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É PROIBIDO PISAR NA GRAMA

11 / dezembro / 2020

por Paulo-Roberto Andel


Meus tempos de garoto coincidiram com um momento de rara beleza do futebol brasileiro, entre o final dos anos 1970 e o início dos 1980. Havia uma leva de craques, a quase totalidade deles jogava no Brasil e os jogos eram eletrizantes, tanto nas competições regionais quanto nacionais. Os estádios viviam cheios, as manchetes dos jornais inundavam as bancas de jornais e, mesmo que o futebol brasileiro tivesse seus problemas – é claro que tinha -, torcer tinha um sabor mais do que especial. Para completar, começava a Seleção Brasileira permanente de Telê Santana, com shows diários a cada mês.

Não bastava torcer, tinha que jogar. E a gente jogava muito. Tinha o golzinho em plena calçada na Rua Figueiredo Magalhães, o aluguel da quadra de futebol de salão no Corpo de Bombeiros da Xavier da Silveira, golzinho na praça do Bairro Peixoto, dupla de praia na trave do Juventus; peladas na Rua Tenreiro Aranha, a Vila, hoje ocupada pela estação de metrô Siqueira Campos. Tudo na imortal Copacabana. Ah, se déssemos sorte, um futebol básico em algum dos playgrounds dos prédios vizinhos, também na Figueiredo ou no Copaville da Ladeira dos Tabajaras.

Para mim só havia um trauma. Era um campo proibido. Como assim?

Durante cinco anos, como aluno do antigo ginasial e do segundo grau em escola pública, frequentei as aulas de Educação Física no Forte do Leme, entre 1981 e 1985. Um local maravilhoso. A cada novo ano, ao se matricular você escolhia que modalidade esportiva gostaria de treinar. Tinha basquete – que escolhi – e vôlei. Não lembro de outras, mas uma coisa era certa: futebol não havia como opção.

Nosso ritual duas vezes por semana era o mesmo: concentração perto do obelisco de nome impublicável nas imediações do Forte, fila indiana, chamada, duas ou três voltas na pista de atletismo – com o maravilhoso cheiro da mata ali perto, que se intensificava em dias de chuvisco – com chuva a aula era cancelada – e finalmente a concentração na quadra de basquete. Arremessos, passes, às vezes jogos. Eu gostava de basquete, sem dúvida, apenas não era o meu esporte predileto. Segundas e quartas, segundas e sextas ou quartas e sextas. Tive três professores: José Carlos, o famoso Buldogue; Peixinho – que sempre chegava às aulas de bicicleta – e Mattos. Eram dias legais, sem dúvida, esporte é sempre muito bom, mas carrego comigo um vazio daquele tempo. Explico.

Atrás da quadra de basquete ficava a de vôlei. E ao lado das duas havia um campo de futebol espetacular. Lindo, com seu gramado bem cortado e brilhante, as traves branquinhas de doer, as linhas sempre reforçadas com cal. Na primeira aula que fiz, olhei para o campo e sonhei imediatamente em correr nele, chutar em gol, entrar com bola e tudo, mas a frustração estava contida numa pequena placa branca de madeira, esperada na lateral com os dizeres “É proibido pisar na grama”. Engoli a seco e pensei ingenuamente que poderia jogar ali algum dia.

As aulas passavam, os semestres, os anos e o ritual nunca se alterava: duas ou quatro voltas, quadra e bola de basquete quicando. Ao lado, o gramado intocável, proibido e lindo. Um mar verde de silêncio, só cortado pelas nossas jogadas com as mãos batendo a bola no concreto.

Depois de um ou dois anos, durante uma aula vimos finalmente um sujeito no gramado: era um soldado, retocando as linhas das grandes áreas e aparando manualmente o que o cortador de grama tinha deixado passar. Não havia um chute, um drible, uma grande defesa. Bem ao lado, a gente queria ser Edinho, Mendonça, Adílio, queria ser Roberto Dinamite cortando para o lado direito e fuzilando, queria ser Rondinelli subindo no último andar para cabecear, nem que fosse apenas por cinco minutos. Podia ser Enéas também, com sua elegância que poderia ser versada na de Bobô, feito a genial obra de Caetano. A gente queria ser Paulo Victor ou Valdir Peres ou Acácio voando e se esborrachando no conforto amoroso da grama, mas era impossível, não tinha jeito. Era proibido pisar na grama. E assim foram cinco anos de boa prática esportiva mas sem um sonho realizado: jogar naquele gramado lindo e deserto. O tempo passou, concluímos o segundo grau e vinham novas responsabilidades: vestibular, serviço militar, procurar emprego na Era Sarney… Depois disso, voltei ao Forte como visitante duas ou três vezes mas preferi sequer olhar para o campo, evitando qualquer possível decepção. Deixei-o na memória do jeito que estava.

Chove nesta manhã de segunda. Por alguma razão me lembro daquelas aulas, é que algumas delas foram abrandadas ou suspensas no meio do caminho por causa da chuva. Eu sabia que seria impossível jogar naquele campo maravilhoso, mas gostaria de voltar a ser garoto só para correr ali perto. Olhar a beleza das traves novinhas, da grama impecável, sonhar em ser Edinho ali por cinco minutos – fazer um gol de falta, correr, ganhar abraços e comemorar. Rever o que eu tinha de mais próximo do Maracanã toda semana. E na saída, em vez de pegar o 464 e voltar para casa depois de um jogo, apenas comprar um picolé no Leme e descer solitariamente pela orla de Copacabana, me refrescando e pensando na próxima aula, no próximo sonho, no lindo e impossível gramado bem ao lado. Pode ser proibido pisar na grama, mas o sonho é livre.

São coisas de quarenta anos que estão vivas demais. É que o futebol tem um tempo próprio.

@pauloandel

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