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Rubens Lemos

ÍDOLOS E MULTIDÕES

por Rubens Lemos

Impossível ignorar o saudosismo na guerra santa do ABC x América. O painel de emoções volta a brilhar no coração de cada privilegiado por ver jogos inesquecíveis no fim da Era Juvenal Lamartine e no frenesi de uma tarde de domingo no gigantismo ondulado do Estádio Castelão (Machadão).

Na década de 1970, há ligeira vantagem do ABC (6×4) em títulos conquistados. O alvinegro foi tetracampeão 1970/73, com destaque para o timaço do último ano, meio-campo eleito o melhor do século passado: Maranhão, Danilo Menezes e Alberi.

O ABC ganhou ainda em 1976 – primeiro ano contra o astro-rei Alberi no América e 1978 somando seis taças contra quatro do América. O time rubro foi bicampeão em 1974 e 75, aposentando boa parte do antes imbatível esquadrão do rival e apresentando um craque capaz de dividir o protagonismo com Alberi.

Era o gigante Hélcio Jacaré, que desafiava a Física com seu corpanzil de jogador de futebol americano, exibindo toques refinados, dribles curtos e chutes potentes.

Para vencer o ABC e quebrar o tabu de quatro anos, o América montou uma orquestra cujo maestro era o técnico Sebastião Leônidas, zagueiro do forte Botafogo de Gerson, Jairzinho e Paulo Cézar Lima, no final dos anos 1960.

O Castelão – nome dado em homenagem ao Marechal Castelo Branco, um dos presidentes do Regime Militar, superlotava a cada duelo. Se a decisão de 1972 levou apenas 10 mil pagantes ao novíssimo estádio, no ano seguinte, 43.144 torcedores ocuparam arquibancadas, gerais e cadeiras numeradas e especiais, para assistir aos 4×2 do ABC sobre o América na finalíssima.

Em 1974, o América conseguiu dois feitos importantes. Derrotou o ABC no Seletivo para o Campeonato Nacional, cujo tira-teima levou 42.119 pessoas para assistir à classificação vermelha na prorrogação, gol de cabeça do meia e ponta-esquerda David.

No estadual, sob o comando de Hélcio Jacaré e com o adversário envelhecido, o América ganhou dois turnos dos três disputados e levou seu primeiro troféu no gramado de Lagoa Nova com o empate por 0x0.

Mudanças

O América azeitava sua máquina e o ABC começava a trocar peças em 1975, substituindo o goleiro Erivan, o lateral-direito Sabará, o quarto-zagueiro Telino, o ponta-direita Libânio, o centroavante Jorge Demolidor e o ponta-esquerda Morais.

Trouxe nomes de qualidade, como os meias Samuel, do Ceará e Zé Roberto, do Palmeiras, mas o América desfilou para o bicampeonato vencendo a última partida por 3×1, gols de Washington, Hélcio Jacaré e Ivanildo Arara, com Samuel descontando para o ABC.

Em 1976, a apoteose popular. Fora de campo, os cartolas fermentavam a rivalidade com o América contratando Alberi e o ABC comprou o jovem atacante Reinaldo, nome principal da retomada da supremacia local. Reinaldo fez o ABC campeão e, antes da final, estava vendido ao Santos(SP).

Em nove pelejas ABC x América disputadas em 1976, 294.529 pessoas passaram pelas bilheterias do Castelão, como se 86% da população da capital tivesse ido às partidas. Natal, segundo o IBGE, contava 343.166 habitantes.

Em 1977, a famosa briga campal entre os 22 jogadores decidiu um campeonato acirrado, em que o ABC venceu o primeiro turno e perdeu os dois seguintes, dando América com o 0x0 no tumulto. Com um time renovado, o ABC ganhou em 1978. O América venceu nos pênaltis em 1979, ano em que pontificou o folclórico artilheiro Oliveira Piauí.

O América dominou a década de 1980 (6×2), conquistando um tetracampeonato nos primeiros anos e um tri no final. Foram seis canecos para a sede da Avenida Rodrigues Alves. O ABC ganhou em 1983 e 1984 e o Alecrim ressuscitou temporariamente levando os títulos de 1985 e 1986.

Os anos 1990 foram alvinegros em considerável maioria com sete conquistas, destaque para o primeiro tricampeonato no Castelão, rebatizado de Estádio João Machado(Machadão) em 1993/94 e 95 e para a vitória espírita de 1999(1×0), gol contra do zagueiro Marcelo Fernandes batendo de efeito contra as próprias redes.

Marcelo Fernandes errou quando tentava chutar a bola para o ataque. O América foi bicampeão em 1991/92 e venceu também em 1996, ano em que alcançou o primeiro acesso para a Série A do Campeonato Brasileiro.

O REI E A DIVA

por Rubens Lemos

Na fotografia, Maria Creuza, uma das melhores intérpretes da Bossa Nova, está entregando a Bola de Prata de melhor atacante do campeonato nacional de 1972 a Alberi, o Negão, o Deus do ABC. A Revista Placar registrou e publicou na época. Reizinho, filho de Alberi, postou na internet. No programa Airton e Lolita, da TV Tupi.

Faz quatro meses e cinco dias da morte de Alberi. E a saudade dele ainda dói em mim. Quando Alberi estava doente, havia a mobilização dos amigos e ele sempre resistia. No dia 28 de outubro, o corpo que nós, mortais, julgávamos infalível, descansou.

Então, na cruel e natural sequência da vida, a velocidade inalcançável das redes sociais vai eliminando sentimentos; amor, solidariedade, amizade, alegria, idolatria e nostalgia. Alberi é eterno. Ouço a canção de Cartola na voz de Maria Creuza e concordo com o título: Pouco Importa. A morte não venceu o Negão.

CARNAVAL E OUTRAS HISTÓRIAS

por Rubens Lemos

Andávamos em pequenos bandos sem destino pelas ruas do Tirol. De todos os moleques, eu respirava futebol por ser o único brinquedo permitido e havia decidido, comigo mesmo, fazer do velho Estádio Juvenal Lamartine meu refúgio. Quantas e quantas vezes fui até o JL apenas para contemplá-lo e imaginar as jogadas dos craques fundamentais de sua história.

Quando estava sozinho, ocupava a arquibancada sempre vazia do lado esquerdo da Tribuna de Honra para quem entrava pelo portão principal. Lá, me entregava a devaneios. Desenhava sonhos ouvindo na imaginação, a gritaria de torcedores ausentes nas jogadas dos ídolos de chuteiras penduradas ou mortos.

O início dos anos 1980 foi fundamental para mim. Aos 10 anos, comecei, de fato, a me descobrir. Era um corriqueiro, um trivial, alguém despercebido em qualquer aglomeração mínima. No deserto do estádio que parecia cemitério de glórias, me via aconchegado, encorajado pelos que ali brilharam e saíram da história para desaparecer na vida.

Então, praguejava os domingos de carnaval. Praguejava o carnaval inteiro que nos deixava, a mim, a minha avó, os meus irmãos e a minha mãe, ilhados na velha casa, cidadela de nossa sobrevivência. Muitos iam às praias, outros saíam em blocos de carnaval de elite, onde se agrupava a juventude aquinhoada da cidade.

Domingo de carnaval, o Juvenal Lamartine, sempre com uma pelada a compensar meu isolamento, também estava fechado. Acreditem, passava alguns longos minutos parado em frente à bilheteria quebrada em algum jogo dos anos 1960 até 1972, ano em que oficialmente o mundo da bola mudou-se de armas, bagagens, jogadores e torcedores para o Castelão, o colosso da Lagoa Nova, distante de onde morava.

O que fazer na monotonia de um carnaval sem sabor? Mexia no controle da televisão, desprezava a programação festiva e procurava algo para ler. Sei que me dedicava à antiga e majestosa Enciclopédia Barsa, pobre luxo consentido à nossa família de classe média abaixo da baixa.

Levado por alguns colegas de rua, mais conformados do que eu, saía desanimado para assistir os preparativos da juventude hoje na casa dos 60 anos em alegorias iguais. A diferença estava no desenho de cada bloco. Lembro-me de quatro: Saca-Rolha, Bakulejo, Ressaca e Puxa-Saco.

Era um movimento próximo ao tédio em que vivia. Os blocos circulavam pelo Tirol, invadiam casas de gente rica nos famosos assaltos e seguiam para o desembocar triunfal na suntuosa sede do América, na Avenida Rodrigues Alves, hoje um fantasma das noites intermináveis de folia.

Via alguns conhecidos nos blocos, cogitava acenar para eles, mas perguntava o motivo. Por que me comunicar com quem estava entregue à esbórnia? Dominado pelo álcool e substâncias proibidas como o Cheirinho da Loló, que chegou a matar do coração um jovem de 18 anos, jogador da seleção potiguar de voleibol.

Eles viviam um mundo e o meu planeta era outro, estava em recesso por quatro longos dias, que pareciam 400 para um garoto simplesmente fascinado pelo jogo de bola, da pior qualidade ao clássico ABC x América.

A rotina anual me cansava e minha tristeza surgia 10 dias antes. Até que uma tragédia sacudiu a cidade e silenciou as orquestras. Um ônibus foi jogado sobre uma pequena multidão na Avenida Rio Branco, matando 19 pessoas.

Mesmo com a dor multiplicada e o cheiro de morte empestando Natal, os mortos foram esquecidos e o carnaval de rua aconteceu naquele fatídico 1984, quando estava com 14 anos incompletos. A decisão de manter a festa me deu engulhos de revolta. As vitimas nem haviam esfriado e os vivos comemoravam numa demonstração clara de que quem morre, se estrepa.

Eram assim meus carnavais de adolescente. Mornos. Até que na quarta-feira de cinzas, reabriam o Juvenal Lamartine à noite para uma pelada da segunda divisão, para mim, o maior clássico do mundo.

Mamãe tentava proibir minha saída à noite, vovó avalizava (ela nunca deixou de estar comigo). Revia o futebol, na iluminação sombria do Juvenal Lamartine. Em silêncio, por dentro da alma, ali estava o carnaval só meu. Óbvio e, confesso, egoísta.

ZICO E O PÊNALTI

por Rubens Lemos

Lembro que era sábado 21 de junho e fazia 16 anos do tricampeonato mundial do México, onde o Brasil brilhou com Pelé, Tostão, Gerson, Rivelino e Jairzinho. Naquele dia, eu estava tenso. Enfrentaríamos, lá no México, a tinhosa França, timaço com meio-campo harmônico igual a um coral parisiense: Tiganá, Giresse, Platini e Fernandéz.

Brasil x França em 1986 parou o mundo. Valia vaga para a semifinal e a nossa seleção estava alquebrada e em nada parecia com a de 1982, a dos desfiles espetaculares na Espanha. Telê Santana era o técnico.

Vascaíno, 15 anos, sofrera porque meu time não tivera um só convocado. O Vasco estava tinindo, campeão da Taça Guanabara. Pelo menos quatro jogadores poderiam estar entre os 22. Acácio era melhor goleiro do que Gilmar. Paulo Roberto cumpriria bem a função de lateral-direito, desnecessária pela explosão do macunaímico Josimar do Botafogo.

No meio-campo, é cristalina verdade, Geovani superava Elzo, Alemão e Valdo, este último levado apenas para passear. Se convocaram o péssimo de bola Casagrande, por que não Roberto Dinamite em plena forma ou Romário resplandecendo? Telê não gostava do Vasco.

Desfigurava-se o timaço de 1982. Leandro abandonou o grupo na hora do embarque para o México, alegando falta de condições de jogar na lateral, por conta dos sofridos joelhos. Estava impecável de zagueiro-central no Flamengo, o que nada significava para Telê. Cerezo foi cortado. Falcão refletia cansaço, Sócrates, tédio. A comoção chamava-se Zico.

O Galinho de Quintino, melhor jogador que assisti ao vivo, fora criminosamente atingido em 1985 pelo carrasco Márcio Nunes, do Bangu, que esfolara seu joelho. Um lance que, visto no Youtube, em mim provoca assombro e ódio. Márcio Nunes foi o primeiro responsável pelo fracasso que viria.

Zico treinava, Zico reforçava a musculatura da perna, Zico uivava de dor, Zico fazia o Brasil rezar, Zico extrapolava na fibra dos guerreiros, Zico lutava para jogar parcos minutos que a dor lhe permitisse. Zico me emocionava.

O sábado começou cedo na resenha de nossa patota no bairro do Tirol, em Natal. O medo era unânime. Como analgésico emocional, dizíamos: eles têm Platini, Zico é nosso. O gênio da Gávea havia entrado contra a Irlanda do Norte e a Polônia e imposto categoria, dribles, lançamentos, enxergado espaços que os antecessores não viam.

Acompanhei o jogo sozinho diante do aparelho de TV de minha avó. Estar só é uma decisão do destino sobre minha vida. A tensão deu vez ao grito histérico quando Muller, Júnior e Careca triangularam para Careca fuzilar o goleiro Batts:1×0. O Brasil tocava a bola pondo os bléus para rodar. Até que uma falha coletiva da defesa proporcionou o empate, gol de Platini.

Grande goleiro, Carlos sempre foi um tremendo azarado. Até ali, não passara nada para dentro de suas redes. O gol de Platini era a esperança, combustível dos pobres, indo embora. Um baque.

Até Telê botar Zico em campo no lugar de Júnior. Ao receber o primeiro passe, enfia na medida para Branco, derrubado por Batts. Pênalti que valeria estátua. Zico bateu e perdeu. Eu chorei. Por Zico, não pela seleção.

Torturantes minutos na prorrogação e a detestável disputa por pênaltis. Sócrates, em acesso de irresponsabilidade soberba, bateu e Batts pegou. Sócrates encostava o pé à bola, em rebolado imperdoável e batia no canto para o qual olhava. Batts se jogou e espalmou.

Júlio César também perdeu. A França comemorou a vitória, ainda que Platini tenha chutado a sua cobrança para o alto. Zico, que tantos massacram moralmente, bateu o seu e marcou. Ninguém fala, ninguém lembra ou quer lembrar.

Ao fim de tudo, relutei em ir a um aniversário de criança. Queria um travesseiro e um interruptor capaz de me desligar do mundo. O jeito de Zico olhar o céu após a derrota, ele e o infinito, acabou de me matar aos 15 anos.

“Nunca verei o Brasil campeão!”, berrei em prantos. Queria dar um abraço em Zico. Queria repetir que, se ele não seria campeão da Copa, problema dela, a Copa. Tive que ir ao aniversário à força. Fui de corpo. Minha alma estava em Zico.

ESCRAVO DA SAUDADE

por Rubens Lemos

Sou escravo da saudade no Futebol. O atual Vasco jamais será o meu. Meninos são iludidos por contratações de bagulhos que não merecem a camisa agrada vestida por astros de primeira grandeza. O Vasco do meu tempo era cinematográfico, sempre liderado pelo proprietário das emoções, Roberto Dinamite. Comecei a ser escravo das lutas cruzmaltinas em 1977, time com Zé Mário, Zanata e Dirceuzinho no meio-campo, Wilsinho ou Fumanchu, Roberto Dinamite.

Ainda que passássemos cinco anos sendo vice-campeões, era justo assistir os combates porque perdíamos com honra,sem jamais tomar goleadas. Éramos inferiores ao time de Zico, mas também sofríamos com arbitragens sacanas que marcavam pênaltis surreais e invertiam faltas para atrapalhar nossas reações.

No passeio ao passado, nada me emociona mais do que o time bicampeão em 1987 e 1988. Sou devedor daqueles caras. Sou admirador número 1 de Geovani(foto), o melhor meia-armador do clube, com todo respeito a Jair Rosa Pinto, Zanata e Juninho Pernambucano. Aos três, faltava a ginga do baixinho trazido do Espírito Santo aos 17 anos.

Geovani era um mágico. Descobria espaços invisíveis para encontrar Roberto Dinamite e Romário livres para balançar as redes adversárias. Geovani dava canetas em Renato Gaúcho, humilhava o maravilhoso Andrade em fintas secas, costurava Ailton e Adílio em espaços milimétricos na relva do Ex-Maracanã, o estádio dos desdentados da Geral. Até Zico tomou lençol.

Em 1988, quando comecei no jornalismo, o Vasco deu cinco surras seguidas no Flamengo. A primeira, no segundo turno, 1×0, gol do falecido volante Henrique. A segunda, um baile de 3×1 sem Romário e com Geovani jogando pelos dois.

Depois, a sensacional virada de 2×1 na primeira partida das finais, Bebeto abrindo o placar para os rubro-negros, Bismarck empatando e Romário dando lençol para definir o placar, com o goleiro Zé Carlos desesperado, tentando esmurra-lo.

Na última do Campeonato Carioca, o Flamengo sufocou o Vasco. Até que o lateral-direito reserva Cocada, que havia sido dispensado pelo adversário, arrancou do seu campo e fuzilou o goleiro Zé Carlos(1×0). O quinto triunfo foi no Brasileiro, 1×0, gol do então menino Sorato.

Aquele time é um sonho que volta para mim em pensamento e imagens de arquivo. Nunca mais haverá outro igual. Forte, cheio de personalidade e talento.

O Vasco de verdade que acabou faz 35 anos e me faz chorar a cada reencontro no Youtube. Acácio, Paulo Roberto, Donato, Fernando e Mazinho; Zé do Carmo, Henrique e Geovani; Vivinho, Romário e Bismarck. São onze lendas, nada de 11 nomes banais.

Portanto, reencontrar o que balançou meu coração não é pecado, é amor. Genuíno, sofrido, cheio de suspiros de nostalgia. Agradeço a todos os heróis do Vasco, eternizados na mente de um homem envelhecido e triste, mas orgulhoso escravo da saudade.