O PRIMEIRO PAREDÃO DO FLA
entrevista e texto: Marcello Pires | fotos: Rogério Resende | edição de vídeo: Daniel Planel
Quando sugeri o nome de Fernando Ferreira Botelho como personagem da minha estreia no Museu da Pelada, o amigo e idealizador do projeto Sergio Pugliese não titubeou e topou na hora. Também pudera, qual o torcedor brasileiro que não se interessaria em conhecer a história do primeiro goleiro profissional do Clube de Regatas do Flamengo. O mais curioso é que a ideia surgiu através de um tricolor como eu, o também jornalista Caio Barbosa, sem que ele sequer soubesse. Na ocasião, meu ex-parceiro de Lance e de copo questionou na sua página no Facebook como alguém nunca havia destrinchado a saga do ex-arqueiro rubro-negro que completou 104 anos no último dia 2 de março, um dia antes de seu ídolo Zico.
O clique veio na hora e pensei, “é verdade, vou fazer”. Na mesma hora liguei para outro parceiro, o neto do homem e ex-companheiro de GloboEsporte.com, Fabio Leme. Espécie de assessor do avô, Fabinho meu deu o sinal verde e ainda alimentou minha pauta com algumas dicas valiosas. Chegado o dia da entrevista, meu único receio era como abordar um senhor de 104 anos. Afinal, apesar dos meus 20 e poucos anos de estrada, nunca havia conversado com um esportista centenário.
Que bobagem! Bastou um singelo aperto de mão para perceber que Fernandinho estava em casa na Gávea, bem mais à vontade do que eu. Simpático, extremamente lúcido e dono de uma vitalidade de dar inveja a um “garoto” como eu, o primeiro camisa 1 do Flamengo caminhou até o gramado, se sentou ao lado do seu habitat natural, a baliza direito do estádio da Gávea, ignorou o sol de quase 30 graus que fazia no Rio de Janeiro e não deixou nenhuma pergunta sem resposta.
Irreverente, espontâneo e com tiradas que valiam um ingresso, Fernandinho nem viu o tempo passar. Com a mesma rapidez que foi obrigado a abreviar sua carreira precocemente aos 21 anos com problemas nos joelhos, o ex-arqueiro lembrou-se de deliciosas histórias vividas entre 1930 e 1934, período em que defendeu o Flamengo por 62 vezes.
Certamente a que mais lhe traz orgulho é a estreia no time principal do Flamengo, em 1931. A vitória sobre o Fluminense por 1 a 0 quebrou um jejum sem vencer o Tricolor que já durava desde setembro de 1928 e foi a primeira de uma série diante do maior rival.
– Nunca perdi para o Fluminense, era o meu freguês favorito. Acho que, no mínimo, foram umas seis partidas disputadas. O Fla-Flu era o grande jogo da época, mexia com a cidade. O Vasco entrou atrasado, mas era uma potência também, era a colônia portuguesa. Mas o América era quem nos dava mais trabalho, era chato, tinha bons times – recordou Fernandinho, que tinha o ilustre tricolor João Coelho Netto, o Preguinho, autor do primeiro gol da seleção brasileira em Copa do Mundo (1930), como um de seus melhores amigos.
– A rivalidade àquela época era diferente. O Preguinho era muito meu amigo, eu o chamava de Joãozinho e ele não gostava (risos). Mas era uma pessoa maravilhosa. Nós fundamos o Clube Olympico.
O multi-esportista tricolor – Preguinho também praticou outras sete modalidades -, no entanto, não é o único atleta admirado e citado algumas vezes pelo ex-camisa 1 rubro-negro. Pirilo, um dos 10 maiores artilheiros do Flamengo, Evaristo de Macedo, ex-meio-campista que Fernandinho garante ter ajudado a levar para a Gávea, o goleiro Júlio César, titular da seleção nas Copas de 2010 e 2014, e os técnicos Kanela, decacampeão carioca com o basquete rubro-negro, e Flávio Costa, comandante do primeiro tricampeonato do clube (42/43 e 44), são figuras marcantes na sua memória.
Mas ninguém mexe tanto com o ex-goleiro rubro-negro como Zico. Nascido um dia antes que o maior jogador da história do clube, Fernandinho não se cansa de falar do ídolo e é só admiração pelo Galinho, com quem esteve recentemente no lançamento da nova camisa do Flamengo.
– Não se pode falar do Zico, ele é fora de sério. O Zico é demais. Sempre que encontro com ele eu fico feliz. O melhor jogador do mundo que eu vi jogar chama-se Zico, nunca mais vai existir outro – enaltece o fã de carteirinha.
Apesar dos 104 anos de vida, a lucidez de Fernandinho impressiona. Nem os assuntos considerados delicados ou até mesmo polêmicos para a época parecem embaralhar a memória do ídolo rubro-negro. As pesadas bolas de couro e a falta de luvas na época responsáveis pelos dedos tortos que não desgrudaram da bola durante os mais de 40 minutos de entrevista pelo visto nunca o incomodaram. As longas viagens de navios para jogar fora do país, que chegavam a durar cerca de 10 dias, então, ele garante que tirava de letra.
Nem quando eu quis saber se o homossexualismo já existia no futebol da sua época o fez tremer debaixo das traves. Pelo contrário, irônico, o patrimônio do Flamengo tirou um sarro da situação e fez todo mundo rir à sua volta.
– Não era camuflado não, homossexualismo tem no mundo inteiro e desde aquela época já tinha (risos) – disse Fernandinho, que, em seguida, completou.
– O Rio de Janeiro era muito bom, o carnaval era um sonho, não tinha freio (risos). Davam-nos 15 dias de férias e era difícil nos segurar. Nós bebíamos cerveja, mas pior é quando entrava na cachaça, todo mundo duro, era mais baratinho.
Para não perder o gancho, fui logo emendando: O senhor era namoradeiro?
– Sei lá se eu era namoradeiro, mas ligeiro sempre fui (risos). Nunca fui muito quieto, fui levado. Trabalho eu não dei, mas era filho único e muito paparicado
Para confirmar sua fama de “mau”, o ex-camisa 1 do Flamengo não se intimidou ao ser abordado sobre o futebol da atualidade. Sem papas na língua, não aliviou nem o craque do Barcelona e da seleção brasileira Neymar.
– O Neymar é muito fresco, jogador fresco eu não gosto. Ele é bom, mas muita mulher no meio (risos).
E a Copa do Mundo da Rússia, no ano que vem? Com personalidade, Fernandinho volta a dizer que o futebol brasileiro não produz mais craques como antigamente e mostra toda sua irreverência ao rebater a alcunha de exigente:
– Eu não sou exigente, mas cada um na sua profissão (risos). Nós temos bons jogadores, mas queremos ótimos, os destaques.
Na tentativa de citar um, sua memória chega a traí-lo por alguns segundos, mas rapidamente o goleiro do Flamengo mostra reflexo e se redime ao enaltecer a estrela do Real Madrid.
– Eu gosto daquele da Itália, do atacante italiano, não português, o Cristiano Ronaldo. Esse é jogador de futebol. Sabe jogar, vai e resolve.
E o Messi?
– É bom, mas é muito pequenininho e dão muita porrada nele – afirmou o primeiro goleiro profissional do Flamengo, que não se esqueceu de destacar o trabalho feito por Eduardo Bandeira de Mello.
– Esse presidente eu tenho aplaudido muito. Ele é maravilhoso, um homem pequenininho, carequinha, mas ele dá um duro (risos) – elogia Fernandinho, que tira sarro até com as inúmeras homenagens que tem recebido do Flamengo ao longo desses anos.
– Acho que é porque o Flamengo me aguenta, pois eu não peço nada e o clube que me procura. Mas na última homenagem (no lançamento da nova camisa) eu fiquei empolgado, foi emocionante. O Zico estava lá grudado em mim.
Fã do Arpoador, praia onde costumava pescar camarão de anzol e eleito por ele como melhor lugar do mundo, Fernandinho não esconde seu amor pelos cavalos e segue sem freio mesmo depois dos 100.
– Gosto muito, já tive meu cavalinho da sorte. É bom, né! Eu vou vivendo enquanto não me frearem (risos)….