto ao Ruy Rey, que marcara 19 gols pela Ponte na competição, um contrato o aguardava no Parque São Jorge. Seria, portanto, uma das mais polêmicas transferências em todos os tempos no futebol brasileiro.
Temendo pela integridade da família, Ruy Rey deixara Campinas. Partiu para o Rio de Janeiro e recusara até mesmo uma tentadora proposta do Toluca, do México. A turbulência era demais. Não teve cabeça para pensar em nada a não ser nas calúnias que desferiram contra ele. Soube da notícia do interesse do Timão quando visitava a Cruzada São Sebastião, no Leblon, comunidade onde crescera jogando peladas até parar na Gávea e ser incorporado à base do Flamengo. Abraçou o irmão Ronald e o amigo Sotero, e disse:
– Olha, a Cruzada é o meu mundo. Sou casado, tenho dois filhos, amarguei demais nesses últimos quatro meses. Comi o pão que o diabo amassou. Em alguns lugares, as pessoas me olhavam, me reconheciam, faziam um ar superior pra cima de mim. Eu não queria sair da Ponte, pelo menos da forma como estava saindo ou queriam me fazer sair. Os mexicanos do Toluca me dariam 700 mil de luvas, 40 mil mensais, durante dois anos. Com bichos e prêmios, eu ganharia quase dois milhões e meio. Seria quase uma independência financeira. Mas não topei. Se topasse, estaria passando recibo de que tinha me vendido. Seria uma fuga, um ato covarde. Resolvi ficar e provar, dentro do meu país, que toda a campanha que faziam contra mim era injusta. Os dirigentes ficaram surpresos. Como eu poderia recusar uma pequena fortuna como aquela? Minha consciência, porém, não ia ficar em paz. Tinha de provar na minha terra que tudo aquilo era uma tremenda injustiça. Fiquei sem saber o que dizer. Pô, o Corinthians querendo me contratar? Mas depois pensei: será que alguém contrataria uma pessoa que soubesse que tinha se vendido? Mas graças a Deus surgiu o Corinthians na minha vida: vou provar a todos que me acusaram o quanto estavam errados. Vai ser a minha forra.
Companheiro dele na Ponte Preta, o retíssimo volante Wanderley Paiva jamais desconfiara de Ruy Rey, mas disse revista Placar (em brilhante reportagem assinada pelos grandes Luiz Augusto Chabassus, José Roberto de Aquino e Roberto José da Silva) que a transferência do Ruy Rey para o Corinthians “pegou bem mal”. Treinador da Ponte naquela final, Zé Duarte reconheceu que a expulsão do Ruy Reu foi decisiva para o resultado final do jogo, mas também o defendeu das acusações:
– Não foi intencional a expulsão. Foi um acidente da partida, como costumamos dizer. Ele tinha sido lançado pelo alto e, como não poderia alcança-la, deu um leve toque com a mão. O Dulcídio apitou. Talvez o Ruy Rey não tenha ouvido, devido ao barulho daquela multidão toda. Só sei que, rapidamente, ele fez a volta e continuou jogando. O Ademir, então, fez a falta nele, mas a jogada não estava valendo mais nada. É, o Ruy foi afastado porque o clima em Campinas ficou violento.
Da Cruzada São Sebastião, Ruy Rey seguiu para São Paulo, bateu um papo com Vicente Matheus, que também sempre o defendeu das acusações, e assinou o propalado contrato.
Ruy Rey defendeu outros times após o Corinthians. Fez muitos gols e comemorou conquistas, mas, infelizmente, aquela noite de 17 de outubro de 1977 nunca o deixou em paz. Coube a ele, uma defesa que não parecia mais ter fim. Ergueu a cabeça, fez curso universitário, criou (e muito bem) os filhos, enfim, Ruy Rey tocou a vida. Não havia outra forma mais apropriada para deixar o passado de forma mais tranquila e no lugar dele. Na memória virtuosa e honesta. Pelo menos, para o Ruy Rey funcionara assim.