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‘DE LOUCO E FELINO, TODO GOLEIRO TEM UM POUCO’

6 / janeiro / 2020

por André Felipe de Lima


“Comecei como o fazem todos, ou seja, correndo atrás de uma bola pelas ruas ou pelos campos de várzea. Até que um belo dia, lembro-me bem, pois tinha 10 anos de idade, houve um pênalti contra o nosso lado. Eu atuava na extrema direita, porém o nosso arqueiro abandonou o posto no momento da cobrança da falta. Como naquele jogo valia tudo, fui para o arco ver se conseguia defender. Um ‘grandão’, moreno, com um corpo bastante avantajado, correu e soltou um tremendo balaço de pé direito. Vi que a bola vinha como um foguete e, rapidamente, saltei de encontro à menina. Senti um impacto na cabeça e caí. Depois de ficar atordoado por uns instantes, voltei ao estado normal, em meio a abraços e vivas dos meus companheiros. Tinha defendido com uma cabeçada — aqui entre nós, sem querer… — rebatendo o couro para o meio do campo. Depois dessa, meteram-me na cabeça que eu devia ser goleiro.”

O ex-goleiro Luiz Moraes, o “Cabeção”, cujo apelido não poderia ser outro, nasceu em São Paulo, no dia 23 de agosto de 1930. No gol do Corinthians, na década de 1950, foi o grande rival do inesquecível Gylmar dos Santos Neves, que era exatamente um dia mais velho que ele. “Fiquei sendo Cabeção, simplesmente, e chego ao cúmulo de sentir estranheza quando alguém de chama de Luiz. Luiz Moraes, para mim, é um nome diferente e assume ares de importância”, declarou Cabeção, quando começava a despontar no time do Corinthians.

O pai, o português Adolfo, um mecânico e corintiano não muito convicto, pois não era muito fã do futebol, queria, contudo, vê-lo um dia jogador, mas a mãe, a brasileira Josefina, sempre se mostrou um pouco contrariada com o propósito. Como impedir, porém, o filho, que ainda bem pequeno, gritava pelos pulmões “Gol!!! Gol de Teleco”? Adolfo vaticinara: “Este diabinho ainda vai jogar no Corinthians”. Josefina argumentava que o futebol “não dá camisa” para ninguém, e que o mais sensato seria estudar para se defender dos imprevistos que a vida nos apresenta. Mas Adolfo insistiu em sua intuição.

Corria o ano de 1937, quando o pai pegou o menino pelo braço, vestiu-o com um terninho branco de marinheiro e rumou para o Parque São Jorge, santo chão corintiano. Queria fazer-lhe um mimo: mostrar, bem de perto, o ídolo Teleco. O menino tinha sete anos e, lógico, ficou extasiado porque não conhecera apenas Teleco, mas um panteão de craques. Lá estavam Jaú, Jango, Brandão, Filó Guarisi e Munhoz. Nunca vira uma bola genuinamente de couro até aquele inesquecível dia. No ano seguinte, Cabeção já era sócio do clube e do quadro infantil do Timão. “A gente entrava lá [no Parque São Jorge], brincava com eles [os jogadores], antigamente, quando era moleque, e eles pagavam [entradas para o cinema]… tinha o Cine São Jorge [hoje uma loja de calçados], na avenida Celso Garcia […] E esses jogadores antigos pagavam o cinema para nós. Segunda-feira, como era folga deles, eles, mais uns quatro ou cinco jogadores do juvenil, eles pagavam a entrada para a gente ir lá no cinema. Então, a gente conviveu muito com esses jogadores antigos e foi criando raízes dentro do clube”, declarou Cabeção em 2011, durante depoimento para o projeto Futebol, Memória e Patrimônio, do CPDOC/FGV.

Convivendo com cobras do futebol, Cabeção foi galgando, passo a passo, todas as categorias até chegar aos aspirantes, em 1946, sob o olhar clínico do treinador Dante Pietrobon, com quem tudo aprendeu no arco. Uma ascensão extraordinária para o orgulho de Adolfo e de Josefina, pais “corujas”, e claro, do tio Salvador Salerno, quem mais o incentivava, comparecendo, inclusive, aos treinos e até às peladas do “River Plate”, time de várzea onde Cabeção também despontava. E foi por conta desse “River Plate” que Cabeção foi agraciado com todo o uniforme do River Plate original, o famoso millionarios de Buenos Aires. Em 1947, o time argentino excursionou por São Paulo. Após um jogo preliminar no Pacaembu, defendendo o juvenil do Corinthians, Cabeção invadiu o vestiário do River e pediu aos gringos, na maior cara dura, um uniforme completo do time portenho. E os caras deram camisa, short, meião… Cabeção levou a melhor.

“O meu avô era italiano, mas era corintiano. Tinha esta diferença, porque, geralmente, o italiano era palmeirense, e o meu avô era corintiano e ajudou muito o Corinthians […] ele era cocheiro. Tinha uma carroça de aluguel. Carregou muita coisa para fazer o Corinthians que é hoje, que antigamente era do Sírio (O Esporte Clube Sírio foi o antigo dono do campo do Parque São Jorge, comprado pelo Corinthians em 1926 para a construção do histórico estádio). O Corinthians comprou e meu avô levava muita mercadoria e muita madeira para fazer o estádio […] terminar o campo de futebol. Torcia para o Corinthians. A minha avó, não sei, porque ela não falava. Minha mãe também não ligava. Meu pai, português, também não ligou muito para futebol. Eu tinha uns tios que jogavam na várzea. Estes me incentivaram muito. Torciam para o Corinthians, foram atletas do Esperia – antigo Esperia –, mas não eram muito ligados ao futebol.”

Até despontar entre os profissionais, Cabeção dividia o futebol com o estudo noturno e o emprego em uma loja próxima a sua casa. “Antigamente, só tinha escola na cidade [no Centro] […] Estudava à noite. Quando perdia o ônibus ou o bonde, tinha que ir a pé da Liberdade até o Parque São Jorge. Era uma caminhada muito violenta e de madrugada. Apesar de que, naquele tempo, não tinha tanto perigo, como tem hoje. Você ia sozinho… Não cheguei a me formar em nada. Mas fiz essas três fases do primário, ginásio e científico.”

O tempo passou e, em 1948, portanto um ano antes de ingressar no time profissional do Corinthians, Cabeção por pouco não seguiu para o Fluminense, que insistira em seu concurso. Foi o alerta para que os cartolas corintianos assinassem num rompante o primeiro contrato com o talentoso goleiro para mantê-lo no Parque São Jorge.

Como profissional, disputou 323 jogos e sofreu 419 gols. Subiu ao time principal em 1949, junto com Idário, Roberto e Luizinho. Apesar de ser revelado pelo time da “fazendinha”, Cabeção, que dizia se espelhar no goleiro Jurandyr, do Flamengo, ouvia do ídolo a frase “Goleiro de pé vale por dois. Goleiro deitado está morto”. Seguia-a sem questioná-la.

Cabeção peregrinou por vários clubes. Quase jogou pelo Porto, de Portugal, mas o Corinthians não quis vender seu passe. Mas a resistência dos cartolas duraria pouco. Sem espaço por conta da forma exuberante de Gylmar, deixou o Corinthians em 1954 e seguiu, por empréstimo, para o Bangu. No ano anterior, porém, já na reserva de Gylmar, para quem perdeu a posição em definitivo em 1952, Cabeção chegou a ser hostilizado pela torcida que até então era sua fã incondicional. Mesmo com Gylmar balançando no posto de titular após a goleada de 7 a 3 para a Portuguesa de Desportos, valendo pelo segundo turno do campeonato paulista de 51, Cabeção não conseguiu manter a unanimidade, embora suas atuações fossem impecáveis e a imprensa paulista continuava a exaltá-lo, especialmente após as defesas sensacionais na final do Torneio Rio-São Paulo de 54, que garantiu o magro placar de 1 a 0 contra o Palmeiras. Nem isso o segurou no Timão.

Após improdutiva passagem pelo Bangu, que defendeu apenas 14 vezes, Cabeção aportou, em 1955, na Portuguesa de Desportos — uma de seus principais momentos no futebol, ao lado de feras como Julinho Botelho, Pinga e Djalma Santos. Talvez o melhor time da história da Lusa, que teve Cabeção embaixo das traves na inesquecível conquista do torneio Rio-São Paulo de 55.

Finda a gratificante experiência na Portuguesa, Cabeção retornou ao Corinthians, em 1958. O regresso ao time de origem foi de idas e vindas, ou seja, em 1961 foi emprestado ao Comercial de Ribeiro Preto. Um relâmpago. Ficou apenas alguns meses e voltou ao Timão, no qual permaneceu até 1966. No final da carreira, defendeu o Juventus, do bairro paulistano Mooca, de 1967 a 1968, e a Portuguesa Santista, em 1969. Do futebol, ganhou o suficiente para investir em imóveis e a eterna reverência das torcidas corintiana e da Lusa.

Algumas lendas são conferidas a Cabeção, como a sua eficiência mais comum em jogos diurnos que noturnos. Mito ou não, isso não importa. Cabeção foi, sem dúvidas, um goleiro bastante regular. O que lhe valeu algumas convocações para a seleção brasileira, inclusive para a Copa do Mundo de 1954, na Suíça, onde foi reserva de Castilho e de Veludo, ambos do Fluminense, sem disputar sequer uma partida. Das atuações de Cabeção com a amarelinha, apenas uma vem à memória. A da vitória do Brasil sobre o Millionarios, da Colômbia, por 2 a 0, no Maracanã, pouco antes da Copa, na Suíça, no dia 9 de maio de 1954. Cabeção entrou no decorrer da partida no lugar de Veludo. Sua maior conquista com a camisa da seleção aconteceu na categoria de amadores, no campeonato pan-americano de 1949, no Chile, um time de jovens talentos que contava com Pinheiro [Fluminense], Vasconcelos [ex-Santos], Tovar [Botafogo] e Tite [ex-Flu e Santos].

Cabeção mantinha esperança de ir à Copa de 1958, mas um desentendimento com o técnico Flávio Costa, da Portuguesa, teria dificultado a convocação do goleiro. Discutiu asperamente com Costa após este culpá-lo pelos dois gols sofridos durante um empate com a Portuguesa Santista. No vestiário, Costa teria ameaçado bater no goleiro, que reagiu atirando uma chuteira contra o técnico. Costa, que era influente na antiga CBD, deixou a Portuguesa meses depois do episódio enquanto Cabeção sofreu uma severa suspensão. O famoso treinador retornou ao Rio de Janeiro e, como afirmou o goleiro, foi consultado pela CBD para avaliar os possíveis nomes para a Copa do Mundo de 1958, na Suécia. Com isso, suspeita Cabeção, seu nome foi definitivamente banido do escrete nacional.

Este não foi o único entrevero de Cabeção com treinadores tidos “casca grossa”. A antiga revista Cruzeiro publicou na década de 1950 aquele que teria sido o motivo da ida de Cabeção para o futebol carioca. O goleiro levou sua esposa ao médico Mário Augusto Isaías, este um apaixonado torcedor e dirigente da Lusa. A cartolagem do Corinthians teria visto no fato motivo bastante para afastá-lo do time. E o fizeram. Cabeção, logicamente indignado, disse que nunca mais vestiria a camisa do Corinthians. Acabou vestindo-a em outras duas fases, mas nunca escondeu a mágoa por este e outros casos relacionados à sua família e o Corinthians.

Muitos anos depois, ele explicou os bastidores do seu afastamento do Corinthians naquela ocasião: “Eles acharam que eu tinha me vendido em um jogo Corinthians X Portuguesa porque o médico da família da minha mulher era presidente da Portuguesa, e a minha mulher precisava ser operada com este médico. Então, eu cheguei pro Brandão, o treinador, e falei: ‘[Oswaldo] Brandão, a minha mulher vai ser operada pelo dr. Mário Augusto Isaías. Já estou avisando, porque nós vamos jogar com a Portuguesa, não quero encrenca’. ‘Não, tudo bem. Tudo bem. Ela pode operar, pode…’. Esse dr. Mário Augusto Isaías tinha salvado a minha sogra de uma hemorragia em casa. […] O jogo Corinthians X Portuguesa foi feito em um sábado.”


Na véspera dos jogos, o técnico Brandão costumava fazer reuniões com os jogadores e antecipar a escalação do time. Naquela sexta-feira ele não fez. Os jogadores ficaram “cabreiros”, como assinalou Cabeção. O treinador só falaria horas antes do jogo. Cabeção, embora titular há alguns jogos, ficara fora do jogo, dando lugar a Gylmar. “Saí do vestiário, nem troquei de roupa, fui ficar no alambrado. Chamei um diretor, falei: ‘Oh, enquanto o Brandão estiver aqui, eu não jogo mais aqui. Eu vou embora. Vocês podem me mandar para onde vocês quiserem, só que com o Brandão, eu não fico mais aqui’. Ele costumava fazer isso com outros jogadores, então ele quis fazer comigo. Fez comigo. E foi danado. Então, saiu publicado em todos os jornais aqui da capital, a carteira [de poupança] de quanto eu ganhava, quanto eu tinha de depósito. Se tinha algum depósito naquela data. Aí, eu me queimei. Me queimei, e falei que enquanto ele ficava aqui, enquanto ele era o treinador, eu ia embora. Fui para o Bangu. Era para ir para o Vasco porque o Barbosa estava terminado de jogar, o Vasco. O Silveirinha me convidou: ‘Vai jogar no Bangu’. E o time do Bangu era bom. E eles pagavam direito”, recordou Cabeção, com uma ponta de remorso, pois preferia ter ido para o Vasco.

O ídolo do Corinthians e da Lusa colecionou títulos pelos dois clubes. Foi campeão paulista em 1951, 52 — quando foi reserva de Gylmar — e 54, todas as conquistas com o Timão. Conquistou também o Rio-São Paulo em 1950, 53 e 54, com Corinthians, e em 55, com a Portuguesa de Desportos, consagrando-se como o jogador que mais edições conquistou do torneio interestadual.

Nos tempos em que defendia o Corinthians, era fã de Zizinho e adorava cinema, sobretudo filmes estrelados por Gary Cooper, Elizabeth Taylor, John Wayne, Jean Simons, Gace Kelly e Ann Miller. Dos atores nacionais, sempre gostou do Anselmo Duarte e da Eliane Lage. Dizia-se devoto de Nossa Senhora da Penha e jamais dispensava uma macarronada.

Quando se aposentou como jogador, imediatamente tornou-se técnico. Treinou categorias de base do Corinthians e conquistou títulos ao longo de 20 anos, período em que revelou grandes craques para o Corinthians, como o centroavante Casagrande, o lateral-esquerdo Waldimir e os goleiros Ronaldo, Solito e Rafael Cammarota.

Em 1981, o grande arqueiro concedeu uma entrevista ao jovem repórter Fausto Silva, que anos mais tarde se tornaria simplesmente o Faustão, um dos mais bem sucedidos apresentadores da televisão brasileira. Cabeção criticava o futebol de então, comparando-o com o de sua época: “Não é saudosismo, não. Mas há cinco anos que não vou a um estádio de futebol. Prefiro ver pela televisão. Sinceramente, não está valendo a pena. Reconheço que o passado não diz nada, cada um tem que viver a sua época, mas a qualidade do futebol caiu […] Tive mais alegrias do que tristezas no futebol. E as mágoas, eu procuro esquecê-las logo. Mas a minha maior alegria foi em 1949, quando fomos campeões do pan-americano de juvenis no Chile.”

Cabeção, neto de italiano [vejam só…] corintiano que cresceu e viveu seus melhores dias no bairro do Brás, bem pertinho do Parque São Jorge, casou-se e teve um filho, professor de Educação Física e campeão de natação, que aos 30 anos morreu vítima de uma grave doença no cérebro. Cabeção largou tudo, inclusive o futebol, para dedicar-se exclusivamente ao filho. Precisou de treze mil dólares para operará-lo no Hospital Albert Einstein, recorreu a cartolas do Corinthians, especialmente o principal deles, Wadih Helu, que alegaram não ter o dinheiro. Um amigo do filho de Cabeção é quem ajudou com a quantia. O rapaz operou, mas o resultado não foi satisfatório. Permaneceu por mais cinco anos em cadeira de rodas. A mágoa com o futebol e com o Corinthians foi grande. Fora esta a segunda grande decepção após o episódio com a esposa. Não quis mais saber do futebol. Um trauma na vida do grande goleiro do passado.

Cabeção foi o único filho de Adolfo e Josefina. A vida é simples e tranquila ao lado da esposa. “Hoje, só vivemos eu e a esposa. Mais ninguém. Tem os parentes, mas são distantes. Mas vamos levando essa vida. Agora, com 81 anos, então, é assistir jogos pela televisão, que é mais fácil do que vir no estádio. E esta é a minha vida, agora.”

Mas Cabeção faz falta aos estádios. Pudera os deuses torná-lo eternamente jovem para nunca mais deixa os gramados. Pudera as gerações que não o viram jogar se deliciarem com os saltos acrobáticos, as “pontes” memoráveis e as defesas com a mão trocada executadas com maestria pelo Cabeção. Nos tempos em que jogava, o eterno ídolo costumava dizer que “de louco e de felino, todo goleiro tem um pouco”. É verdade…

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