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DANILO, 100 ANOS: ENSAIO PARA UM ÉPICO DO FUTEBOL BRASILEIRO

30 / novembro / 2020

“A classe e a habilidade de Danilo no trato com a bola eram algo de anormal. Eu me lembro muito dele quando vejo jogo em campo pesado. Era na lama, no gramado escorregadio, que ele mais demonstrava seu talento. Era o dono do jogo alto. No campo pesado, o adversário o respeitava mais ainda, pois tinha medo de ser desmoralizado por aqueles dribles e cortes que o homem criava não sei como.” — Ademir Marques de Menezes, o Queixada, maior ídolo da história do Vasco, em depoimento à revista Placar[i], em novembro de 1971.

[i] A.D.. “O drama do príncipe de 50”. Placar/Ed.Abril: São Paulo, 26 de novembro de 1971, pp.26-7.

por André Felipe de Lima


América (Sport Illustrado)

Setembro de 1940. Em um dia daquele longínquo ano, o repórter saiu da redação para cumprir mais uma pauta corriqueira de sua jornada diária cobrindo o futebol carioca. Teria de ir à Tijuca entrevistar um rapaz de 19 anos que diziam jogar muita bola, um jovem que, e isso também comentaram com ele na redação, sempre desejou ser jogador profissional de futebol desde as peladas disputadas nos asfaltos das ruas do Rocha, bairro em que nascera, e depois nos da própria Tijuca, onde foi morar com os pais nos primeiros momentos da adolescência. Não havia erro para o repórter, que lera o papel várias vezes para certificar-se de que a pauta era realmente mais uma do dia a dia do futebol na cidade. Clubes, cartolas, jogadores, torcedores, peladeiros, enfim, era um cotidiano com o qual se acostumara. Nada, mas nada mesmo o surpreenderia mais no futebol. Estava convicto disso. Nada soaria como novidade no futebol. Convencera-se de que tudo o que podia ter visto, realmente presenciara. Mas o resignado e não menos entediado repórter rumou a mais tijucana de todas as ruas da Tijuca: a Campos Sales. Chegando ao local e na hora combinados com o rapaz que entrevistaria, o periodista mirou-o, desconfiado, e questionou-se a si mesmo, em voz baixa para não constranger o menino: “Será que tudo o que ouvi dele é verdade? Não é possível? Vendo-o de perto parece tratar-se de um personagem de opereta do que uma figura de atleta”. O espanto do jornalista não era de um todo infundado. Estava diante de um garoto sem músculos, franzino demais, de caminhar vagaroso e de poucas palavras. Monossilabicamente tímido. Impossível que fosse a mesma pessoa da pauta determinada pelo editor. “Você gosta de futebol, menino?”, indagou o desconfiado repórter imaginando àquela altura tratar-se de uma pauta perdida ou mesmo de uma brincadeira de mau gosto do colega editor. “Sim, gosto”, respondeu a figura acanhada como se soletrasse cada palavra. Surgindo como se fosse um anjo da guarda, ou algo do gênero, um camarada interveio em defesa do retraído garoto. Interrompeu a entrevista sem a menor parcimônia ou pudor. Poderíamos compará-lo a um senador romano no parlatório da Cidade Eterna e naqueles dias de oratória afiada contra os que desafiassem os direitos dos plebeus. Sem temor, o “advogado do rapaz emendou: “Mas será craque e viverá muito!”. O convicto em questão não estava definitivamente incorporado por uma entidade da Roma Antiga ou algo que o valha. Estava em sua plena e sã consciência dos que enxergam o futuro como se dele fosse o irmão mais velho. Um conselheiro. Um oráculo de carne e osso. O cidadão uruguaio Ricardo Diez era, sem dúvida, pródigo em vaticínios. O cético repórter acreditava nele e não acreditava em Deus. Conversara outras vezes com Diez. Ele e outros jornalistas também. Fonte com novidades no futebol como ele eram poucas. Diez falava das coisas da bola, mas, em especial, dos bons fatos do América, e um deles era aquele menino sereno, porém magrelo, que conhecera semanas antes daquela entrevista. Ao olhá-lo pela primeira vez com uma bola nos pés estava certo de que naquele instante mágico a realeza personificara-se no tranquilo garoto, regido por uma calma e técnica que o determinariam, sim, o craque que se avizinhava, o craque do profético Diez, que sob uma leitura subjetiva, quase ontologicamente filosófica, tentou convencer o incrédulo repórter do que verdadeiramente significava aquele introspectivo garoto para o futuro do futebol brasileiro: “O dinamismo é uma personalidade; a calma é uma virtude inquebrantável. Um footballer pode perder o dinamismo pelo desespero, mas o jogador sereno jamais. A serenidade só admite uma expansão: é a reação para o absolutismo, para o desdobramento de suas forças. Consegue-as quando deseja. Eis aí porque acredito nele, porque vejo nele a pinta do craque, porque não o troco por ninguém.”[1]


Canto do Rio. Botinha e Alcebíades (Sport Illustrado)

Danilo Faria Alvim. Assim foi batizado aquele garoto aparentemente macambúzio, mas de uma eloquência futebolística fora de série e nunca contrito. Um clássico por natureza, como o descreveu Diez. Clássico para encantar um deus grego ou inspirar um Mozart, um Liszt para que compusessem a ópera das óperas. Danilo ensaiava os primeiros passos para se tornar uma celebridade da bola. Dizia naqueles primeiros momentos de fama que nunca trocaria o clube que o revelara, o América, e que por ele seria um dia campeão, exatamente como foi Oswaldinho, ídolo do clube, duas décadas antes. Para Oswaldinho, que era carinhosamente chamado de “Príncipe” por torcedores e jornalistas, Danilo era indiscutivelmente seu herdeiro. “Parece-se comigo. É o único que joga como eu costumava jogar”. Mas era pilhéria de Oswaldinho. Não havia dúvida de que o rapaz diante dele, do repórter e de Diez estava um grau acima, muito acima, por sinal, de qualquer outro craque de sua época. “Eu estava brincando. Imaginem vocês se eu tivesse começado assim! Naturalmente que teria sido um craque”. Oswaldinho disse aquilo sob uma devastadora humildade. Foi ele craque também, obviamente, mas tanto ele quanto Diez sabiam que diante de ambos estava um menino que entraria para a história do futebol brasileiro, com direito a bola, cetro e coroa de ouro, indefectíveis apetrechos dignos de um… príncipe!

QUANDO O DESTINO ENGANA A MORTE

A história de Danilo Alvim encontrava-se entre dois “principados” do futebol carioca. O de Oswaldinho, ídolo do América, na década de 1920, e o do propalado por Nelson Rodrigues em torno de Didi, o “Príncipe Etíope de rancho” rodrigueano. Três “príncipes” da pelota. Quanto ao Danilo, ele foi indiscutivelmente o melhor centromédio [hoje volante] do futebol brasileiro dos anos de 1940 e 50. Para compreender com mais exatidão quem foi este exímio jogador, ele representou para sua época o mesmo que Zito e Falcão significaram para os anos de 1960 e 70, respectivamente. Embora, ressalta-se, o estilo de Falcão é o que mais lembrou a desenvoltura do magro e alto Danilo, um craque que só jogava com a cabeça erguida e matava a bola na coxa ou no peito, fosse a mesma oriunda de um petardo. Com Danilo, ela se acalmava.

É deste assombro de jogador a singular história — com certeza uma das mais impressionantes — de “volta por cima” e amor ao futebol.

Nascido[2] e criado na rua Conde de Porto Alegre, número 64, no Rocha, bairro da zona norte carioca, no dia 3 de dezembro de 1920, bem perto da estação de trem da Central do Brasil, Danilo cresceu torcendo pelo América, paixão da qual nunca se desfez, e jogando muitas peladas pelas ruas próximas de casa. Seu primeiro clube foi o Ana Néri, também no Rocha. Teve uma infância feliz, que se tornou ainda mais alegre quando o pai Alcídio Alvim contou a ele que toda a família se mudaria para um apartamento alugado na esquina da rua Campos Sales com a praça Afonso Pena, quase enfrente ao campo tijucano do América. O sonho de garoto começava a se tornar realidade, para isso bastava atravessar a rua, e foi o que passou a fazer diariamente, mas, em 1940, deparou-se com o [quase] fim do sonho de um dia tornar-se um dos melhores jogadores do Brasil, como profetizara o técnico Ricardo Diez. Um atropelamento quebrou-lhe as duas pernas, somando 39 fraturas e a tíbia exposta na direita. O motorista que o atropelou acelerou o carro e fugiu. Quando o acidente aconteceu, Danilo já era um senhor jogador. O “Olívia Palito”[3], como os amigos o chamavam por causa da silhueta. Magro vara-pau, mas craque dos bons. Na época, o América estava sob o comando de Diez e Danilo transitava entre o time de aspirantes e o profissional. “O América está fazendo o maior center-half do Brasil”. Diez inflava o peito com indisfarçável orgulho para falar do jovem talento[4].


Kim e Amaro (Sport Illustrado)

O acidente foi assim: o jovem meio-campista, que ambicionava ser centroavante, voltava da comemoração com amigos na zona boêmia da Lapa, no Rio. Festejavam o convite que Danilo recebera de Flávio Costa para integrar-se à seleção carioca[5]. O fato é que, na Praça da Bandeira, bem em frente ao Corpo de Bombeiros, Danilo tentou pegar um bonde em movimento e foi atingido por um automóvel. Na verdade, foi tanta dor que ele nem se lembrava da pancada que levara. “Desci do ônibus e fui correndo para pegar o Malvino Reis [um bonde que passava na porta do América], quando senti a pancada e a vista escureceu. Ao dar por mim, vi a perna partida, virada para trás. Mas enquanto me curava aproveitei para por a cuca no lugar. No fim, até que a fratura me fez um bem danado.”[6]

Quando acordou[7] após o violento baque, Danilo estava cercado de um sem número de curiosos e preocupados. A maioria, como sempre, curiosos. Não sentia dor, apenas dormência nas pernas. Desmaiou novamente e quando acordou já estava no hospital, ouvindo a conversa velada dos médicos de que, provavelmente, nem andar poderia mais. Restou-lhe o choro calado. Contido, mas com esperança sutil.

Foram 18 meses com as duas pernas engessadas, muita reeducação muscular, o apoio das muletas e o carinho dos pais Alcídio e Edith Alvim, que sempre cercaram o filho de cuidados. As irmãs mais novas, Délia e Dalva [que se tornaria nadadora do América na mesma época], estavam sempre por perto. Nada faltou para que Danilo tivesse a garantia de que voltaria a andar e, inclusive, ao futebol. E voltou mesmo. Em 1940. Após uma recuperação espantosa para os parâmetros médicos da época. Na rua Campos Sales, no campo do seu América, retomou o contato com a bola. No início, tímidas embaixadas, um chute ali outro lá. Precisava, contudo, correr. Arriscou um pique e percebeu que a perna direita não dobrava como antes.

O médico do clube querendo saber de Danilo se tudo estava bem. Danilo respondendo que sim. Mas ele sabia que não. E sempre escondeu o problema. Não queria deixar o América, time do coração dele e do pai. Esforçava-se, portanto, para evitar que se desfizessem dele. Não corria tanto, mas aprimorou o estilo. Mais paradão, mais técnico. Cerebral. Exatamente como o Brasil o conheceu e, sobretudo, reverenciou. Mais se parecia com um príncipe. Talvez fosse mesmo, em vida pregressa, em encarnação anterior, quem sabe.

TIMIDEZ QUASE PAROU O JOVEM ‘PRÍNCIPE’


Antes do acidente (O Globo Sportivo 1940)

Quando garoto Danilo jogava bola [feita de meia] com a molecada num terreno baldio ao lado da estação de trem do Rocha. Estudava no Ginásio Vinte e Oito de Setembro [onde hoje há um centro politécnico do Senac], na avenida 24 de maio, número 543, para onde levava livros, lápis e, claro, a inseparável bolinha de meia. Com 15 anos, trocou a improvisada pelota por uma de couro e também calçou chuteiras para jogar no antigo campo do Garnier. Acreditava piamente ser um centroavante “fora de série”[8]. E ai de Sebinho, ex-técnico do São Cristóvão e dirigindo o Garnier, discordar do garoto. Mas ele não discordou. Constatou que o magrinho e longilíneo Danilo, com dribles desconcertantes, daria mesmo para a coisa.

O pai de Danilo, corretor de imóveis, levou a família para a Tijuca, mais precisamente para um sobrado em cima de um bar na esquina da rua Campos Sales com a praça Afonso Pena. Danilo instigou-o a levar a família para bem perto do América. Defronte ao clube seria melhor. Alcídio fez a vontade do filho na esperança de vê-lo craque do Alvirrubro, mas nada de Danilo ingressar no América. Estava, segundo João Máximo[9], sem confiança. Afinal, o América foi campeão da categoria em 1938, com um elenco que dava de dez a zero no simulacro de time do Garnier. O pai de Danilo não estava satisfeito. Fez um grande sacrifício e tanto, mais pelo filho que pelo restante da família. E Danilo preferia, contudo, as peladas na rua a bater na porta do América.


Danilo, Biguá e Jayme

Mas a timidez de Danilo tinha de ter fim. Um amigo o convidou para jogar como centromédio do time de uma fábrica de calçados da rua Mariz e Barros. Só havia peladeiro como ele. Aceitou o convite meio contrariado. Achava-se “o centroavante”. De centromédio aparecia pouco ou quase nada. Danilo era tímido, mas vaidoso. Sabia que era bom de bola. Acima da média. Terminada a pelada, Armando Coelho Antunes, o “Coelhão”, técnico do América, abordou Danilo e o intimou a trocar o asfalto pelo gramado. Mas o garoto teimou. Batia a mesma tecla: “Sou centroavante e não quero jogar como médio”. Coelhão foi paciente e sempre que o via, alertava. “Me dou por satisfeito com você de center-half, garoto. Largue estas peladas”. O pai ajudava a convencê-lo, os amigos da rua, idem. Uma hora ou outra se daria por vencido.

Não demorou. No finzinho de 1939, Danilo já era titular do time juvenil do América. No ano seguinte, foi campeão do carioca de amadores. Mal começou 1941, assistindo a um treino da seleção carioca no campo do América, Danilo acabou sendo surpreendido com um convite de Flávio Costa para que descesse da arquibancada, calçasse as chuteiras e participasse do treino do escrete do Rio. Rui Campos, centromédio titular, machucou-se e o técnico havia colocado Zarzur em seu lugar. Para completar o time reserva, Costa aproveitou Danilo, que agradou e foi convocado pelo entusiasmado técnico.

Festa dos Alvim, mas não mais no sobrado da Campos Sales. Alcídio mudou-se com todos para Niterói. Apenas a mãe do futuro craque estava receosa. Afinal, futebol profissional tem lá suas mazelas. Entram para valer. E Danilo, aos olhos de dona Edite, era ainda um garoto magrinho, “indefeso”, “imaturo” para cumprir jornada tão ousada. De Campos Sales à Niterói era mesmo uma jornada e tanto. Ônibus até a Praça Quinze e depois a travessia de barca pela Baía de Guanabara.


Danilo (Sport Illustrado)

Foi na então capital fluminense que Danilo serviu ao Exército com outro craque de primeira grandeza que viria a ser seu grande amigo fora das quatro linhas: Zizinho, que já era considerado genial e também fazia parte do escrete de Flávio Costa. Como o treinador da seleção carioca queria a contraprova do futebol de Danilo, testou-o mais uma vez. Marcaria justamente o amigo Zizinho. Não se intimidou com o jogo sensacional de Ziza e saiu de campo para comemorar. Flávio Costa estava convencido de que Danilo também era um fora de série. Que geração aquela…

Costa fez, porém, uma ressalva: “Quero você mais tarde na concentração da seleção”. Danilo respondeu um “sim senhor” e foi para a farra na Lapa com os amigos. Já pensou, dividir o mesmo espaço com Tim, Domingos da Guia? Mas veio o acidente na Praça da Bandeira e acabou com o sonho do garoto Danilo.

Todo mundo o visitava no hospital Gaffrée Guinle, na rua Mariz e Barros, ali mesmo na Tijuca. No dia seguinte ao atropelamento, o próprio Flávio Costa foi consolá-lo junto ao leito. Dizia para que não desistisse, mas Danilo, que tanto custou para entrar no América devido à timidez e insegurança, convenceu-se de que era o fim. Ricardo Diez, que o viu brotar em Campos Sales, também o visitava e comentava com jornalistas que Danilo seria o “maior centromédio desta terra”. Mas nenhum estímulo, palavra amiga mudava sua desesperançada opinião. Implicava até com o sobrenome: “Ao ‘Faria’ eu renuncio: só serve para gozação, já que é, também, um verbo fantasiado de substantivo”, respondeu aos médicos, que ouviam a lamúria do Danilo e, num átimo respondiam aos parentes e amigos do jovem um diagnóstico desesperançado: “Se esse rapaz tornar a jogar é bem possível que estejamos diante de algum milagre”. Eles não estavam errados. Danilo quebrara as duas pernas, e em várias partes, ou seja, em 39 lugares. Foi o primeiro grande desafio de sua vida, como contou ao repórter Geraldo Romualdo da Silva[10], em uma série de reportagens biográficas, em 1974: “Aquele calor de esperança que me afagava, havia desaparecido. E não era para menos. Afinal, quem poderia adivinhar que jogador de perna quebrada em muitos lugares, numa época em que menisco costumava destruir carreiras fascinantes como a de Adolfo Milman, o grande Russo, do Fluminense, tivesse sorte e tutano para dobrar tanto azar?”


Acervo Pessoal

João Máximo[11] o biografou melhor que qualquer outro jornalista ou pesquisador e pinçou minúcias da luta de Danilo, do América e dos médicos para recuperar a saúde do jovem jogador: “O tratamento a que Danilo se submeteu, orientado pelo Dr. Caio do Amaral, compreendia, após a retirada do gesso, uma série de exercícios especiais, massagens e radioterapia. O América pôs todos os recursos do seu modesto Departamento Médico à disposição do centromédio que queria ver recuperado, talvez para jogar ao lado de Oscar e Laxixa no time titular. No princípio, seu Alcídio saía de casa com Danilo, todas as manhãs, e ia ao clube acompanhar de perto o tratamento. Depois, viu que nova mudança seria melhor para todos, e a família voltou para a Tijuca, desta vez indo morar na Travessa São Vicente, bem atrás do campo do América.”

Gentil Cardoso acabara de assumir o comando técnico do América no lugar de Ricardo Diez e precisava diminuir os gastos do clube. Danilo estava na lista de dispensas. No topo dela, assinala-se. Mas nada a ver com o fato de estar aquém do que poderia fazer antes do acidente, quando se achava um “grande” centroavante. Gentil não descobriu o “segredo” de Danilo. Sequer referiu-se à perna direita dele, o motivo do “segredo”. O caixa do clube estava vazio mesmo e a limpa no elenco era inevitável. Danilo tentara ingressar no Fluminense, mas corria um boato de que sofria do pulmão. O fato é que as portas do estádio das Laranjeiras foram fechadas para ele.


Acidente com Délia e Dalva (O Globo Sportivo)

Martim Silveira[12], ex-craque do Botafogo e capitão da seleção nas Copas de 34 e 38, treinava o Canto do Rio quando decidiu convidar Danilo para jogar pelo clube de Niterói. Já corria o ano de 1942. Final do ano, mais precisamente. O garoto estava deprimido, mas tentou a volta por cima. Aliás, Martim intercedeu junto a Gentil e aos cartolas do América para que o liberassem o quanto antes. Um ano de empréstimo estava de bom tamanho. Martim fez um trato com Danilo. Deu três meses para que recuperasse a boa forma que tanto impressionou torcedores, dirigentes e jogadores do América antes do trágico acidente da Praça da Bandeira. Não haveria contrato assinado, mas o rapaz receberia um salário de 300 mil réis. Caso se recuperasse, antecipara Martim a Danilo, a prioridade de registro na Federação de Futebol seria do Canto do Rio. Danilo, obviamente, topou. Na manhã seguinte atravessou a Baía de Guanabara rumo a Niterói, convicto de que venceria todos os obstáculos físicos e, talvez os mais difíceis de superar, os da alma. A paixão pelo futebol era tudo. Era onde podia se agarrar para vencer. “Era uma alucinação. No fundo, é isso aí, foi o toque que me conduziu ao ponto mais alto da minha felicidade”. O América até tentaria emperrar a ida de Danilo, em 1943. Tinha o passe dele. Desdenhara o garoto, que mal se livrara dos gessos e talas em ambas as pernas. Não venderam o passe de Danilo, mas o emprestaram ao Canto do Rio, que já não tinha mais como treinador Martim e sim Orlando Fantoni. “Emprestado pelo América, tive de enfrentá-lo. Me senti mal antes do jogo e pedi ao técnico, Fantoni, que era também centroavante, que não me escalasse. Mandou-me trocar de roupa e empurrou-me para dentro do campo [do estádio Caio Martins, em Niterói]. Fiquei 15 minutos sem ver a bola. No final, vencemos de 2 a 1.”[13]

Pelo Canto do Rio, Danilo não ganhava jogos do campeonato carioca de 1943 — a equipe de Niterói terminaria em penúltimo lugar na tabela —, mas se destacava no time. A mais pura verdade. Caso contrário, Flávio Costa não o chamaria novamente para compor uma linha média na seleção carioca com Ivã e o bastião rubro-negro Jaime de Almeida. Era, enfim, a tão desejada e não menos surpreendente volta por cima. Ao lado dos companheiros da linha média, de Zizinho, o amigo e compadre de Niterói, de Heleno de Freitas e de Ademir de Menezes, Danilo Alvim sagrou-se campeão brasileiro pelo Rio de Janeiro. O destino lhe reservava, porém, o retorno ao time da rua Campos Sales, levado pelo mesmo Gentil Cardoso, arrependido e, evidentemente, constrangido.


Acidente com Ricardo Diez (O Globo Sportivo 1941)

O América figurou mal na tabela do campeonato de 1944. No ano seguinte, outro papelão. Até conquistou um torneio início, mas era pouco. Muito pouco para a grandeza do América e também para Danilo, que já demonstrava impaciência. Chegou ao ponto de trocar pontapés com Zizinho, logo o Ziza, seu grande amigo, durante um clássico contra o Flamengo. O pai o repreendeu. Disse que futebol não era simplesmente jogo para macho. Era muito mais. Era para ser praticado por craque. E craque, todos sabem, tem de ser sábio, nunca um cabeça-de-bagre. Alcídio não admitia os dois amigos se engalfinhado nos gramados. Eram craques genuínos e muito amigos mesmo. Disputavam peladas juntos em Niterói quando Danilo serviu o Exército na cidade. Aproximaram-se naquele momento e não se desgrudaram mais. Tanto que, anos depois, tornar-se-iam compadres. Talvez, naquela metade da década de 1940, os dois estavam na seletíssima lista dos melhores do momento no futebol brasileiro. E como disse Ricardo Diez ao Danilo e ao repórter que o entrevistara quatro anos atrás, para ser craque era preciso calma, serenidade, leveza. Danilo nunca poderia se desfazer dessa qualidade. Ainda mais em um arranca-rabo com um amigo do peito como Zizinho.

Os dias de Danilo no América estavam contados. Quem muito lamentaria era um menino filho de um conselheiro do clube e ardoroso fã do centromédio. O nome do garoto ficaria imortalizado na história do futebol alguns anos depois, mas ninguém poderia imaginar isso naquele instante, nem mesmo o próprio menino Mário Jorge Lobo Zagallo, que desejava somente que o seu ídolo permanecesse em Campos Salles.

***

Na terceira reportagem da série DANILO, 100 ANOS, a chegada triunfal ao Vasco do jovem ex-craque do América e, após muitas conquistas e notoriedade, uma amarga despedida de São Januário.

 

[1] A.D.. “Danilo, a promessa real do football brasileiro”. O Globo Sportivo: Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1940, p.9.

[2] Nota do autor: como consta em sua ficha cadastral no Vasco da Gama. Porém Danilo, em várias entrevistas, sempre afirmara ter nascido em 1921.

[3] SILVA PINTO, José Luiz da. Campeão da magreza e da técnica. Reportagem publicada pela revista O Globo Sportivo, em 14 de julho de 1951, p. 15.

[4] SILVA, Geraldo Romualdo da. “Existe um crack perfeito? Danilo é um milagre da natureza”. O Globo Sportivo: Rio de Janeiro, 2 de janeiro de 1948, pp.8-9.

[5] CASTRO, Marcos de, e MÁXIMO, João. Gigantes do futebol brasileiro. Editora Lidador, Rio: 1965, p. 231.

[6] ANDRADE, Aristélio. “O príncipe perfeito”. Placar/ Ed.Abril: São Paulo, 26 de janeiro de 1979, pp.30-3.

[7] SILVA PINTO, José Luiz da. “Campeão da magreza e da técnica”. Reportagem publicada pela revista O Globo Sportivo, em 14 de julho de 1951, p. 15.

[8] CASTRO, Marcos de, e MÁXIMO, João. Gigantes do futebol brasileiro. Editora Lidador, Rio: 1965, p. 232.

[9] Idem, p. 233.

[10] SILVA, Geraldo Romualdo da. “O príncipe Danilo [I]: Jogou futebol-arte, agora ensina futebol total”. Jornal dos Sports: Rio de Janeiro, 25 de setembro de 1974, p.12.

[11] CASTRO, Marcos de, e MÁXIMO, João. Gigantes do futebol brasileiro. Editora Lidador, Rio: 1965, p. 237.

[12] SILVA PINTO, José Luiz da. “Campeão da magreza e da técnica”. Reportagem publicada pela revista O Globo Esportivo, em 14 de julho de 1951, p. 16.

[13] A.D.. “Dos cães aos craques, o paraíso do incrível”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 de outubro de 1986, p.46.

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