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NÃO É SÓ FUTEBOL

17 / setembro / 2020

por Paulo Roberto Melo


Pode parecer chatice, mas nunca gostei de ver jogos de futebol decisivos, pela TV, na companhia de amigos. Sempre achei que esse negócio de fazer festa antes da hora, de ver jogo, enquanto faz churrasco e toma cerveja, não é a melhor escolha em partidas importantes. Acredito que para se ver jogos decisivos há toda uma liturgia, que inclui uma preparação solitária, regada a uma boa dose de nervosismo, que, vai aumentando à medida que o início do jogo se aproxima.

Creio que é justamente esse clima tenso que sempre fez com que preferisse assistir aos jogos recolhido no aconchego da família ou mesmo sozinho. No caso da família, meu pai, meus irmãos e eu, tínhamos uma cumplicidade na hora dos jogos. Fazíamos comentários e usávamos expressões que só nós entendíamos, tais como: “Deixa de ser displicente!”; “Você não está jogando no quintal da tua casa!”; “Não precisa marcar ele não, porque esse a natureza marca!”; “Sai planta!”; “Tá jogando como um autêntico center-half!”

Claro que havia xingamentos e gritos desesperados. Era legal também os apelidos com que chamávamos os jogadores dos dois times e até alguns árbitros. Apelidos que nós mesmos inventávamos, com base nas feições, no porte físico, nos nomes dos atletas ou em alguma situação do próprio jogo. A maioria desses apelidos eram criados pelo meu pai, que era um mestre na arte de perceber certas peculiaridades, certas características e, a partir daí, inventar os epítetos mais cômicos, como se estivesse desenhando uma caricatura.

Outro motivo pelo qual eu sempre evitava sair da minha conveniente concentração e preferia recusar os convites que vez por outra me faziam eram os convidados para esse tipo de evento, partidas decisivas com churrasco e cerveja. Torcedor pé frio, pessimista, imbecis que não gostam de futebol mas apreciam picanha ao ponto e cerveja gelada, torcida neutra, gente que se fantasia para ver jogo, tudo isso, indiscutivelmente, tem um enorme potencial para atrapalhar o bom andamento de uma partida. (Sim, ou vocês acham mesmo que o que determina uma vitória ou um título é só o futebol jogado dentro das quatro linhas?)

Sabe-se lá por que cargas d’água, em 1986, durante a Copa do Mundo disputada no México, acabei aceitando um convite para ver Brasil x França, pelas quartas de final. Era apenas uma reunião de amigos, pelo menos não haveria churrasco.

Que não me acusem de falta de patriotismo, mas confesso que o meu amor pela seleção brasileira não consegue ser maior do que o que sinto pelo Vasco. A perda da Copa de 1982, com uma seleção recheada de craques que jogavam no Brasil, foi determinante para confirmar esse sentimento. Sem contar o posterior êxodo desses mesmos craques. Como se não bastasse, a preparação para a Copa de 86 foi pra lá de turbulenta.

Depois da Tragédia do Sarriá, a seleção brasileira patinou. Após a saída do técnico Telê Santana, o time teve outros três técnicos (Parreira, Edu e Evaristo de Macedo), diversos jogadores foram convocados, uns bons outros nem tanto. Aí, um ano antes da Copa, entregaram novamente o comando ao mesmo Telê, quer dizer, ao invés de uma renovação, tivemos um revival. Tudo isso, fez com que eu e muita gente tratássemos esse jogo de quartas de final, como apenas mais um (talvez por isso eu tenha aceitado aquele malfadado convite).

Eu havia visto todos os jogos do Brasil naquela Copa em casa e as coisas até que caminhavam bem. As duas vitórias, com um magro 1×0, nos dois primeiros jogos, contra Espanha e Argélia, não empolgaram, mas tudo bem. Depois da derrota de 82, havia se instaurado uma questão: jogar a Copa dando show e não ganhar (como a Hungria de 54, a Holanda de 74 e o próprio Brasil de 82) ou jogar mais ou menos, ir crescendo na competição e ganhar a Copa (como a Itália de 1982)? Isso porque o futebol apresentado pela seleção de 70, que deu show e ganhou a Copa, parecia (e creio que até hoje é) algo inatingível.

Fechando a primeira fase da Copa, o Brasil enfrentou a Irlanda do Norte e os 3×0 deram a esperança de que talvez algo pudesse ser diferente. Principalmente, por causa do segundo gol, na verdade, um golaço marcado pelo Josimar. Lateral direito do Botafogo, reserva na seleção (o titular Edson havia se contundido), simbolizava a capacidade incrível do futebol brasileiro de se renovar.

O jogo contra a Polônia pelas oitavas de final, consolidou a esperança do tetra. O Brasil ganhou de 4×0 e,se não deu show, pelo menos convenceu, com um futebol bem envolvente. Aquele jogo confirmou algumas coisas. A primeira: que, com aquele outro golaço marcado nesse dia, Josimar poderia ser considerado ser o craque do time. A segunda: que o Careca estava jogando demais! Com jogadas rápidas, implacável nas finalizações e extremamente perigoso, nosso centroavante nos fazia lamentar a sua ausência na Copa de 82, contundido às vésperas do mundial. E a última confirmação era sobre ele: Zico. Sem ter condições de disputar uma partida inteira, por conta do joelho recém-operado, que inchava depois dos jogos, o craque se tornou uma arma de segundo tempo. Entrou contra a Polônia, sofreu o pênalti que sacramentou os 4×0 e dessa forma alimentou o imaginário do torcedor brasileiro. 


Assim, dezesseis anos após o nosso último título, uma seleção brasileira, envelhecida e traumatizada pela derrota de 82 (com os remanescentes Carlos, Edinho, Júnior, Sócrates, Falcão, Zico) e, com alguns jogadores contundidos (Edson, Zico, Falcão), iria decidir sua caminhada em gramados mexicanos, enfrentando a temida frança nas quartas de final.

 Cheguei ao apartamento da família do Chico faltando quinze minutos para começar o jogo. O quadro era o seguinte: havia bolas de gás penduradas no lustre, duas TVs de 20 polegadas colocadas lado a lado na sala e três amigos, Felipe, Carlinhos, Marcão sentados no chão; no sofá estavam o dono da casa e o pai dele. Timidamente, eu me acomodei entre os dois, no sofá. Estava pouco à vontade com aquilo que, para mim, parecia uma multidão enlouquecida. Por fim, alguns minutos depois, quase na hora de a bola rolar, ainda chegou o Márcio, que também havia sido convidado trouxe com ele – vocês imaginem o sacrilégio, o perigo, o prenúncio de catástrofe… – a namorada…

Eu sei que, hoje, isso soa como um comentário machista, mas, advogado de mim mesmo, eu digo em minha defesa que em 1986 tudo era diferente. Até o início da década de 80, por exemplo, mulheres nos estádios (sobretudo as vestidas com roupas justas ou curtas) ainda eram brindadas nas arquibancadas com corinhos nada gentis a respeito de uma suposta licenciosidade de suas vidas. Então, o fato é que, ao ver a menina, não tive um bom pressentimento. Meu medo era que algum comentário infeliz pudesse influir no resultado do jogo, tipo o Brasil faz gol em qual lado, ou cadê a bola, coisas assim. Porém, como já estávamos todos lá, naquela corrente pra frente, não havia muito o que fazer.

O jogo começou e, como todo mundo sabe, foi terrível. O Brasil abriu o placar (Careca) e jogava a sua melhor partida naquela Copa. No final do primeiro tempo, a França empatou (Platini). Mesmo com as pessoas em volta, eu tentava me isolar, numa tentativa de não deixar que aquele ambiente prematuramente festivo me contagiasse, mas era difícil. Além disso, a França tinha um timaço! Havia feito uma ótima Copa em 82 e sido campeã da Europa em 84. Chegou na Copa do Mundo como uma das favoritas, com um elenco de craques, como Fernandéz, Tigana, Giresse e, o maior deles (senhores, fiquem de pé), Michel Platini.

O segundo tempo foi igual ao primeiro: tenso, com as duas seleções muito cautelosas, afinal, com tantos craques em campo, qualquer descuido poderia ser fatal. Mas se a França tinha sua legião de craques, o Brasil tinha a sua arma de segundo tempo: ele, Zico! Nosso craque entrou e praticamente na primeira bola que pegou, fez um passe perfeito para o lateral esquerdo Branco, que, dentro da área, tentou driblar o goleiro Bats e foi derrubado. Pênalti! Festa no Estádio Jalisco, festa no pequeno apartamento! Numa decisão controvertida, foi decidido que o Zico, frio, sem ritmo, meia-bomba, bateria o pênalti, e, enquanto o nosso camisa 10 se preparava, a tensão no país alcançou níveis estratosféricos.


A cobrança de um pênalti exige um ritual todo especial para quem está assistindo a um jogo pela TV. Unhas roídas, cabelos arrancados e, principalmente, silêncio. Os poucos segundos entre a corrida do cobrador até o chute na bola precisam ser vividos pela assistência no mais absoluto silêncio. Não foi o que aconteceu. Quando o Zico partiu para a bola, uma voz feminina, arauto do desastre, rompeu o silêncio:

– Ai, gente! Eu acho que ele vai perder…

O chute saiu fraco, e todos nós sabemos o que aconteceu

Após aquele breve segundo da dor do golpe, instalou-se o caos na sala do apartamento. O Felipe, sempre grosso e mal educado, virou-se para a garota aos gritos, culpando-a pelo pênalti perdido. Lógico que tinha sido ela, mas não precisava dizer. O namorado da infeliz, não gostou dos impropérios proferidos contra a menina e partiu pra briga. Resumindo, por muito pouco, em vez de o desenrolar de uma partida de futebol, não acabamos todos assistindo a um espetáculo de luta livre. E eu lá, sentado no sofá, cabisbaixo, em meio a ameaças, gritos e palavrões, morrendo de saudade de casa.

Aquele 21 de junho de 1986 já faz parte da história. O jogo e a prorrogação terminaram empatados e o Brasil foi eliminado na disputa dos pênaltis, com um insólito gol contra do goleiro Carlos. Depois que acabou o jogo, eu e o Carlinhos íamos caminhando pelas ruas, ainda desertas e tristes, quando vimos uma senhora chorando.

– O Brasil perdeu, o Brasil perdeu!

O Carlinhos, gentilmente, tentou consolá-la.

– Senhora, não chora! É só futebol!

Hoje, ao relembrar esse fato, tenho dois sentimentos. Um deles é de saudade. Sinto uma saudade imensa de ver jogos com meu pai e meus irmãos, seja pela TV ou no estádio. Os jogos a que assistíamos juntos marcaram a minha vida de tal forma, que nem as mortes do meu pai e do meu irmão mais velho conseguiram apagar as lembranças.

O outro sentimento é uma certeza. Nunca o futebol é só futebol. Seja torcendo pela seleção, seja pelo nosso time, rituais cabalísticos à parte, é por meio das emoções potencializadas na dor das derrotas e na euforia das vitórias, que construímos a consciência de quem somos como pessoas – estejamos em família, com amigos ou sozinhos.

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