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VOZES DA BOLA: ENTREVISTA CARPEGIANI

28 / outubro / 2021


Nos ‘Aurélios’ da vida, a palavra predestinado significa que ou o que é destinado de antemão a. Na Teologia, basta dizer que ou aquele que foi destinado por Deus à glória eterna. Paulo César Carpegiani foi os dois.

Ser um grande jogador nem sempre é a garantia em tornar-se também um grande técnico. Exemplos, temos aos montes! No entanto, Carpegiani conseguiu unir o melhor em ambos os universos. Nos tempos em que calçava chuteiras, mesmo que a trajetória tenha sido abreviada pelas lesões no joelho, bastou uma década como profissional para eternizar seu nome no Internacional, levando o Colorado logo ao bicampeonato nacional, e Flamengo, onde emendou uma série de títulos como jogador e técnico. Foi um craque indiscutível.

Disputou uma Copa do Mundo, a de 1974, na Alemanha Ocidental, e mesmo com uma primeira fase cambaleante, se classificou ao vencer o fraco Zaire por 3 a 0, no estádio Parkstadion, em Gelsenkirchen, e foi até onde pôde ir ao cair de pé com seus companheiros, para o futebol revolucionário de uma Holanda, equipe comandada por Rinus Michels (1928-2005), temida e conhecida como ‘A Laranja Mecânica’.

“O jogo que o Brasil fez no primeiro tempo poderia ter nos dado uma possível vantagem de dois gols. Enfrentamos uma equipe sensação da Copa, e o Zagallo nos alertou sobre isso”, lamentou.

No entanto, antes de ser brilhante em campo e à beira dele, o destino deu uma boa ajuda para tornar essa história inesquecível quando fez quebrar o Aero-Willys 1963 da família na viagem para realizar um teste no Grêmio. Até hoje, os dirigentes do Internacional agradecem.

Mas falar de destino e de predestino sem usar Carpegiani, célebre meio-campista, que foi príncipe ao lado do ‘Rei de Roma’ Falcão no Internacional e que liderou um esquadrão do Flamengo de um outro ‘Rei Rubro-Negro’ chamado Zico, é chover no molhado.

Mas para quem usou tão brilhantemente os pés, usar as mãos seria viver um dilema sem precedentes, que foi, até certo ponto, com a ajuda de Dino Sani, meio caminho andado. Basta dizer que está lá na rica história rubro-negra, Paulo César Carpegiani como técnico que comandou o Flamengo na Copa Libertadores da América e no Mundial Interclubes, ambos em 1981, logo após encerrar a admirável carreira de jogador.

Cerebral, craque, clássico! Estes são os dotes da letra C, de Carpegiani, nosso personagem da série Vozes da Bola.

Por Marcos Vinicius Cabral
Edição: Fabio Lacerda


Como foi sua infância em Erechim, a segunda cidade mais populosa do norte do Rio Grande do Sul?

Minha infância foi uma vida normal como a de todo garoto que é apaixonado por futebol. Acho que Deus me deu esse dom, me encaminhou na estrada da vida e disse: “Olha, essa vai ser a sua profissão!”. As coisas foram acontecendo muito naturalmente, e até hoje, eu me faço a mesma pergunta: “Se eu não fosse jogador de futebol, o quê seria?”. Sinceramente, não saberia responder para você e muito menos para os leitores do Vozes da Bola. Na minha época de escola sempre adorei jogar futebol, fazia bola de meia e ficava ensaiando ‘balõezinhos’ na cadeira, e os pés dela serviam como o gol. Aos 14 anos, comecei jogando futebol de salão no Cruzada, time de adolescentes que foi campeão em competições estaduais, e próximo dos 17, atuei no Meca, que era um time de um empresário muito influente da cidade que acabou me contratando para trabalhar no escritório da fábrica de balas chamada Peccin. No entanto, o futebol de salão sempre foi a minha origem, mas isso não impedia de receber convites para me transferir para o futebol de campo e refutava muito por entender que no campo havia uma imensa distância entre o jogador e a bola, diferente do time do futebol de salão. Mas, uma vez ou outra, incentivado por colegas, joguei em clubes de Erechim como o Atlântico e o Ypiranga, este último, tendo realizado alguns treinamentos com os profissionais. Mas sempre amei jogar bola, e no salão, a proximidade com a bola é intensa, diferente do campo. Coisa de criança mesmo!

E como foi a história em que você só não foi jogar no Grêmio porque o carro enguiçou na estrada? E dois dias depois, você pegou um ônibus em Erechim rumo à capital, depois entrou em um táxi e errou o trajeto indo parar no Estádio dos Eucaliptos, de propriedade do Sport Club Internacional. Isso, de fato, aconteceu?

Não, a história não foi desta forma como é divulgado pelos meios de comunicação e é encontrada na Internet. Vou te explicar como começou e terminou tal história. Em 1968, quando eu fui fazer vestibular de Engenharia, em Porto Alegre, aproveitei para fazer um teste no Internacional, recomendado por um zagueiro profissional do Atlântico de Erechim que chamava-se Garcia. Escrevi uma carta para o Abílio dos Reis que era um ‘garimpeiro’ de talentos muito conceituado em Porto Alegre e que revelou grandes craques para o Grêmio e o Internacional. Nesta época, o Abílio era o treinador das categorias de base do Internacional, e com uma carta escrita pelo Garcia, fui fazer o teste como meio-campo. Fiz um treino no Estádio dos Eucaliptos, preenchi uma ficha com meus dados, assinei no rodapé dela o meu nome e fui embora. O tempo passou e dois dias antes de voltar à capital para estudar, meu vizinho, – até hoje me pergunto como isso aconteceu -, recebeu uma ligação de um senhor conhecido como Chiquinho que dizia ser treinador dos juvenis do Grêmio. Ele foi na minha casa me chamar para atender a ligação. “Olha, aqui é o Chiquinho, sou responsável pela categoria juvenil do Grêmio e estou sabendo que você está indo para o Internacional e gostaria de te esperar no Aeroporto Salgado Filho para você treinar aqui na base do clube. Teria problema?”, perguntou. Eu disse que não e falei com meu pai. Isso foi numa segunda ou terça-feira, se não me recordo, e partimos eu, dirigindo o Aero-Willys 1963 da família, meu pai Hermínio, minha mãe Leda, minha irmã Tânia e meu irmão Celso, para a viagem. No percurso de Erechim a Getúlio Vargas, a estrada era de terra e devo ter passado em uma pedra que danificou o eixo cardan que é aquele que faz o movimento de rotação das rodas. Danificado, este eixo começou a bater no assoalho do carro causando um desconforto e fazendo um barulho enorme. Depois de 40 quilômetros, nós paramos numa das oficinas na cidade de Getúlio Vargas para fazer o reparo. Ora, havíamos saído de casa às 8h, o carro ficou pronto para seguir viagem às 13h. Ficou impossível chegar no horário marcado com o senhor Chiquinho. Cientes disso, seguimos direto para a cidade onde moravam os familiares do meu pai que fica em Flores da Cunha perto de Caxias do Sul. E na manhã seguinte, fui direto treinar no Internacional. Na verdade, esta história de embarcar no ônibus na minha cidade natal, depois pegar um táxi que errou o trajeto indo parar no estádio dos Eucaliptos, nunca aconteceu.

E o Chiquinho, responsável pelo juvenil do Grêmio, está até hoje te esperando?

Pois é, este encontro não ocorreu. O Grêmio era muito forte, e talvez, eu não sei se teria oportunidade de mostrar meu futebol. O Internacional foi aquela situação que aconteceu na vida graças a Deus.

Como foi sua chegada ao Internacional?


Foi em 1969. Eu já havia estado lá, fui aprovado no teste pelo Abílio dos Reis, o descobridor de talentos em Porto Alegre. Joguei seis meses, e Osvaldo Rola, treinador dos profissionais, me subiu à equipe principal. Realizei dois jogos amistosos pelo Internacional que terminaram empatados em 0 a 0, sendo um contra o São Paulo do Rio Grande e o outro contra o Monte Negro. Fui bem, no entanto, esse treinador, me chamou e disse: “Olha, eu já ouvi falar do teu pai, que foi uma grande craque, e que você e seu irmão, apesar de serem muito bons de bola, não serviriam para amarrar os cadarços das chuteiras dele quando ele jogava futebol. Para ser sincero, estou com medo de te queimar!”, disse na ocasião. Sabendo que teria que voltar para os juvenis e ter que ficar mais um tempo por lá, eu peguei minhas coisas, fui embora e larguei o futebol. Desolado, voltei a Erechim, e completamente decepcionado com o futebol, decidi ficar por lá tocando minha vida, focando nos estudos e vivendo. Mas o Abílio dos Reis foi atrás de mim e acabei voltando, pois como eu tinha que terminar meus estudos, já que sonhava prestar vestibular para Engenharia, acabei fazendo Economia e Administração de Empresas.

Conhecido no Internacional como Paulo César, começou a jogar na equipe principal em 1970. Adotou o nome Carpegiani na Copa de 1974 para não haver confusão com o outro famoso Paulo César, o Caju. Quem te deu a ideia de incluir o Carpegiani ao seu nome?

Foi a imprensa. Ela usou o meu nome Carpegiani para fazer essa diferenciação com o Paulo César Caju que era um jogador muito famoso e que atuava no Flamengo antes de se transferir para o Olympique de Marseille. Antes disso, eu era chamado por todos e conhecido apenas como Paulo César. Os repórteres começaram a me chamar de Carpegiani e assim ficou.

Você foi titular do Brasil na Copa do Mundo de 1974, substituindo Clodoaldo. Na sua opinião, o que faltou para a Seleção Brasileira ter conquistado o título?

Zagallo, então treinador à época, enfrentou algumas dificuldades naquele Mundial, como a desistência de Pelé em disputar sua quinta Copa do Mundo, a lesão de Clodoaldo e a reformulação que precisou ser feita no elenco. Eu atravessei uma grande fase no Internacional jogando como meia e tive o privilégio de ter sido lembrado e convocado pelo Zagallo, assim como Ademir da Guia, Rivellino e Paulo César Caju. No segundo jogo – 0 a 0 contra a Iugoslávia – aconteceu a lesão (torção no tornozelo) do Leivinha no segundo tempo. E como o Leivinha era um jogador mais adiantado, o Zagallo me colocou nesta posição, ou seja, um ponta de lança chegando e se aproximando do centroavante que era o Jairzinho. E eu estreei nesta partida. O Piazza estava jogando como volante e assim que terminou o jogo o Zagallo me chamou e perguntou se eu teria dificuldades em atuar como cabeça de área, pois a intenção dele, segundo ele próprio me falou, era escalar um meio-campo comigo, Rivellino, Paulo César Caju e Dirceu. Eu falei que não havia problema algum, mas deveria ver com o Piazza, pois ele estava jogando e o ‘Velho Lobo’ respondeu que isso era um ‘problema’ dele que era o treinador. Eu não era da posição, e talvez, o Piazza ficasse chateado. O Zagallo soube administrar bem a dúvida. Mas assim, respondendo à sua pergunta que é o que interessa: empatamos com Iugoslávia e Escócia por 0 a 0, e vencemos o Zaire por 3 a 0. Nas oitavas, vencemos a Alemanha Oriental por 1 a 0, nas quartas batemos a Argentina por 2 a 1, perdemos para a Holanda por 2 a 0 na semifinal numa partida muito truncada, violenta e acabamos desclassificados. Mas a Copa que o Brasil fez se resume ao primeiro tempo contra a Holanda. Poderíamos ter ido para o intervalo com o placar a favor. Enfrentamos um time sensação da Copa e fomos alertados pelo Zagallo. Eu vi isso dentro de campo. Quando eles lateralizavam a bola, ou seja, deixavam os laterais saírem jogando, faziam pressão, resultando numa asfixia tão grande no nosso campo defensivo que não conseguimos fazer a bola chegar à frente. Tanto eu como o Rivellino, invertemos as jogadas. No segundo tempo, uma desatenção nossa, o Marinho Chagas foi atravessar uma bola e deu no pé de um jogador holandês que cruzou e o Neeskens deu um carrinho para fazer o gol. O Cruyff fez o segundo batendo de primeira um cruzamento sob medida vindo da esquerda. Depois disso, tivemos o Luís Pereira expulso por reclamação e ficou bem difícil para o Brasil. Poderíamos ter feito dois gols no primeiro tempo. E o velho jargão do futebol entrou em cena: ‘quem não faz, leva!”.

Você formou, ao lado de Paulo Roberto Falcão e Caçapava, um trio de meio-campo que entrou para a história do futebol brasileiro, ganhando sete dos oito títulos do Campeonato Gaúcho que o Inter faturou de 1969 a 1976. Além disso, foi bicampeão brasileiro nos anos de 1975 e 1976. Foi seu momento mais marcante na sua curta carreira de jogador de futebol?

Eu sou muito grato a origem que tive no Sport Club Internacional, onde fui feliz, aproveitei as oportunidades e como jogador profissional, posso te assegurar que apenas no ano de 1977, já no Flamengo, não conquistei um título na carreira naquele jogo contra o Vasco em que o Tita perdeu um pênalti, partida esta em que não atuei. Dos 15 títulos disputados, juntando, ganhei 14. Mas isso não quer dizer que a fase mais marcante foi no Internacional. Minha transferência para a Gávea foi um dos momentos mais marcantes na minha carreira.

Qual jogo com a camisa do Internacional você lembra até hoje como a atuação mais exponencial?

Tive muitos jogos importantes. Quando eu fecho os olhos começo a lembrar os Gre-Nais em que joguei. Mas historicamente, o jogo em que o torcedor Colorado não esquece até hoje foi a vitória por 2 a 0 contra o Fluminense (Máquina Tricolor), e em seguida contra o Cruzeiro, jogos que acabaram culminando com a conquista do nosso primeiro título Brasileiro em 1975. Como fiz o segundo gol, a partida contra o Tricolor das Laranjeiras se tornou inesquecível para mim e vencer aquele belíssimo time, sem tomar conhecimento de grandes jogadores que eram adversários, é algo para jamais esquecer. Para se ter uma ideia do que foi aquela partida, eles deram dois chutes em 90 minutos no nosso gol, e a título de curiosidade, foi nesse jogo que entrou o Caçapava no time, pois quem vinha atuando era o Escurinho, titular desde então. Mas o (Rubens) Minelli optou pela entrada do Caçapava na equipe e usou como tática a minha liberação e a do Falcão para armarmos as jogadas ofensivas contra a defesa Tricolor. Deu certo e foi a minha melhor atuação com a camisa Colorada.

Como surgiu o interesse do Flamengo na sua contratação?

Eu havia estado na Copa do Mundo de 1974 com o Cláudio Coutinho, coordenador técnico do Zagallo. Ao assumir o cargo de treinador do Flamengo, me indicou para ser contratado pela diretoria do clube, em 1977. Vale frisar para os leitores que o Internacional não queria me vender e entendo, que, por ser ídolo do clube, e ter construído toda uma história no Beira-Rio, era complicado deixar o clube. Para ter uma ideia do que estou te contando, havia um diretor financeiro chamado Stroungo, que não queria de jeito algum me deixar ir para o Flamengo. E teve uma história curiosa, pois em 1976, o Flamengo tentou a minha contratação com a morte do Geraldo quando ele se submeteu a operação de retirada das amígdalas. Em 1977, o Flamengo tentou novamente, e o Stroungo mais uma vez não deixou eu ir. Lembro que estávamos em um jogo amistoso no Mato Grosso do Sul e ele acabou falecendo no sábado. No domingo de manhã, dois dirigentes rubro-negros, Márcio Braga e Joel Tepet, foram de jatinho particular lá em Mato Grosso do Sul para me buscar e acertar a minha contratação. E fui direto para o Maracanã, pois naquela época havia ainda o saudoso torneio início, e a minha família surpresa, lógico, me viu e ficou se perguntando: “Como foi jogar em Mato Grosso do Sul e apareceu no Maracanã?” (risos). E foi desta forma que comecei no Flamengo, substituindo o craque Geraldo.

De certa forma, substituir um jogador do quilate de Geraldo, te incomodou?

De forma alguma. Eu sabia que se tratava de um excepcional jogador. Eu estava chegando em um clube muito importante do futebol brasileiro, e aos poucos, fui tomando conhecimento da grandeza que era o clube e da importância de jogar nele. No entanto, na minha chegada, o Flamengo era taxado como clube que só conquistava títulos regionais, e eu tive a felicidade de pertencer a uma geração que começou a se formar nos últimos anos da década de 1970 e que mudou isso.

Como foi sua estreia com a camisa Rubro-Negra?

Olha, lembro um pouco da minha primeira vez em campo com a camisa do Flamengo, mas se não me engano, foi um jogo que terminou empatado contra o Olaria, em março de 1977. O primeiro gol foi na goleada por 7 a 1 contra o Volta Redonda dois meses depois.

Como foi jogar com as feras Andrade, Adílio e Zico que acabaram se sagrando campeões estaduais de 1978 e 1979, e Brasileiro de 1980?

Foi formidável, excepcional! Mas de certa forma era natural jogar com eles. Antes, eu tive o Merica, grande jogador e que não pode ser esquecido como companheiro. Já o Andrade, por exemplo, estava voltando de empréstimo da Universidad de Los Andes Fútbol Club, de Mérida, em 1979, e ficou por dois anos no futebol venezuelano. No entanto, formei com Adílio e Zico, um senhor meio-campo. Vale lembrar que na decisão do Campeonato Brasileiro de 1980, o meio-campo foi formado comigo, Andrade e Zico. Mas jogar com estes craques não foi tão fácil como muitos acham, pois até este time chegar a formatação ideal que o nosso treinador Cláudio Coutinho queria, levou um certo tempo para se tornar um time vencedor.

Na opinião do treinador Paulo César Carpegiani, qual time foi melhor: o Internacional de 1976 ou o Flamengo de 1980?

Difícil compará-los, pois são equipes distintas. Mas te digo o por quê: na época em que o Internacional conquistou os títulos regionais e Brasileiros, era uma equipe que, apesar de ter alguns jogadores técnicos, se prevalecia da força, de pegada e competitividade, enquanto o Flamengo, em contrapartida, se notabilizou pelo futebol leve, de habilidade, toque de bola. Mas foram, apesar de dois belíssimos times, diferentes.

Você parou muito cedo, aos 31 anos, por problemas no joelho. Queria que você nos contasse como aconteceu a contusão, já que você operou o menisco em 1975, e como foi encarar o fato de pendurar as chuteiras no auge, pois era craque consagrado com uma Copa do Mundo disputada, sete títulos regionais e um bicampeonato Brasileiro pelo Internacional e estando no Flamengo?

Não lembro como aconteceu, mas não foi nenhuma entrada dura de nenhum marcador ou algo do tipo. Eu operei, em 1975, e no ano seguinte, tive uma grave lesão na virilha. Pensei em parar de jogar. Eu sou de uma época que a parte física sempre foi bem exigida, e no Sul, isso era bem acentuada. Houve o desgaste dos meniscos. O meu corpo não estava mais aguentando a exigência dos jogos, e como eu era um jogador dinâmico e técnico, tentei ir um pouco além. Eu senti o desejo em largar o futebol porque era o momento adequado de parar e isso estava me prejudicando e também os companheiros nas partidas. Isso foi em 1981 e cheguei a jogar algumas partidas, mas não deu. A decisão de pendurar as chuteiras foi acertada. Fui honesto comigo e com todo o plantel.

E como aconteceu a transição de jogador para técnico?

Quando o Cláudio Coutinho saiu no ano anterior, indo para os Estados Unidos, entrou em seu lugar o Modesto Bria, depois o Joubert, em seguida o Dino Sani, este último havia sido meu treinador no Internacional em uma época muito vitoriosa. Eu abri o jogo com ele dizendo que abandonaria o futebol. Ele ficou surpreso, mas falou: “Negativo, você vai trabalhar aqui no Flamengo comigo e será meu auxiliar!”. Assim, iniciei na carreira de auxiliar técnico. Mas foi uma coisa bem natural, nada programado ou arquitetado. Simplesmente aconteceu. O Dino acabou saindo, e o Antônio Augusto Dunshee de Abranches, mandatário do Flamengo entre 81 e 83, me fez o convite e aceitei. Nessa transição de jogador para treinador, não senti muitas dificuldades, porque eu contava com um elenco recheado de pessoas especiais e que me ajudaram muito. Mas o processo de montagem daquele Flamengo que é considerado o maior de todos os tempos não foi uma tarefa tão fácil assim. Por exemplo, o Raul não era o nosso camisa 1, o Toninho estava como titular, e uma vez ou outra o Leandro entrava. O Adílio estava treinando em separado dos demais, o Lico, contratado a pedido do Coutinho para substituir o Zico em alguns jogos, foi lançado por mim naquele 6 a 0 contra o Botafogo em 1981. Aos poucos, fui ajustando peças e fiz um time competitivo, forte e que conseguiu obter êxito em quase todas as competições. Lembro, inclusive, de uma crônica no Jornal do Brasil, assinada pelo João Saldanha, em que ele questionava o fato do Baroninho, então titular, jogar bem em 11 jogos e sair em dez para a entrada do Lico. Comigo, o meio de campo passou a ser formado pelo Andrade, Adílio e Zico, jogadores que são grandes ídolos da história do Flamengo e considerados como três dos maiores meios-campistas do clube.

Você considera os títulos da Libertadores e do Mundial, ambos pelo Flamengo em 1981, como os mais importantes na sua carreira de treinador?


Como técnico, não tenho a menor dúvida. Mas naquela época não havia tantos torneios e competições importantes como hoje. Considero as duas conquistas citadas na pergunta como muito importantes e fundamentais para eu poder dar seguimento à carreira. Na verdade, eu acho que toda conquista tem seu peso, sua relevância, seu valor, mas esses dois eu tenho um carinho especial, pois levam um asterisco que simboliza as dificuldades que foram para nós conquistá-los.

Até hoje, muito se fala do soco desferido pelo Anselmo em Mario Soto. Conte para os leitores do Vozes da Bola o que de fato aconteceu naquela partida? Você, realmente, invocou o suplente do Flamengo a agredir o chileno?

Boa pergunta, mas é preciso retroceder um pouco para respondê-la e falar da primeira partida em que vencemos o Cobreloa em casa. Na segunda partida, no Estádio Nacional, em Santiago, bastava um empate e seríamos campeões. Entretanto, vale como registro dizer que fomos tratados de uma maneira muito hostil dentro e fora de campo. E isso se evidenciou muito no jogo. Meus jogadores me informaram que o Mario Soto jogava com uma pedra numa das mãos. Mas ora, como ele escondeu aquela pedra na mão? Encontrou dentro de campo? Entrou com ela escondida no meião? Sei que ele arrebentou o supercílio do Lico e o deixou de fora da partida decisiva. Foi uma covardia muito grande e uma decisão que eles estavam jogando de forma ardilosa, cruenta e desleal. A maneira que o time do Cobreloa estava se portando dentro de campo foi muito feia. Minha equipe ficou muito abalada com esses acontecimentos e perdeu o jogo por 1 a 0. No último e decisivo jogo, havia, apesar da revolta generalizada no elenco, a premissa dos meus jogadores de reverter esse placar adverso jogando futebol. Aquilo mexeu com o brio do time. Nossos jogadores queriam dar como resposta à truculência chilena, jogando bola. Mas sem o Lico, tive que mexer na equipe e trouxe o Leandro, pela versatilidade, técnica e habilidade, para o meio-campo, adiantei o Adílio para jogar na ponta-esquerda e coloquei Nei Dias na lateral-direita. Cara, foi um bombardeio de todos os lados e lembro que o João Saldanha desceu o pau em mim na coluna dele no Jornal do Brasil em virtudes das improvisações que fiz na equipe na decisão da Libertadores. Mas fomos para o jogo. O Leandro e o Adílio, improvisados, atuaram bem. O Leandro fez uma partida esplêndida. As alterações que fiz naquele momento não tiraram a técnica, velocidade e pegada, que foram fundamentais para a conquista do título. Mas quando faltavam cinco minutos para o fim da partida, surgiu o famoso soco de Anselmo. O fato aconteceu quando a bola estava sendo disputada na lateral-esquerda. O Mario Soto veio e sem ninguém esperar, deu uma porrada no rosto do Tita sem bola. Agressão covarde e premeditada. Naquele momento, nosso banco quis entrar em campo, inclusive o nosso presidente. “Anselmo, vem cá! Você viu o que ele fez com o Tita? Entra e dá no meio dele e pode sair!” Falei para entrar em campo sem aquecer porque o jogo estava na reta final. Ele entrou e seguiu à risca a minha ordem, ou seja, entrou, deu uma porrada na cara do Mario Soto e acabou gerando a confusão toda captada pela televisão. No final do jogo, o Kléber Leite, repórter de campo da Rádio Globo, veio me perguntar se eu havia dado ordem para o Anselmo agredir o Mario Soto. Respondi que sim e contei toda a história para ele me responsabilizando pela confusão. Acabei sendo suspenso pela Confederação Sul-Americana de Futebol, e o Anselmo foi questionado dentro do clube pelos dirigentes se estaria presente no Mundial pelo incidente causado. Eu questionei e expliquei que o Anselmo não deveria ser punido porque ele apenas obedeceu uma ordem expressa minha, e se alguém tivesse que não viajar em detrimento ao que ocorreu, em Santiago, esse alguém deveria ser eu. Mas ficou tudo bem e acabamos conquistando o título Mundial em dezembro.

A que você atribui ser considerado o 3° melhor treinador da seleção paraguaia de todos os tempos?

Poxa, que legal! Eu nem sabia desta informação! Isso é um reconhecimento das campanhas que realizei no Cerro Porteño nas duas oportunidades em que trabalhei no clube, onde conquistamos os títulos do Campeonato Paraguaio de 1992 e 1994. Coloco o fato de treinar uma seleção diferente do meu país de origem, ser segundo lugar nas Eliminatórias em 1997, jogar uma Copa do Mundo e realizar uma campanha excelente como realizamos com o Paraguai em 1998, é sim, para ser considerado como um grande feito. Mas o sentimento é de orgulho, pois só quem está lá disputando o torneio mais importante do planeta, vive um momento ímpar, mágico e especial como eu tive a oportunidade de viver. Sou muito grato ao Paraguai por ter me dado o privilégio de vivenciar isso.

Como foi montar um time que ganhou respeito, principalmente pelo setor defensivo, que contava com o goleiro Chilavert, o lateral-direito Arce (que atuou por Grêmio e Palmeiras) e uma dupla de zaga com Ayala e Gamarra? Este último, no auge da forma, não cometeu uma falta sequer na Copa do Mundo de 1998, algo excepcional para um zagueiro. O Paraguai chegou até às oitavas de final, mas perdeu para a campeã daquela edição, a França. O que você tem a falar sobre essa Copa?


Isso foi fruto de uma ótima Eliminatórias que realizamos. Terminamos em segundo lugar com um ponto a menos que a poderosa Argentina comandada pelo Daniel Passarella e que contava com Zanetti, Verón, Ortega, Simeone, Claudio López, Gallardo, Crespo e Batistuta. Nossa equipe era muito forte na parte defensiva e carecemos de um grande armador, aquele camisa 10 que sabia distribuir o jogo, que chamava a responsabilidade para si e decidia a nosso favor os jogos. Fui do Oiapoque ao Chuí procurando por esse jogador e não encontrei, o que acabou se tornando para nós uma carência na competição. Infelizmente, tivemos a falta de sorte de bater de frente com a anfitriã na primeira fase eliminatória. Sofremos o gol aos nove minutos do segundo tempo da prorrogação. Confesso que saí daquele Mundial com a cabeça erguida. Realizamos um excelente trabalho, e mesmo com as adversidades, lutamos como guerreiros.

Em 1999, você teve uma passagem sem resultados expressivos no comando do São Paulo e ficou marcado com o episódio do afastamento do goleiro reserva Roger devido ao fato dele ter posado nu para uma revista de conteúdo feminino. Hoje, passados 22 anos, qual o balanço que você faz dessa passagem pelo Morumbi e acha que agiu certo em afastá-lo?

Eu tive duas passagens pelo São Paulo e formei dois belos times que marcaram épocas – 1999 e 2010. Inclusive, vale a pena citar que foi feita uma reportagem sobre um levantamento das campanhas dos treinadores do clube nos últimos nove anos. Eu apareço em primeiro lugar com aproveitamento de 66,6%, o Leão vem em seguida com 63,3% e o Muricy Ramalho, tricampeão brasileiro, vem em terceiro com 59,9%. Isso foi apenas para deixar claro para os leitores que as minhas passagens não foram tão ruins assim. Sou lembrado pelos torcedores deste grande clube do futebol brasileiro, que é o São Paulo, exatamente pelo trabalho desempenhado lá. Sobre o episódio, eu tinha um supervisor que era o Rubens Minelli, que foi meu treinador no Internacional, e o Roger estava sem contrato e queria muito renová-lo. Neste período, ficamos sabendo do surgimento de um convite da revista G Magazine, que era uma revista erótica voltada para um determinado público de ambos os sexos. No primeiro momento, o Minelli conversou com ele. Em seguida, fui falar com ele e expliquei que não ficaria legal um atleta profissional de um grande clube posar nu. Na nossa conversa, expliquei que não tinha nada contra a revista e nada contra os que posam nu, mas fui incisivo e perguntei: “Roger, me diz a verdade: o teu problema é financeiro? Você está fazendo isso por dinheiro?”. Ele respondeu: “Sim, estou fazendo por dinheiro!”. Eu e Minelli fomos à direção e pedimos para renovar o contrato dele e isso acabou sendo feito. Depois disso, ele mesmo me disse que não posaria mais e que o problema da falta de dinheiro havia sido resolvido. Passado algum tempo, o Minelli me liga e diz que a revista do Roger nu estava nas bancas sendo vendida. Ao lado do Minelli, decepcionado, reuni todo o elenco no centro do campo com a presença do Roger, desabafei dizendo que me senti traído, pois fui à diretoria do clube, pedi para renovarem o contrato dele e após me garantir que não posaria nu, descumpriu o acordo. Falei ainda para ele na roda de jogadores, que comigo ele não trabalharia mais e comuniquei aos diretores do clube. À época, isso repercutiu muito mal e foi parar até no programa da Hebe Camargo, quando o cantor sertanejo Zezé di Camargo, torcedor do São Paulo, e a própria Hebe, me criticaram abertamente. Jogador de futebol tem que preservar a imagem, pois é referência para um monte de gente, inclusive crianças.

Quem foi seu ídolo no futebol e por quê?


Ídolo é uma palavra muito forte, mas admiração eu tive por alguns grandes jogadores. O Rivellino é um deles. O Zico, é o outro. O Galo, está entre os cinco melhores jogadores do mundo de todos os tempos que eu vi jogar. Por quê? Porque ele foi um jogador completo. Batia bem com a esquerda e com a direita, cabeceava bem, cobrador de falta como poucas vezes vi, excelente lançador, sabia concluir, e era um jogador que antes de a bola chegar já sabia o que fazer. O único pecado, se podemos assim dizer, foi não ter conquistado uma Copa do Mundo, mas eu não levo muito em consideração isso. Eu tive um privilégio triplo, pois joguei com ele, fui seu treinador e convivi com ele fora de campo. Não digo, como perguntado, que é meu ídolo, mas foi um jogador marcante para mim.

Escale o melhor time com quem você jogou?

Caramba, é sério isso? Essa é complicada para responder. O melhor time com quem eu joguei? Vamos lá: Primeiro tempo eu começo com Manga e depois entra o Raul; Leandro, Mozer, Figueroa e Júnior; Andrade, Falcão e Zico; Tita, Nunes (Claudiomiro), e Adílio (Lula),

Como tem enfrentado o Covid-19?

Encaro essa pandemia com um cuidado especial, pois sou a favor das vacinas. Recebi as duas doses dela, uso máscara, álcool em gel a todo instante e fui e continuo sendo um respeitador dos protocolos sanitários exigidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Dito isso, acho que tem muita demagogia nisso aí e algumas contradições. Por exemplo, eu tive Covid-19 em janeiro deste ano e perdi o olfato. Mas acontece que eu havia fazendo o tratamento precoce e o preventivo. Não sei se tem fundamento, mas para mim e para um ‘mundaréu de gente’ que eu conheço e que fizeram o mesmo que eu fiz, conseguiram sobreviver. Tenho alguns amigos que não fizeram esse tratamento de ser medicado logo no segundo dia. Você consegue ter essa superação e vencer este vírus. Agora, deixar passar uma, duas semanas e querer fazer esse tratamento com os antibióticos, não dá. Ou seja, você pode até se salvar, mas que vai ser necessário ser intubado e vai passar um ou dois meses no hospital, não tenho dúvidas. Manter o distanciamento social é tão importante quanto o tratamento precoce. Eu fiz, minha esposa e filhos fizeram e não tivemos problema nenhum. Acredito que esta doença é muito pessoal e quem contrai o vírus, vai tratá-lo da maneira mais conveniente. E vejo isso sendo, politicamente falando, muito criticado, e não deveria ser assim. O importante é cada um cuidar de si. Muitos querem vender a ideia de que tratamento precoce não existe e garanto que não é assim. O tratamento preventivo salvou muitas pessoas.

Em uma única palavra, como você definiria o Paulo César Carpegiani?

Simplicidade. Eu era um jogador simples e isso me possibilitou jogar em dois grandes clubes do futebol mundial que foram Internacional e Flamengo, além de disputar duas Copas do Mundo como jogador e técnico.

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