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A VIDA COR DE ROSA DE ZARANI

texto: André Mendonça | foto: Marcelo Tabach | vídeo: Guillermo Planel

“Tenho muitas recordações boas do Jornal dos Sports. Um jornal muito querido. Era como o América: se não fosse o primeiro, era o segundo jornal de todo mundo”. A frase com tom de saudosismo é do lendário jornalista Newton Zarani. Ele mesmo! Além de ter sido um dos fundadores do futebol de salão, Zarani também fez história no extinto jornal cor de rosa, onde trabalhou por 39 anos. Prestes a se tornar nonagenário, esbanjando saúde e lucidez, o craque da escrita nos deu a honra de receber a equipe do Museu da Pelada em sua casa, na Tijuca, e contou muitas histórias divertidas de sua brilhante carreira.

Desde garoto, Zarani sempre foi fissurado em futebol. Nascido e criado na Tijuca, o menino, na época, sentia falta de um espaço para bater uma pelada com os amigos Haroldo, Babão, Brucutu, entre outros. Daí surgiu a idéia de criar o futebol de salão e, posteriormente, a federação do esporte em 1954. As regras, no entanto, eram bem diferentes das de hoje em dia: não valia dar carrinho em hipótese alguma, mão no chão era falta, dois marcadores em cima de um jogador também era uma irregularidade, não valia gol de dentro da área, entre outras coisas. “Era um futebol de classe, toque de bola, dribles bonitos, sem pancadas. Por isso o nome futebol de salão. Hoje em dia o esporte mudou completamente. É um entra e sai danado (substituições), muita correria, muito preparo físico, pancadas e poucos dribles!”, lamentou o criador do esporte.

Como jogador, Zarani atuou pelo América, clube de coração, no infantil, juvenil e aspirante. Veloz, atuava como pivô ou ala e costumava fazer muitos gols. Além de ter participado dentro das quatro linhas, Zarani também foi treinador do time de futebol de salão do América e do Clube Municipal. Mas foi no jornalismo que o craque deslanchou. “Eu não era bobo nas quadras não, mas era melhor na redação”. Apaixonado por esportes, decidiu se dedicar à faculdade de jornalismo, além de vários outros cursos para se especializar na área. As peladas, no entanto, jamais foram esquecidas. “Joguei futebol até os 80 anos. Só parei porque comecei a perder o equilíbrio. Eu ainda marcava meus golzinhos e dava trabalho para os marcadores”, lembrou. 

Sem se recordar a idade exata, Zarani afirmou que entrou no Jornal dos Sports por volta dos quarenta anos e por lá ficou até o “cor de rosa” parar de circular, em 2010. Na verdade, saiu alguns meses antes, mas o jornal já estava prestes a falir. Lá, começou trabalhando com um fenômeno do jornalismo: Nelson Rodrigues. Segundo Zarani, a relação com o mito, como ele próprio definiu, era muito boa e de muito aprendizado. Além de Nelson Rodrigues, teve a oportunidade de trabalhar com figuras importantes como Geraldo Romualdo da Silva, João Saldanha, Zé de São Januário (pseudônimo do jornalista Álvaro do Nascimento), entre outros craques.

Apesar da preferência pelo futebol de salão, o jornalista afirmou que não tinha escolha. O Jornal dos Sports cobria todos os esportes que eram praticados, além da área de educação. Muito dedicado e sem medo de novos desafios, Zarani fazia a cobertura de qualquer esporte com a mesma eficiência, fato que lhe rendeu o apelido de “O De Todos os Esportes” na redação. Contudo, havia uma modalidade que era uma pedra no sapato para o experiente jornalista: hipismo. 

Um dia, seu chefe o chamou na sala dele e comunicou: “Amanhã terá uma competição na Gávea e você vai lá cobrir, Zarani”. O jornalista pensou que era alguma coisa relacionada ao time de futebol do Flamengo, mas, para desespero dele, a matéria em questão era ao lado, no hipódromo. Sem saber nada de turfe, Zarani chegou ao local da prova duas horas antes e começou a procurar desesperadamente uma pessoa que entendesse do esporte para aprender as regras. Perguntou ao faxineiro do clube quem poderia ajudá-lo e o rapaz indicou Seu Oswaldo. Um coroa muito gente boa, de acordo com Zarani. O jornalista explicou o drama para Oswaldo que, em questão de minutos, solucionou o problema. “Eu não sabia nada! Ele me salvou! Anotei todas as regras em um caderninho e consegui cobrir a prova sem nenhum problema”. Mal sabia que aquele seria só o começo da sua história com o hipismo.

Alguns anos depois, um jornalista que sabia tudo de turfe no Jornal dos Sports faleceu de forma inesperada. O jornal passava por um momento de dificuldades financeiras e não poderia contratar ninguém para a função. Sem pensar duas vezes, o chefe encarregou o “De Todos os Esportes” para cobrir o hipismo. Determinado, Zarani estudou e se dedicou muito àquela modalidade. Cobriu o turfe por três anos e fez “mágica” escrevendo matérias excepcionais. “Mudei a filosofia do Jornal dos Sports. Eu levantei o turfe no jornal. Ganhou ainda mais importância e mais matérias. Dava palpite, colocava os vencedores, fazia resumo da corrida toda”. Uma das matérias, presentes no acervo dele, que o jornalista mais se orgulha de ter redigido foi “Anos Dourados”. Nesta, Zarani recorda os tempos áureos do hipismo, quando as arquibancadas ficavam lotadas de apostadores, torcedores, gente bonita e elegante.

Além disso, o jornalista também não se esquece dos tradicionais campeonatos de pelada no Aterro, assim como os Jogos de Primavera, organizados pelo jornal com o intuito de arrecadar dinheiro. O primeiro fazia um grande sucesso no Rio de Janeiro, mas Zarani lembra que era uma ralação para os jornalistas. “A gente chegava lá às nove da manhã e só conseguia ir embora quase cinco da tarde. Além de tudo, ainda tinha que aturar aqueles peladeiros reclamações. Fazia isso uma vez por semana”. Para Zarani, os Jogos de Primavera era a coisa mais bonita que o Jornal dos Sports fazia. O último que ele cobriu, teve a honra de trabalhar junto com Ives, seu filho. Nos Jogos, apenas meninas estudantes participavam. Havia colégio de todos os lugares do Rio e todas as modalidades esportivas eram disputadas. Ao final da competição, o prêmio “Rainha da Primavera” era dado para a menina mais completa. Ou seja, a mais bela e também a mais eficiente no esporte. 

Eu me sentia em casa na redação. Passava mais tempo brincando do que trabalhando. Gostava muito de botar pilha nos outros, o clima era muito bom.

 De acordo com Zarani, a rotina na redação do Jornal dos Sports era maravilhosa e isso ajudava na eficiência do trabalho: “Eu me sentia em casa na redação. Passava mais tempo brincando do que trabalhando. Gostava muito de botar pilha nos outros, o clima era muito bom”. Torcedor fanático do América, o jornalista revelou que era duro torcer pelo Mecão na redação. “Além de mim, havia apenas mais três americanos lá. Quando o América ganhava, ninguém falava comigo. Mas quando perdia, todo mundo me sacaneava. Eu era minoria, nunca tinha razão”, comentou sob gargalhadas.

Como jornalista esportivo, fez grandes amigos no futebol. Entre eles, Adílio, Nilton Santos, Amaro e Túlio Maravilha. O último, inclusive, já salvou Zarani em diversas oportunidades. “Tinha vezes que eu chegava na redação e não tinha nada para escrever. Aí eu ligava para o Túlio, que era meu amigão, e ele falava para eu escrever que ele marcaria dois gols no próximo jogo e, se dessem bobeira, um seria de letra”.

No jornal, Zarani não tinha papas na língua para escrever nas colunas “Vale-Tudo”, “Esporte Total” e, a mais importante delas, “De Trivela e na Canela”. Muito correto e honesto, o jornalista de língua afiada e opiniões fortes e contundentes não deixava barato as injustiças que via no futebol e como ele próprio diz “metia a porrada” na hora da escrita. Não tinha pena de ninguém, nem dos amigos. “Os clubes pequenos eram sempre roubados. Roubavam parte da renda desses times e eu sempre critiquei de forma pública essas injustiças. Mas quando escrevia algumas coisas mais pesadas sabia que ia dar merda depois”.  Após a declaração do jornalista, Marcelo Tabach, fotógrafo do Museu da Pelada conhecido pelo seu poder de persuasão, teve a brilhante idéia de fazer um registro de Zarani sentado em um vaso sanitário lendo o Jornal dos Sports. E não é que o craque da escrita aceitou na boa? O resultado não poderia ter sido melhor!

Por não suportar as injustiças do futebol, Zarani confessou que tentava esconder dos leitores sua paixão pelo América, mas era muito difícil porque o clube era sempre prejudicado. O carinho do América pelo jornalista, no entanto, é recíproco. Recentemente, em uma comemoração de aniversário do Mecão, o presidente do clube fez questão de convidá-lo para a festa. Se já não fosse o bastante, Zarani ainda recebeu uma camisa oficial do time e um relógio, ambos personalizados com seu nome.

O episódio do inexplicável rebaixamento do clube em 1987, na Copa União, resultou em muitas críticas do jornalista em sua coluna. “Aquilo foi uma covardia! Eu senti raiva, fiquei revoltado! Escrevi muita coisa sobre isso no Jornal dos Sports, dei muita porrada! Foi um assalto à mão armada com vários cúmplices. O América nunca foi ajudado pela arbitragem! Nunca teve força, porque sempre foi um clube de bairro. Clube querido, segundo clube de todo carioca, mas isso não adiantava nada”, desabafou.

Em 2003, em uma das muitas premiações que participou, Zarani foi “cutucado” pelas fortes críticas que fazia e não deixou barato. O jornalista foi receber um prêmio na Portuguesa e o Presidente da Federação de Futebol anunciou: “Estou honrado em entregar essa placa a esse grande jornalista, homem admirável, honesto, correto, mas que tem um problema: carrega muito forte na caneta, bate muito forte”. Zarani recebeu a premiação, agradeceu e, ao final do discurso, retrucou, para desespero das pessoas que o acompanhavam. “Só carrega na caneta quem trabalha com honestidade e fala a verdade!”.  

Por conta da língua afiada, o jornalista confessou que já recebeu algumas ameaças e muitas críticas, mas isso não lhe tirava o sono. “Tem que bater para aparecer! Quem não bate não aparece! Recebia muitas críticas, mas meu chefe adorava”, comentou o craque, que, apesar de pegar pesado na caneta, apresentava opiniões sempre lúcidas e respeitadas.

Com uma carreira repleta de sucessos e acontecimentos especiais, Zarani precisou pensar bastante quando o repórter pediu para que ele elegesse o momento mais marcante dentro do Jornal dos Sports. Sem responder, o bate-papo seguiu, mas ao ser perguntado novamente, a resposta já estava na ponta da língua: a cobertura do título carioca do América conquistado em 1960. “Eu tive um tremelique! Aquilo deu de uma hora para outra. Foi o momento que eu mais senti, achei até que ia passar mal, porque era muita emoção! Eu estava voltando do Maracanã e precisei encostar em um canto. Abaixei a cabeça e chorei muito”. O América venceu o Fluminense por 2 a 1, no Maracanã, e levantou seu último troféu de campeão carioca.

O momento mais triste, sem dúvidas, foi quando o Jornal dos Sports parou de circular, no dia 10 de abril de 2010. “Foi uma época de muita tristeza. Não só para mim, mas para todos que trabalhavam lá. Até hoje os amigos do Jornal dos Sports me telefonam”. De acordo com Zarani, no entanto, a possibilidade de falência do jornal já vinha sendo sustentada por ele há algum tempo, quando percebeu algumas mudanças na empresa. A mais marcante foi quando a casa do jornal deixou de ser na Rua Tenente Possolo, Cruz Vermelha, e passou a ser na Rua Pereira de Almeida, na Praça da Bandeira. Além disso, o melhor de todos os donos do jornal, segundo Zarani, organizou a casa toda, mandou pagar todo mundo, deu almoço, fez festa, mas foi preso logo em seguida na “Operação Sanguessuga”, também conhecida como “Máfia das Ambulâncias”. Depois do episódio, o jornal começou a enfraquecer de vez, muitos foram demitidos, os carros do jornal foram vendidos, até chegar ao abismo. “Era um jornal muito querido. Tinha tudo nele, atingia todas as camadas. Tenho muita saudade do jornal e dos colegas. Sinto mais falta das redações do que das quadras. A redação era tudo para mim. Era a minha casa, meu circo, meu teatro”.

Depois que saiu da redação do Jornal dos Sports, Zarani ainda criou um blog, onde continuava “metendo a porrada” e, segundo ele, fazia muito sucesso, mas teve que ser interrompido por conta de problemas na visão. O jornalista, no entanto, não vê a hora de marcar a cirurgia, corrigir o problema e voltar a fazer aquilo que mais gosta. 

VIDA LONGA AO ZARANI!