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UMA COISA JOGADA COM MÚSICA” – CAPÍTULO 53

14 / março / 2024

por Eduardo Lamas Neiva

Depois de dançarem e se divertirem com “O balanço do Garrincha”, cantado por Ary Lobo, o público se dispersou um pouco, mas logo voltou sua atenção à mesa de nossos personagens. Sobrenatural de Almeida retomou a pelota, levando adiante o papo sobre Garrincha e a Copa do Chile.

Sobrenatural de Almeida: – Eu mesmo tentei aprontar umas com o Garrincha em campo, mas fui driblado várias vezes.

João Sem Medo: – Foi mais um João!

Todos riem, inclusive Sobrenatural de Almeida, que soltou sua risada medonha.

Idiota da Objetividade: – Na vitória de 3 a 1 sobre a Inglaterra, pelas quartas-de-final da Copa de 62, Garrincha fez dois gols. O outro foi de Vavá. Garry Hitchens chegou a empatar para os ingleses na primeira etapa, sete minutos depois de Garrincha abrir o marcador. Mas Vavá fez o segundo, aos 7 da etapa final, e Garrincha marcou o terceiro, aos 14.

Ceguinho Torcedor: – Contra a Inglaterra, o Brasil arrancou todas as máscaras. Embora com dez elementos, pois o Possesso levou um tostão, o futebol brasileiro apareceu em todo o seu frenético esplendor. O gênio de Garrincha desarmava tudo, desde simples antipatias até os ódios shakespereanos. Seu futebol era de um humor ininterrupto e colossal. Ele nos ensinou a beber na fonte das alegrias simples.

João Sem Medo: – Sabíamos que não bastaria aos ingleses um jogador para a marcação de Garrincha. Eles começaram num 4-2-4, mas ainda não descobrimos em que sistema acabaram jogando. Na primeira bola recebida pelo Mané foi um deus nos acuda na defensiva britânica. O lateral Wilson foi o “John” daquele dia (muitos risos na plateia) e tratou logo de pedir socorro para acertar o seu lado.  Mané estava uma fera. Depois da contusão de Amarildo, que fez Garrincha ir pro miolo, a esquadra de Nelson naufragou de vez. Os ingleses tremiam como aspirantes escalados no time de cima. Numa dessas, Zagallo bateu um corner e um grandalhão que mais parecia uma vela de promessa perdeu na cabeça pro Mané. Cesta do Brasil. Depois apareceu uma falta fora da área, Didi ajeitou, mediu, mas o Mané não deu vez. Correu, deu um chega pra lá no crioulo e mandou brasa. A bola estourou no peito do goleiro e Vavá conferiu. E ainda houve o terceiro, mas nesse eu não vou falar porque precisaria ter estudado mais uns dez anos. Só vou dizer que foi uma folha-seca que me fez ficar até arrepiado.

Ceguinho Torcedor: – No lance desesperador do segundo gol, Didi ia bater de fora da área. E súbito, baixa no Mané uma luz de vidência. Amigos, o sujeito que não profetiza é um pobre de pai e mãe. Naquele momento, Mané viu, farejou, apalpou o gol quase que fisicamente. Empurrou Didi, meteu-se na frente e despejou a bomba.

Sobrenatural de Almeida: – Ajudei um pouquinho o Garrincha a fazer as coisas que normalmente não fazia naquele dia. Essa vidência que você falou fui eu que soprei no ouvido do Mané. O goleiro inglês foi traído por um desviozinho que dei na bola chutada pelo Mané e Vavá pôde cabecear pras redes depois.

Ceguinho Torcedor: – Dizer que Garrincha, sozinho, ganhou o “match”…

Os outros três: – “Match”!?

Ceguinho Torcedor: – A partida, a partida… Pois bem, dizer que Garrincha, sozinho, ganhou a partida, pode parecer injusto ou cruel. Muitas vezes, porém, tivemos a sensação de uma batalha desigual, uma monstruosa batalha, entre o solitário Garrincha contra todo o Império Britânico. O Mané fez dois gols e deu mais um.

Garçom: – Dá pra dizer quem foi melhor, Pelé ou Garrincha?

Sobrenatural de Almeida: – Os dois eram assombrosos. Penei com eles, porque não conseguia aprontar muitas. Acabei ajudando algumas vezes. Se não pude com eles, juntei-me a eles.hahahaha

Todos (rindo): – Assombroso!

Idiota da Objetividade: – Pelé foi mais completo. Garrincha, mais surpreendente.

João Sem Medo: – Pelé e Garrincha são extra-série. Só vi, como Pelé e Garrincha, talvez o Di Stéfano, um monstro sagrado. E depois, mais próximos, Puskas, Zizinho, Cruiff. Mas Pelé, Garrincha e Di Stéfano são os três extras-série. Vi Di Stéfano pela primeira vez em 50, 51; vi jogando dez, doze anos. Vi Pelé jogando dez, doze anos. Vi Garrincha uns quinze anos. Tenho opinião formada e confirmada sobre eles: são monstros sagrados do futebol internacional. Formam na linha dos fora de série. Depois você vem aí com trezentos.

Ceguinho Torcedor: – Pelé era já em 58 um gênio indubitável. Digo e repito: gênio. Já aos 17 anos, Pelé podia se virar para Michelangelo, Homero ou Dante e cumprimentá-los, com íntima efusão: “Como vai, colega?”. De fato, assim como Michelangelo é o Pelé da pintura, da escultura, Pelé é o Michelangelo da bola. Um e outro podem achar graça de nós, medíocres, que não somos gênios de coisa nenhuma, nem de cuspe à distância. Apesar de toda a nossa ingratidão, Pelé é imortal, porque ninguém pode enxotá-lo da nossa memória.

Garçom: – Mas, seu Ceguinho, como o senhor sabe disso se o senhor não enxerga?

João Sem Medo: – Esse aí enxerga longe. É como o craque, ele antevê.

Sobrenatural de Almeida: – O Ceguinho é assombroso. Fala dos gênios como se ele não fosse. Somos quase todos aqui criação dele. Ou saímos das costelas dele.

Todos riem.

Ceguinho Torcedor: – Em Garrincha, tudo comovia. Em primeiro lugar, foi e é da cabeça aos sapatos um herói nacional. O brasileiro é feio e Garrincha também era. Aqui, até os Apolos são mal-acabados. E as pernas tortas do herói ainda o aproximavam mais do nosso coração. Reparem no olho do Mané em qualquer vídeo desses que tem por aí. Era um olho doce, cândido, bom e também meio torto, com um leve, um pungente, um lancinante estrabismo. Tolstoi se o conhecesse, dar-lhe-ia..

Os outros três: – Dar-lhe-ia, Ceguinho!?

João Sem Medo: – Com essa mesóclise vão acabar comparando você àquele outro que andou presidente.

Ceguinho Torcedor: – Ah, não, aí já é ofensa, João.

João Sem Medo: – Eu sei, eu sei, desculpe. Mas dar-lhe-ia o quê?

Garçom: – Dá-lhe, o quê?

Ceguinho Torcedor: – Perdão, senhores, mas eu sou um admirador das mesóclises, ainda mais nessas ocasiões. Tolstoi daria em Garrincha um beijo na testa, se o conhecesse. Mas como eu ia dizendo: o povo não gosta de herói bonito. E o Mané chegou mais depressa aos corações porque era, fisicamente, mal-acabado como o próprio povo.

Mané Garrincha (rindo, levanta-se e fala de sua mesa): – Que isso, seu Ceguinho. Papai aqui sempre foi bonitão!

Risada geral no bar Além da Imaginação.

Ceguinho Torcedor: – Tá certo, Mané. Mas você cheirava a povo, se vestia mal e calçava mal. Era o povo e só povo, por dentro e por fora do terno, nos sapatos e na alma. Repito: tão povo e tão Brasil.

Mané Garrincha: – Tão povo e tão Brasil sim. Isso eu sempre fui.

Garçom: – Tão povo, tão Brasil, tão genial. E pra novamente homenageá-lo, nada melhor que Elza Soares!

João Sem Medo: – Elza também, tão povo, tão Brasil, tão genial.

Elza vai ao palco levando Mané de mãos dadas. Ambos sobem ao palco aplaudidos de pé por todo mundo.

Elza Soares: – Muito obrigada, meu povo. Muito obrigada, João. Vamos começar cantar a “Alegria do Povo” que sempre foi e sempre será Mané.

Ele sorri pra ela, ela pra ele e Elza começa a cantar a música “Garrincha, a alegria do povo”, de Paulo Debétio e Paulinho Rezende, com acompanhamento da banda Além da Imaginação.

Todos aplaudem muito.

Elza Soares: – Obrigada. Obrigada. Agora, vou cantar aqui uma que foi composta pelo Mané. Aliás, vou cantar as duas que ele fez e eu gravei nos anos 60: “Receita de balanço” e, pra fechar, “Pé redondo”. Vamos lá!

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Um gol desse não se perde!

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