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O AMERICANO DE SANTO CRISTO

14 / outubro / 2020

por Paulo-Roberto Andel


Naquele tempo os times só conseguiam dinheiro se jogassem. A arquibancada era a principal fonte de receita financeira. E por isso, em plena Copa do Mundo de 1982, com a Terra inteira olhando para Sócrates, Falcão e companhia, o Maracanã abriu várias vezes para as partidas do Torneio do Campeões de 1982, praticamente uma versão reduzida do Campeonato Brasileiro.

Gostando de futebol e querendo ver outras partidas além das do meu Fluminense, o que me restava? Administrar a mesada e dividir direitinho para poder ver o máximo de jogos na geral, o setor mais popular e barato do Maracanã. Foi o que fiz. 

Além do Flu, vi também o Vasco num 0 a 0 com o São Paulo. Jogo ruim para os vascaínos num raro domingo à noite – antigamente só no Sul é que se tinha partidas neste horário -, vaias e um pênalti perdido pelo poderoso artilheiro Roberto Dinamite, cuja cobrança vi atrás do gol, bem de pertinho como a geral permitia. Se era difícil enxergar os lances, por outro lado a gente tinha a sensação de que fazia parte do jogo, de que estava dentro do campo. Quando o gol saía, lá estava a gente na televisão feito os figurantes mais felizes do mundo. 

Eu gostava do America. Gostava bastante. Talvez fosse meu segundo time, talvez eu tivesse ficado encantado pelo bandeirão vermelho que abriram num empate com o Flu em 1979. E então veio um jogo contra o Atlético Mineiro, decisão de vaga na competição. 

Tinha um garoto que era fanático pelo America. Estava sempre com sua camisa e escudo rubros, bandeira na mão, boné e radinho. Gostava de ficar na geral entre o escanteio invertido à direita da Tribuna de Honra e a primeira trave. Num jogo vazio nos conhecemos e vimos algumas partidas juntos. Eu tinha treze anos, ele já devia ter uns dezesseis por conta do bigodinho que usava. E torcia, torcia, torcia demais. Eu achava bacana que ele torcesse tanto por seu time, que não ganhava títulos há tempos, era bonito aquilo. Com o tempo, entendi que todos querem ser campeões mas torcer não tem a ver com a obrigação de títulos e sim com a paixão. 

Oi. Beleza? Legal você estar aqui. Vamos torcer. Sangueeeeeee!

Jogo duro, pouca gente, frio de domingo. Quando as partidas começavam às cinco da tarde, geralmente o segundo tempo tinha cara de noite. Não foi diferente. 

Meu amigo com caras e bocas de sofrimento atroz, eu torcendo pelo America, por ele, pelas pessoas que ali estavam. O Flu ia jogar noutro dia, podia esperar. Ali era tudo ou nada para o Diabo da Campos Sales. Zero a zero, zero a zero. Zero a zero. 

No último minuto, aconteceu um bate-rebate na área. Alguém furou.  A gente estava no lugar de sempre: escanteio invertido à direita da Tribuna. Elói chutou. Francisco Chagas Eloia, não esqueço o nome. Gol. Gol! Gol de Elói no último minuto, America classificado.

Meu amigo me deu um abraço, outro e começou a chorar. Eu nunca tinha visto um garoto chorar de alegria, nem eu mesmo tinha chorado. Chorou muito e gritou muito quando o árbitro logo encerrou o jogo. Foi uma lição para mim: eu me sentia tão triste porque o meu time mal tinha dois anos sem título e, ali, o meu amigo que nunca tinha visto uma volta olímpica mostrava todo o seu amor pelo seu grande clube. Então aprendi que, no futebol, títulos são importantes mas não são eles que determinam o amor de alguém por aquele jogo fascinante que, há dois séculos – e desde muito antes – mexe com a alma da gente pelo mundo inteiro. 


Havia pouca gente no Maracanã, mas lembro das pessoas gritando muito na saída, tanto no corredor soturno da geral quanto na rua. Trocamos outro abraço. Ele me agradeceu porque via os jogos sozinho e, segundo sua opinião, quando nos conhecemos, eu tinha trazido sorte para o nosso America. Eu devia ter contado a ele que era Fluminense, mas acabei não falando. Então nos despedimos e ele seguiu para a estação de trem, para depois chegar em Santo Cristo. Estava muito feliz. Qual será seu nome? Não sei dizer.

Virei à direita na Avenida Maracanã e, quando passei pela majestosa Estátua do Bellini, quase não havia gente, exceto um vendedor de cachorro quente e umas três pessoas. Então resolvi fazer um lanche antes de atravessar a rua, pegar o 434 e fazer uma viagem até Copacabana. 

O America seguiu em frente e acabou campeão, Campeão dos Campeões. A Seleção, que era o grande assunto daquele Brasil, acabaria eliminada pela Itália. Ainda voltei muitas e muitas vezes à geral, aí praticamente só pelo meu amor tricolor. Um dia, a força da grana e da ganância destruiria o palco dos meus sonhos de garoto. 

Tomara que meu amigo americano de Santo Cristo continue vivendo aquele sonho permanente do futebol, o choro, o gol. As coisas estão difíceis para o America mas o sonho não pode morrer. Estão difíceis para o futebol brasileiro na verdade. O Maracanã era o sonho de dois garotos abraçados, que nem precisavam torcer pelo mesmo time para saber o que é que um jogo significava. 

Lembro dele indo para a estação de Derby Club. Faz muito tempo. 

Nunca mais o vi.

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