por André Felipe de Lima
Garrincha é, talvez, o jogador de futebol mais pródigo em histórias. Algumas realmente verdadeiras, outras, porém, parte integrante e indispensável do anedotário do futebol brasileiro. Vivemos assim, felizes com nossas histórias. O brasileiro, no fundo, confia nas mais diversas versões possíveis para reproduzi-las no dia seguinte. Isso nos faz diferentes e sempre sorridentes, sei lá. Talvez singulares. E, porque não, artistas. Sim, todos trazemos conosco um pouco do Garrincha. Ora tristes, é verdade, mas deliciosamente irresistíveis e, acreditem, felizes e lúdicos. Brincamos de viver como poucos.
Há muitas histórias do Mané que desconhecemos. Algumas delas, esse jornalista pretendia mostrar no documentário “Simplesmente passarinho”, que idealizei e comecei a produzir com o amigo e cineasta Marco Louro. Realizamos diversas entrevistas, com ex-jogadores, como Jordan, Altair e Coronel, a trinca mais famosa de “Joões” do Mané, e os tchecos da final da Copa de 62; amigos de Pau Grande, inclusive a primeira professora dele; personalidades do futebol, como o icônico João Havelange… enfim, gente à beça. O filme não conseguiu driblar a burocracia e o descaso com a cultura que afligem o Brasil. Mas vamos tocando (a vida) felizes… e contando histórias.
Garrincha era assim. Exímio contador de histórias e “tocador da vida” como poucos. Passava por ela da mesma forma que deixava para trás seus marcadores. Uma vez Elza Soares, companheira inseparável, levou-o a tiracolo para uma longa turnê na Itália, em 1970. Montaram residência na pequena Torvaianica. Elza queria tirar Garrincha do Brasil a todo o custo. No clássico “Estrela solitária”, Ruy Castro detalha essa desesperadora iniciativa da cantora para ajudar o companheiro, encalacrado com a justiça e muito deprimido. Mas essa é outra história. Mané estava na Itália e tinha que passar o tempo enquanto Elza cantava. Garrincha questionara: “O que farei enquanto a minha ‘Nega’ (como carinhosamente se referia a Elza) canta por aí?”. Ele pensou rápido, e veio a resposta: “Vou jogar bola, ora”.
Perto de Roma há uma pequena cidade chamada Sacrofano, que deve ter hoje cerca de 7 mil habitantes. Em 1970, quando Garrincha pintou por lá, deveria ter menos da metade que comporta hoje. Fez o mesmo em Mignano Monte Lungo, outra miúda “comune” italiana, ainda menor que Sacrofano, com pouco mais de três mil habitantes. Era o que Mané precisava naquele momento. Estava completamente duro e sem ter o que fazer enquanto Elza cantava. Calçou chuteiras e entrou em campo para disputar peladas com açougueiros e mecânicos. Embolsou por cada pelada cerca de 80 mil liras. Para os italianos, uma ninharia. Para Garrincha, a salvação da lavoura.
O time do Sacrofano era treinado por Dino Da Costa , ex-atacante histórico da Roma e da Juventus, com quem Garrincha jogou no Botafogo. Dino providenciou o show do Mané.
A deliciosa história foi recuperada pelo repórter Maurizio Crosetti, do jornal italiano La Repubblica, que ouviu, em 2016, personagens que arriscaram a honra ao tentarem, em vão, marcar Garrincha, que mesmo completamente fora de forma e já com sinais claros do devastador e impiedoso alcoolismo, deitou e rolou em cima dos italianos.
Carlo Sassi, um despretensioso lateral-esquerdo que jogou pelo modestíssimo e não menos despretensioso Sacrofano, tinha somente 20 aninhos quando ousou encarar um Garrincha já pra lá de Bagdá, mas ainda cascudo: “Garrincha estava sempre em silêncio, mas sorrindo. Ninguém conseguia tirar a bola dele. Ele marcou dois gols no canto, um no primeiro tempo e outro no segundo. Ele era um homem de pernas tortas, mas quão maravilhoso”, recordou o “João” italiano.
Crosetti fez a reportagem que todos nós, que amamos a história do futebol e, principalmente, a dos nossos ídolos, desejaríamos fazer.
Hoje, na sede da ASD Sporting Sacrofano, há fotos daquele memorável dia com Garrincha. Nosso Mané, cujas histórias andam tão esquecidas por nós, distraídos e lúdicos brasileiros, é para Edoardo Valentini, presidente do gentil Sacrofano, um “tesouro para todos”. Lá, na Itália, ou em qualquer canto do mundo, ainda se lembram do nosso Mané. Aqui, ainda sorrimos sem saber exatamente o porquê. Sorrimos ou choramos de histórias presentes sem que o passado nos instigue a nos prepararmos para o futuro. Não sabemos mais driblar nossa ignorância. Esquecemos que um dia fomos todos Mané. Mané Garrincha Futebol e “Vida” Clube.
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