ADALBERTO GLORIOSO
texto e fotos: André Teixeira | assistente: Ivo Teixeira
Num Brasil não muito distante no tempo, quando um negro entrava em campo com a camisa 1, muita gente torcia o nariz. “Não funciona”, diziam alguns. “Não têm controle emocional”, teorizavam outros. A derrota na final da Copa de 50, em pleno Maracanã, com o negro Barbosa debaixo das traves, só reforçou o mito. Racismo, ignorância e superstição jogaram a conta do fiasco nas costas do goleiro, ídolo vascaíno, que morreu amargurado pelo papel de bode expiatório.
No Botafogo, curiosamente, vemos justamente o contrário. Na sua extensa galeria de ídolos, há espaço para os goleiros Jefferson, Wagner, Manga e aquele que pode ser considerado o precursor desta linhagem: Adalberto. Todos negros.
Coisas que só acontecem ao Botafogo? Talvez. O fato é que este homem, do alto de seus quase 85 anos e ainda com lugar cativo no imaginário alvinegro, diz nunca ter dado muita bola para a questão racial.
– Sentia que existia, mas sempre fui bem tratado por onde passei. Eu era sério, dedicado, não chegava atrasado e treinava muito para estar sempre bem. Nunca dei chance para o racismo se manifestar! – garante.
Tanto empenho lhe garantiu lugar no mitológico esquadrão montado pelo Glorioso no final da década de 50, ao lado de ícones como Didi, Garrincha e Nilton Santos, para falar só dos mais conhecidos. O time, entre outras conquistas, ficou marcado pela decisão do Carioca de 57, quando atropelou o Fluminense por incontestáveis 6 a 2, com nada menos do que cinco gols de Paulinho Valentim.
– Era um timaço, e para jogar com aquelas feras tive que ralar muito! – lembra.
Curiosamente, Adalberto nunca foi fã de futebol. “Até hoje não ligo muito”, diverte-se. Perna de pau assumido, nas peladas da infância e adolescência, na Ilha do Governador, invariavelmente acabava no gol. Tomava lá seus frangos, e tirava de letra as reclamações dos companheiros.
– Não via aquilo como uma profissão. Queria mesmo era ser médico! revela.
Aos poucos, foi tomando gosto e se dedicando mais, mesmo sem ambições profissionais. Acabou parando no Cocotá, clube amador da Ilha, e numa partida contra os aspirantes do Fluminense, seu desempenho surpreendeu a todos – principalmente a si próprio.
– Nem eu acreditava que podia jogar daquele jeito!
Convidado para um teste no tricolor, mais uma vez se saiu bem. A ponto de sair das Laranjeiras com um contrato, que deveria ser assinado pelo pai – Adalberto era menor de idade.
– Foi um susto para ele. Até brincou, dizendo que o Fluminense devia estar muito mal para querer um frangueiro como eu!.
O tricolor, na verdade, contava com Castilho e Veludo, dois dos maiores goleiros de sua história, nos profissionais, e com eles Adalberto aprenderia muitos dos segredos da posição.
– O Veludo foi o melhor que vi jogar, mas era muito boêmio. Mesmo assim, às vezes chegava nos treinos sem dormir e fechava o gol.
No contrato com o Flu, Adalberto fez questão de incluir uma cláusula em que o clube se comprometia a pagar seus estudos numa boa escola, pois seu objetivo era entrar para a faculdade. O clube aceitou e cumpriu o prometido, motivo de muita gratidão por parte do ex-goleiro.
Ficou no clube até 55, quando se transferiu para o Santos, que começava a formar o time que encantaria o mundo nos anos seguintes. Na Vila Belmiro, acompanhou a chegada de um menino com o curioso apelido de Pelé.
– Quando me perguntam se joguei com o Pelé, respondo que ele é que jogou comigo! – brinca.
A passagem pelo Santos durou pouco, pois não tinha muita chance como titular e resolveu sair. Chamado por João Saldanha para o Botafogo, aceitou sem hesitar, e começou então seu grande momento no futebol. Na época, Amauri, goleiro titular da equipe, pegou uma gripe, Adalberto aproveitou a oportunidade e não saiu mais da equipe principal. No Glorioso, muitas alegrias e histórias.
– Um dia, provoquei o Garrincha, dizendo que ele só driblava para um lado, que era fácil desarmá-lo. Ele apostou que eu não tomava a bola dele. Só de brincadeira, topei. Ficamos frente a frente, e quando ele partiu para o drible, se atrapalhou e fiquei com a bola. Ele ficou doido, quis uma revanche, mas claro que eu não aceitei. Sabia que tinha sido um acaso! – conta.
A parceria com o endiabrado Garrincha, aliás, rendeu o primeiro gol da final de 57, como lembra o ex-goleiro do Botafogo, descrevendo o lance completo.
– Ele não voltava para marcar de jeito nenhum. O Altair, lateral deles, gostava de apoiar o ataque, e num deles, a bola ficou comigo. Foi só lançar para o Mané, que estava sozinho e partiu para cima deles. Tabelou com o Didi e a bola acabou com o Paulinho, e aí começou a goleada! – afirma.
Saiu de campo como um dos destaques e como o goleiro menos vazado da competição. Não foi esta, no entanto, sua maior atuação. De acordo com ele, um empate em 0 a 0 com o Flamengo, liderado pelo atacante Dida, foi o melhor jogo de sua carreira.
– Fechei o gol! O Dida chegou a falar comigo no meio do jogo que naquele dia a bola não entrava de jeito nenhum.
O sucesso no Bota não subiu à cabeça do sério Adalberto, e talvez esteja aí o segredo de seu êxito tanto nos gramados. Sempre muito frio, garantiu que nunca teve medo do futuro e nunca tremeu em um jogo. Em relação à vida pessoal e financeira, mostrou muita serenidade. Nas excursões, preferia conhecer as cidades por onde passava pela manhã, enquanto a maioria dos jogadores curtia a noite.
– Nunca gostei de boates, jogo, bebida e vida noturna. Fiz questão de estudar e economizar. Sabia que a carreira era curta e me preparei para quando ela terminasse.
A sólida formação lhe permitiu, em 1959, encerrar a carreira de jogador na hora que quis, sem medo do futuro. Trabalhou como treinador de goleiros e supervisor no próprio Botafogo e depois no Oriente Médio e América Central. Enquanto na Arábia Saudita contava com a admiração do príncipe, na Venezuela recebeu a incumbência de cuidar da preparação física dos soldados do quartel. Para ajudá-lo, convidou um dos seus filhos, que até hoje mora lá. O outro filho é treinador de futevôlei na Itália, o que “obriga” Adalberto a viajar frequentemente à Europa.
– Já fui exatamente 54 vezes para lá! O melhor é que só pago as passagens, o resto é por conta dele! – brinca.
Precavido, tratou de fazer dois concursos para professor – é formado em Educação Física –, e deu aulas até se aposentar. Com a vida tranquila, lamenta a situação de quase penúria de vários ex-jogadores.
– O futebol ilude, dinheiro fácil, muitos amigos, mulheres, mas é uma profissão que dura pouco! Cheguei a trabalhar com alguns deles na Suderj, mas não sabiam fazer nada, só falar de futebol e lembrar do passado.
Como herança dos tempos de futebol, além da estabilidade financeira e das muitas amizades – entre elas, a do Rei Pelé, que o convidou para seu jogo de despedida do futebol, em Nova York –, tem o gosto pela atividade física e boa alimentação. Faz musculação diariamente, numa academia que montou em seu próprio apartamento, no Flamengo, e nada três vezes por semana na piscina da sede do Botafogo em General Severiano, clube que tantas recordações lhe traz e que o premiou, em agradecimento pelos serviços prestados, com o título de Sócio Emérito. No clube, é tratado com o devido carinho por funcionários e sócios, mas, se não se furta a relembrar o passado, evita comentários sobre o futebol atual.– Vamos mudar de assunto? – encerra.