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LÁGRIMAS SÚDITAS

4 / janeiro / 2023

por Rubens Lemos

Ao deitar na noite de 29 para 30 de dezembro, rezei o Pai Nosso, o Santo Anjo, a Ave-Maria. Rezei o hino do Santos. As três orações faço para mim mesmo, no monólogo com Deus desde menino. A quarta canção foi mais um momento em que chorei por Pelé. Uma semana depois de sua morte, sinto a perda de alguém amado, a minha avó, Maria do Carmo, por exemplo.

À confirmação da notícia que sabia inevitável, fiquei paralisado, olhei devagar para a TV esperando algum engano e desabei em prantos. Sentei na cama, pus as mãos protegendo a cabeça e derramei o manancial de uma década de tristezas. Pelé era para mim, da geração imediatamente após a sua despedida dos gramados, ficção científica comprovada.

Agradeço ao videoteipe as imagens que guardo e vou revendo, ora no aparelho de DVD ou nas redes sociais, menos nos programas esportivos de TV por assinatura, porque a imagem do Rei em vida me corta por dentro e meu rosto fica inchado de melancolia.

Pelé vivo era aquele herói que sabíamos contar em caso de encrenca. Mesmo sem jogar, seu carisma no sorriso de estampa nos tranquilizava. Pelé deu entrevista, Pelé comentou algo, Pelé elogiou tal jogador – sempre por gentileza, pois ele sabia mais do que ninguém que jamais um mortal estaria em sua retina de monarca.

Houve um episódio, em junho de 1980, quando a Rede Globo exibiu o especial O Sonho do Menino de Três Corações, em comemoração aos 10 anos do tricampeonato de 1970, no México, a melhor seleção da história em miscelânea com a de 1958. Meu pai via comigo o programa e, quando Pelé subiu mais alto que a defesa italiana e fulminou Albertosi, fazendo o 1×0 dos 4×1 sobre a Itália na final, meu velho desabou. Consigo recordar uma frase: “As jogadas de Pelé amenizavam a dor que sofria.”

Consolei meu pai que, a título de informação, apenas, sem juízo de valor, era militante de esquerda e foi exilado político no Chile e torturado 44 dias no Brasil, tendo todos os dentes e unhas arrancados. E adorava Pelé, sempre cobrado por seus companheiros por posições ideológicas que não lhe cabia tomar.

A maior pancada no regime vigente, Pelé deu ao dizer não à Copa de 1974, recebendo sutis provocações e acusações de falta de patriotismo. Para azar dos mais violentos da repressão, tocar em Pelé seria impossível, seria a revolução que ele fazia toda quarta e todo domingo no Santos ou no escrete canarinho, ele que fez da camisa 10, símbolo de superioridade.

A morte de Pelé se soma a uma avalanche de tristezas que me acometem e que combato com tratamento recomendado e comoção. Em leituras ou reprises de cinema. Ainda não criei coragem de rever Isto É Pelé, Pelé Eterno e Fuga Para a Vitória, as três principais produções estreladas por Pelé, que esteve em 18 filmes, um deles, Pedro Mico, malandro carioca, eu assisti no velho Cinema Nordeste no centro de Natal.

Desavisado, me deparo com Pelé dando lençol no sueco na decisão de 1958. Choro. Reaparece o drible indescritível seguido de chute venenoso no zagueiro de País de Gales no apertado 1×0 que nos levou às semifinais e ao baile sobre a França por 5×2. Os olhos marejam.

Surgem Pelé e Maradona tabelando de cabeça. O Rei aos 65 anos, elegante, impecável, acertou todas. Dieguito segurou a bola por saber que seu toque jogaria a bola no chão. Sinto aquele cansaço inútil dos órfãos.

Lá vem o passe de Pelé para Carlos Alberto fazer Brasil 4×1 Itália. Nenhuma fita métrica seria tão perfeita. Mesma régua que deixa Jairzinho livre para fuzilar Gordon Banks. Me emociono. E sou passional por currículo de pancadas, minhas perdas afetivas são fraternas. Pelé é uma delas.

Não acompanhei seu funeral. Pelé e caixão, incompatíveis. Me sinto assim numa arquibancada cheia, dois times perfilados, árbitros e duas ausências irreparáveis. Pelé e a bola, fugitiva solidária. Se estou chorando? Óbvio.

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