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ENTRE FLAMENGO E POLÍTICA, HENFIL PREFERIA O ZICO

5 / fevereiro / 2019

por André Felipe de Lima


Caramba. Como o cartunista Henfil (1944-1988) faz falta. O traço mais bem-humorado e mordaz do nosso jornalismo partiu faz tempo. Uma porcaria de Aids o matou. Doença danada, maldosa, que o levou e tantos outros tão legais da nossa cultura. Contraiu-a numa daquelas torturantes sessões de hemodiálise. Ele e os irmãos Herbert “Betinho” de Sousa e Chico Mário eram hemofílicos. Todos morreram dramaticamente assim. Mas hoje não é dia de lamúria. Henfil era avesso a esse tipo de postura, ou seja, de quem vive choramingando pelo mundo sem dar chance a uma gargalhada. No universo dele não havia tempo para chororô ou versos melífluos. A piada final era sempre hilariantemente amarga.

Henfil faria anos hoje. Daí bateu a saudade daquele cara que desenhava no Pasquim e irritava muita gente babaca que achava bonitinho o que os milicos faziam nos bastidores (e porões!) sombrios da ditadura. Vamos recordá-lo sempre pelo que pronunciou (e denunciou!) com o seu traço, que tanto inspirou, mais pelo humor que propriamente pelo desenho. Mas, inegavelmente, inspirou bastante.

Ainda menino, eu corria para frente da TV para assisti-lo no programa TV Mulher, da Rede Globo. Isso em 1980. Henfil apresentava um quadro, o “TV Homem”, quase que surrealista, e em P&B. Criticava abertamente o presidente Figueiredo e seus asseclas. Não é difícil imaginar o destino do “TV Homem”. A aventura no famoso edifício da rua Lopes Quintas durou pouco tempo. A chiadeira dos milicos e dos “biônicos” de Brasília com Roberto Marinho era frequente. Henfil pulou fora da Globo, mas continuou soltando o verbo contra a ditadura. Fez isso praticamente a vida toda. Fosse por meio de seus cartuns ou pelos livros que escrevia. Não perdoava nenhum suspiro que denotasse apoio aos milicos. Muita gente foi alvo do traço do Henfil.


No “Cemitério dos Mortos-Vivos”, que criou para espinafrar o governo do general Emílio Garrastazu Médici, ele “enterrou” Pelé, Zagalo, Gilberto Freyre, Nelson Rodrigues, Roberto Carlos e Wilson Simonal. Também levaram “porradas” verbais e em nanquim no “Cemitério” Clarice Lispector e Elis Regina, mas aí foram duas escorregadas feias do Henfil, que as reconheceu publicamente.

A primeira, ou seja, a Clarice, nada tinha a ver com a ditadura, sequer uma leve quedinha. Henfil foi muito criticado por “enterrá-la”. Defendia-se com o argumento de que a colocara no “Cemitério dos Mortos-Vivos” porque a escritora enfurnara-se em uma “redoma de Pequeno Príncipe” e recolhia-se em um “mundo de flores e de passarinhos”, enquanto Cristo estava “sendo pregado na cruz”. Henfil a definia como alienada por exercer a arte meramente pela arte em detrimento da crítica à repressão política.

A segunda “vítima” também foi a “sete palmos” injustamente. Elis foi ameaçada pelos militares para que realizasse um show durante a abertura da Olimpíada do Exército, em 72. Henfil soube disso depois e pediu perdão à genial cantora. Era fã dela, ora bolas. Quando a turma da Tropicália elogiou a “abertura lenta e gradual” do general Geisel, em 79, Henfil partiu para cima deles chamando-os de “Patrulha Odara”, o contraponto bem-humorado da “patrulha ideológica”, um termo que começou a pipocar naquele período.


Apesar dos poucos deslizes e “enterros” — afinal, todos nós somos humanos —, gostava do Henfil de graça. Mais crescido e espertinho fui entendendo quem era ele e a sua importância para a imprensa… e, caramba!, para o futebol também.

Se a política estava na sua pele, o futebol era a sua alma. Henfil tinha verdadeira paixão pela bola e, sobretudo, clubística. Era descaradamente Flamengo, e fora do normal, porém na sacrossanta loucura que nos acomete quando somos contaminados pelo brasão do clube do coração. O Flamengo e a personagem Urubru criada por ele derrotaram o ateísmo do Henfil , que fez do Zico seu “santo de devoção”. Amava-o tanto que chegou a desenhá-lo como o “Flautista da Gávea”, numa alusão à fábula do flautista de Hamellin. No cartum, Zico tocava seu instrumento musical e era seguido por bolas serelepes.

As piadas contra os rivais do Flamengo eram intermináveis e massacrantes. Cri-cri (Botafogo), Bacalhau (Vasco), Pó Pó (Fluminense) e Gato Pingado (América) viviam reclamando da verve sacana do Urubu. Morria-se de rir com as tiras futebolísticas do Henfil, mesmo torcendo para o time rival do dele. Mas sobrava também para cartolas suspeitos e jogadores dorminhocos. Henfil não os perdoava. Se um cartum publicado pelo Jornal dos Sports ou pela Placar denunciavam os caras, tenha certeza de que o inferno para eles estava instaurado. Henfil era visto, lido e cultuado. Incondicionalmente seguido.


Quem deseja entender a personalidade controversa do extraordinário Henfil, obrigatoriamente leia “O rebelde do traço: a vida de Henfil”, do bravo Dênis de Moraes. Mas também espie o próprio Henfil, sobretudo o derradeiro “Como se faz humor político”.

Os fradinhos Cumprido e Baixim; a Graúna; o Bode Orelana; o nordestino Zeferino; o Ubaldo, o paranoico, e, obviamente, o Urubu ficarão muito felizes se ressuscitarmos o grande Henfil. Essa piada certamente teria resposta dele no tradicional nanquim exposto no papel canson. Doa a quem doer.

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