Escolha uma Página
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

BARBA, CABELO E BIGODE OCUPA EDIFÍCIO GUSTAVO CAPANEMA

11 / julho / 2016


Protagonistas do filme, PC Caju, Nei Conceição e Afonsinho posam para foto

Vencedor da Taça CINEfoot 2016, o longa-metragem Barba, Cabelo e Bigode, de Lucio Branco, será exibido hoje em uma sessão livre, às 19h, no Ocupa MINC.

Após a sessão, o craque Afonsinho, ex-Botafogo, o diretor de Barba, Cabelo e Bigode e André Barros vão participar de um debate.

O endereço é Rua da Imprensa, nº 16, próximo à Estação da Cinelândia e todos estão convidados!
 

Fazendo a barba, o cabelo e o bigode do futebol brasileiro. Sem pentear…

O aguerrido jornalista corintiano Bruno Pavan um dia me procurou para esta entrevista sobre Barba, Cabelo & Bigode, filme que produzi, dirigi e atualmente tento inscrever no maior número possível de festivais de cinema sobre a trajetória e o pensamento dissidente de três legítimos representantes da melhor tradição do futebol-arte entre nós: Afonsinho, Paulo Cézar Caju e Nei Conceição. (Ia escrever “remanescentes” no lugar de “representantes”, mas essa conotação de sobra eu prefiro usar mesmo para designar o futebol brasileiro atual – afinal, o trio está aí, ativo e muito mais saudável que eu.)

A ideia era originalmente publicá-la no seu blog Fora de Foco (https://foradefocoblog.wordpress.com/), mas acabou que o Bruno conseguiu publicá-la numa versão editada no site da Carta Capital. (Aos inimigos da minha prolixidade, aqui vai ela: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/201co-jogador-hoje-e-uma-marca-comercial-rentavel201d.)

Agora, sua versão na íntegra no Museu da Pelada…

Como surgiu a ideia de fazer um filme com essas três figuras?

Muito cedo e espontaneamente. Na adolescência, dá pra dizer. Antes mesmo de vir à luz, eu já era botafoguense. Isso explica parte do meu interesse pelo tema. Admirar aquela geração à qual eles pertenciam, e que foi base da seleção tricampeã no México, ajudou ainda mais nisso. (Apesar de eu não ser contemporâneo dessa conquista – sou de 1974.) Acredito que o lugar deles no futebol e na vida nacional transcende qualquer limitação clubística. Quando travei contato, pela primeira vez, com a personalidade e a trajetória desse trio,a identificação foi imediata. Saber que, apesar de todas as atribulações que sofreram durante a sua permanência em General Severiano, eles não abandonaram a torcida pelo clube que os revelou, só fez aumentar ainda mais a minha. Vivi isso num momento em que a crise no Botafogo era tão institucional quanto a própria agremiação. Resumindo: a condição existencial do clube me parece ser muito mais a dissidência do que qualquer outra tendência espiritual. A impressão que eu tenho é a de que ele não se encaixa em nenhuma ordem estabelecida. A meu ver, é mais que a percepção de um torcedor, até porque sei que muitos outros botafoguenses não me acompanham nesse ponto de vista.

Por que a figura dos três te chamou a atenção?

Acho que não é à toa o símbolo do Botafogo ser a Estrela Solitária. É muito eloquente porque realmente simboliza uma tradição que o clube traz num patamar inalcançável, se comparado a qualquer outro: a presença do craque individualizado, absolutamente singular, único, de uma qualidade humana que ofusca de tão intensa. Não vejo outra agremiação que tenha apresentado tantas personalidades e/ou biografias inimitáveis,para muito além do folclore. É um patrimônio imaterial representado por nomes como Heleno de Freitas, Garrincha, Didi, Nilton Santos, Quarentinha, Paulinho Valentim, Marinho Chagas, João Saldanha, Neném Prancha. Até o Paulo Amaral entra nessa escalação do Espírito – digamos assim. Se o destino preferiu que o Almir, o Pernambuquinho, não jogasse no Glorioso, só resta concluir que o destino também erra. Afonsinho, Paulo Cézar Caju e Nei Conceição são membros de ponta desse grupo humano, demasiado humano. (Perdão, adjetivei demais a resposta.)


lLucio recebe o prêmio do CINEfoot ao lado dos três craques

Os três viam o futebol de alguma forma diferente que os craques da época?

Os três são herdeiros declarados da geração campeã na Suécia, em 1958. Sempre entenderam que o futebol brasileiro nunca poderia ter perdido aquela identidade essencial. Tinham plena noção de que a modalidade foi reinventada aqui e que aquela geração de Didi, Garrincha, Nilton Santos, Pelé, Djalma Santos, Zito etc representava o ápice da prática do esporte em escala mundial. Eles nunca ficaram indiferentes a esse legado e imaginaram poder dar continuidade a ele quando ingressaram no profissionalismo. Essa era a referência fundamental: o futebol percebido como fenômeno da cultura, forma de expressão artística, via de inserção social. Algo que transcende a mera competitividade. Da parte dos três, isso não era apenas uma percepção sensitiva, uma adesão sentimental, eles debatiam isso internamente, se posicionaram inúmeras vezes a respeito para a imprensa, o torcedor. (São coerentes com essa visão até hoje.) Foi essa a raiz dos conflitos com os dirigentes e comissões técnicas com quem tiveram que lidar ao longo das suas carreiras. Através da implantação da ditadura, o projeto de militarização da sociedade incluiu o futebol como um setor privilegiado de controle e propaganda junto às massas. Já na Copa de 66, na Inglaterra, apesar de ser um tópico pouco estudado ou mesmo comentado. Posteriormente, a coisa se aprofundou e a intervenção diária dos milicos dentro da estrutura dos clubes virou norma. Daí a emergência da figura do técnico como “professor”, a aparição dos preparadores físicos formados na Escola de Educação Física do Exército como referência vital no universo da bola que passava então a se “modernizar”. Uma espécie de início da adaptação ao modelo globalizado do jogo como podemos observar mais claramente nas últimas décadas, o que implicou a perda do estilo técnico particular, da habilidade, do talento individual, do improviso, da plasticidade. Sem contar as medidas de controle do comportamento dos jogadores na sua rotina dentro e fora dos clubes: proibição de cabelo grande, roupas “chamativas”. A barba do Afonsinho virou símbolo de resistência não foi de graça.O autoritarismo do período se metia em todas as frestas da vida social. Eles viveram esse processo na pele e pagaram um preço imenso, do qual nunca se arrependeram. Imagino que outros jogadores, principalmente os de maior talento no trato com a bola – como eles –, também se colocavam assim, mas, certamente, não se dispuseram a defender esse ponto de vista do mesmo modo, correndo o mesmo risco que os três não se intimidaram a correr. Por conta disso, talvez não seja errado afirmar que a política dos três fosse, antes de tudo, estética. (Estou me referindo menos aos cabelos e à indumentária dos três do que ao seu estilo de jogo.)

Os três jogavam juntos no Botafogo na que talvez seja a época mais dura da ditadura militar. Havia algum questionamento deles ao governo?

Totalmente. Não abriram mão de ser eles próprios justamente no período mais repressivo da ditadura militar que, como disse e a gente sabe, tinha um projeto de controle absoluto e de disciplinarização para o futebol. Isso os distanciava muitos da média dos jogadores da época, inclusive, daqueles considerados rebeldes. O diferencial do trio era a consciência. E o caráter político dela era evidente. Entravam com ela em campo e não a deixavam de lado quando estavam na concentração ou em outros momentos de convívio social com os colegas de classe. O Afonsinho e o Nei também conviviam com o professor Manoel Maurício de Albuquerque, historiador marxista que tinha o hábito de jantar no Hotel Argentina, no bairro do Flamengo, onde o time do Botafogo se concentrava. Outro que participava das conversas com o professor era o atacante Humberto Rêdes. Afonsinho, como estudante de medicina, frequentava reuniões clandestinas na universidade e cogitou muito a sério em integrar a luta armada. Ele afirma que não levou a iniciativa à frente porque era jogador. Ficou impossível conciliar as duas atividades, evidentemente. Já o Caju aderiu à causa negra mundial. Antes de adquirir consciência política mais específica sobre o que acontecia no país sob os generais, quando ainda iniciava no futebol, passou a se interessar pela trajetória de Muhammad Ali (OBS: escrevi seu nome aqui antes de saber da sua morte), Malcolm X, Martin Luther King Jr., Angela Davis etc. Sua posição contrária ao “mito fundador” da “democracia racial” no Brasil também lhe cobrou um preço imenso, reforçando ainda mais o estigma em torno do seu nome e das suas origens. Nunca deixaram de lembrá-lo, direta ou indiretamente, do quanto um negro favelado tem perspectivas praticamente nulas de ascender fora do futebol na sociedade brasileira. Sua resistência contra o racismo que nunca se apresenta como tal deriva dessa vivência. Mas tem um episódio de viés político na carreira do Caju que deveria ser muito mais citado… Durante uma reunião de jogadores, comissão técnica e dirigentes numa excursão preparatória da seleção para a Copa de 78, na Argentina, ele, titular absoluto, pediu a palavra. Quis fazer o mesmo que vira fazer antes líderes natos como Carlos Alberto Torres, Pelé, Gerson, que envergaram a mesma jaqueta amarela: reivindicar uma premiação geral mais à altura dos convocados. O então presidente interventor da CBD (a CBF da época), o Almirante Heleno Nunes, lhe cortou a palavra, sem pudor algum de exercitar o seu autorizado autoritarismo. A reação do Caju foi imediata: mandou que o oficial enfiasse no cu o seu arsenal de guerra e a sua frota de navios. O que o senso comum prefere julgar como destempero ou “marra” do craque (uma forma “elegante “de acusar que ele “não sabe o seu lugar”), foi na verdade um gesto de desobediência civil consciente, mesmo sob pena de ter tido que arcar com o prejuízo de nunca mais ter sido convocado para o escrete nacional. Na ocasião, ele foi o porta-voz de milhões de brasileiros que, apesar da imensa vontade, jamais poderiam ter feito o mesmo contra uma alta autoridade militar. Além disso, há um evidente elemento racista no comportamento do Almirante que o Caju captou na hora e não deixou barato. Obviamente, todos esses assuntos são abordados no filme.

Havia muita diferença, na época, entre a postura dos três e a do Pelé, que foi acusado muitas vezes de ter uma postura alienada da ditadura militar?

Os três eram a antítese do Pelé, do ponto de vista do posicionamento político. Em relação ao Caju, mais particularmente no âmbito do problema racial, a diferença é gritante. O Pelé sempre se manteve conciliador com respeito ao problema do negro no Brasil porque é, antes de tudo, um conservador. E sua boa relação com ditadores nacionais e internacionais também se baseia nisso, ideologicamente. Mas a persona do Pelé não cabe num debate sem nuances. Vou afirmar o óbvio que não se aceita facilmente por aqui: estamos falando de um gênio absoluto, total e definitivo na área de atuação esportiva dele. Quem nega isso o faz única e exclusivamente porque não gosta dele. Mais que desgostar, há um ódio militante contra a figura do Pelé no Brasil. Eis otermo técnico – que não se assume – para tanto: racismo. O lamentável é o próprio Pelé não acusar isso, o que implica uma cumplicidade involuntária da parte dele com esse fenômeno execrável da nossa formação histórico-social que o pegou para Cristo da raça. Em suma: no caso dele, pedir para o homem repetir o atleta é muito. E é exigir demais da Vida que uma mesma geração comporte dois Muhammad Alis… A complexidade do Pelé como figura pública é destrinchada por um depoimento do Afonsinho no filme, que atuou com ele no Santos em 1973. Fiz questão de tratar do Atleta do Século em Barba, Cabelo & Bigode com a seriedade que ele, como tema, merece. É um personagem que merece ser bem mais refletidamente analisado. Um gênio total dos gramados (o que não é pouco) condenado a ser o homem mais célebre do Planeta desde os 17 anos. Quem sobreviveria a isso aperfeiçoando progressivamente a técnica e a arte para continuar mesmerizando o mundo quando entrava em campo? (“Muhammad Ali, quando subia no ringue”,eis a resposta pronta, mas já observei, linhas acima, que dois corpos e mentes não ocupam o mesmo espaço no tempo – seria mais que contrariar uma lei da Física. Se me permite, deixo aqui este link de um artigo que escrevi para o Museu da Pelada em que trato deste mito moderno: https://www.museudapelada.com/resenha/contra-o-pente-fino-do-futebol


Quais as principais histórias dos três juntos? E dentro de campo, como eles se entendiam? 

As estórias deles são muitas. Juntos não saberia exatamente te dizer. Dentro de campo o entendimento era total. Foram poucas as vezes em que os três jogaram juntos, por uma série de questões diretamente relacionadas à trajetória deles no futebol. Só para se ter ideia, no filme, o litígio do Afonsinho com o Botafogo foi dividido em três capítulos, digamos assim. Começa com a disputa pela titularidade no time com o Gerson, considerado insubstituível. A torcida alvinegra (inclusive as adversárias) e a imprensa sabiam que ambos poderiam jogar juntos, mas nem os dirigentes, nem a comissão técnica do Botafogo julgavam assim. Decidiram que aquele jovem vindo do interior paulista para o Rio não deveria, além de jogar profissionalmente, estudar medicina. Menos ainda exercer a sua liderança espontânea entre os jogadores para reivindicar direitos básicos como, por exemplo, pagamento do “bicho” em dia. Decidiram também que a melhor coisa era mesmo pô-lo no banco. Insatisfeito com a reserva, Afonsinho quis se desligar do clube pelo qual torcia. Era um profissional que defendia, sobretudo, o seu direito de jogar. Qualquer outro clube do mundo garantiria sua escalação entre os titulares. Era um jogador de nível de seleção brasileira. Seu passe estava preso ao clube. A situação ficou incômoda para ambas as partes. A solução foi emprestá-lo ao Olaria, onde formou um meio campo clássico com Fernando Pirulito e Roberto Pinto e retomou o gosto pelo ofício. Jogou ali o futebol cadenciado e de toques fiel a sua escola. No retorno de uma excursão à Europa após ter rompido com o clube da Zona Norte, se reapresentou ao Botafogo e lá criaram o pretexto de barrá-lo por conta da barba e do cabelo que deixou crescer durante essa excursão. Tudo para desmoralizá-lo. E com o apoio direto dos militares, muito gratos ao Zagallo por ter voltado ao Brasil com a Jules Rimet para reassumir o comando técnico do Botafogo. O Afonsinho manteve pé firme no direito de garantir o direito de brigar pela posição e foi cortado do clube, que não abria mão do seu passe. Entrou numa longa batalha judicial com o Botafogo até conquistar o direito na justiça comum, e não na justiça desportiva – totalmente sitiada pela cartolagem – de adquirir o próprio passe. Foi em 1971, ano em que uma vitória numa causa pública como essa, na esfera do trabalho, era vista como grave subversão. Para a apreensão da ditadura, ela foi noticiada amplamente nos jornais, como não podia deixar de ser, pelo ineditismo do feito e o previsível impacto posterior no mundo do futebol. Além de ter sido uma deixa e tanto para os jornalistas que estavam ansiosos para confrontar o regime de exceção de algum modo. A conquista do passe foi uma revolução, sem dúvida, e no momento histórico mais improvável. A dívida dos jogadores profissionais que vieram depois para com o Dr. Afonso é imensa. A grande maioria nunca se deu conta disso. Já sobre o Nei Conceição circulam muitas estórias. Muitas delas não têm confirmação do próprio porque ele prefere que apenas se especule sobre aquilo que pode ou não ser a verdade factual dos acontecimentos. O Nei Conceição é um volante genial que caiu voluntariamente num relativo ostracismo – não para os que o viram jogar, que apontam a sua matada de bola como a maior do futebol brasileiro. Diria até que houve certo esforço da parte dele nesse sentido. O tiro meio que saiu pela culatra, já que todo o tipo de especulação surgiu para alimentar ainda mais o estigma que o cercava na época em que atuava profissionalmente. Daí as lendas que ficaram no imaginário das torcidas sobre ele. Uma das estórias é a da clássica não-transferência dele para o Palmeiras, mais precisamente para a segunda geração da Academia Palmeirense, onde ele iria compor o meio do campo com o Ademir da Guia. Claro, essa estória está no filme, em diferentes versões, porque, em se tratando do Nei, nunca se sabe ao certo como as coisas se sucederam. Ele realmente não facilita. E se você quiser saber a minha opinião, ele está mais do que certo. O fato é que o Nei está muito além do folclore que teimou em colar no nome dele. Afonsinho, seu grande parceiro dentro e fora dos gramados desde que se conheceram em 1965 no Botafogo, detecta nele uma sensibilidade ímpar. A expressão “jogar por música” que se emprega para definir o craque total, cai como uma luva no caso do Nei: ele era músico profissional antes de ser jogador. Toca vários instrumentos: violão, acordeon, trompete, percussão etc. O seu contato próximo com tanta gente do meio musical se explica por mais que uma mera afinidade – ele era do meio mesmo. Uma das mais célebres lendas sobre ele era que preferia treinar com os Novos Baianos, no sítio Cantinho do Vovô, em Vargem Grande, onde eles moravam, do que em General Severiano, sede do Botafogo.

O Caju sempre teve uma noção de negritude muito forte, foi um dos primeiros jogadores a adotar o blackpower. O que isso significou na época? Como você vê hoje a questão do racismo e principalmente da reação a ele no futebol?

Foi um impacto monumental, um jogador com a projeção que ele tinha, em plena era Médici, bater de frente publicamente contra a falácia da democracia racial no país tanto verbal como visualmente. O recado foi muito direto da parte dele. E acabou como uma atitude algo solitária no meio. Imagina o peso dessa responsabilidade de assumir em alto grau a consciência racial numa sociedade que institucionalizou a inexistência do racismo, apesar de todas as evidências em contrário? E num período histórico totalmente refratário a esse tipo de discussão? Todo tipo de acusação possível foi feita contra ele a partir daquela época. O Caju acabou se convertendo num caso típico de amor ou ódio. A questão racial também foi colocada por jogadores que antecederam o Caju como Leônidas da Silva, Fausto dos Santos, Barbosa, ou um técnico como Gentil Cardoso, mas não com a mesma adesão consciente e intensidade. O goleiro Aranha veio a ser um representante bissexto dessa luta no futebol brasileiro. Lamento que não seja algo mais frequente. O racismo é um tabu expressivo no nosso cotidiano. No futebol, é quase um assunto proibido. O Aranha se tornou ainda mais vítima do problema por ter se manifestado a respeito. A maior punição quem sofreu foi ele, e não aqueles torcedores do Grêmio (e não só a menina), que agiram criminalmente. Onde ele está agora? No ostracismo… Realmente, o Caju sobreviveu a muita coisa… Uma pena que o sermão sobre a mentira da “democracia racial” que ele passou nos dirigentes do Fluminense na cerimônia de apresentação dele nas Laranjeiras, quando ingressou na Máquina Tricolor, ficou de fora do filme. Admito que não conhecia ainda a estória quando elaborei o roteiro de perguntas.

Uma acusação que se faz muito ao Sócrates, por exemplo, que também foi um jogador contestador, é que ele deveria ter sido “mais atleta”. Isso é uma acusação que se faz aos três? Eles poderiam “ter ido mais longe”?

Esse estigma é fatal no caso de todo jogador com personalidade própria. Ainda mais quando ele se notabiliza por ser contestador em nome da classe. É uma velha estratégia de desqualificação. A gente sabe: parte considerável dos dirigentes, treinadores, imprensa e torcedores, na sua inclinação conservadora, costuma se engajar nesse tipo de campanha de detratação do atleta que não se encaixa em determinados padrões de comportamento. É um hábito tradicional da cultura da bola, em geral. Dele se cobram todas as virtudes morais que ninguém põe em prática, mesmos ainda quem faz essa cobrança. É uma vigília incessante. O fato do Afonsinho, do Caju e do Nei circularem pelo meio artístico sempre foi visto com reservas, quando não reprovado com veemência. A questão foi que a disciplinarização militar se esmerou em transformar o jogador numa máquina dócil, sempre apta a fazer uso da sua força física em primeiro lugar. Outros colegas do trio, como Geraldo Assoviador e Marinho Chagas, também se viram podados por essa política intervencionista do regime que tinha como aliada essa patrulha moralista. A pesquisa que o sociólogo José Florenzano fez sobre o Afonsinho e o Edmundo aborda isso de uma forma muito pertinente. Sobre o Sócrates quero dizer aqui, e sem nenhuma intenção de polêmica, que os três personagens do filme só não criaram algo como a “Democracia Botafoguense” porque viveram um momento bem mais repressivo que o da Democracia Corintiana, quando já vigorava a distensão política. Creio que havia um potencial enorme para a realização de uma experiência em termos similares. Um deles era a personalidade e o papel exercido pelo trio protagonista naquele grupo, apesar da evidente liderança tática e, por consequência, moral do Gerson, um craque genial com grande senso coletivo dentro do campo, mas, fora dele, pouco inclinado a ter a mesma atitude. Guardando as devidas dessemelhanças, esbocei um paralelo Afonsinho/Sócrates, Paulo Cézar Caju/Wladimir, Nei Conceição/Casagrande para o Afonsinho e ele achou interessante. Demérito algum na história daquele movimento de autogestão por ter acontecido durante a abertura da ditadura. Não foi nada fácil levar aquilo adiante, a gente sabe. Combater a estrutura feudal do futebol brasileiro é uma tarefa reservada apenas aos realmente destemidos. O Afonsinho e o Caju eram grandes amigos do Sócrates e são admiradores da Democracia Corintiana, claro.

Você acredita que ainda hoje existe espaço para jogadores como os três? Na sua opinião existe um desinteresse dos jogadores de hoje com posicionamentos políticos e sociais? 

Ao que tudo indica, infelizmente, não há mais espaço. Lembro aqui a entrevista do Daniel Alves num programa da ESPN, no ano passado. Ela foi anunciada como bombástica, reveladora, já que ele não teria refugado diante de nenhuma pergunta. E o que se viu foi só o que se pode esperar, na atualidade, de um jogador a quem se convenciona atribuir qualidades como “ter personalidade” e “falar exatamente o que pensa”. É um contexto de enorme limitação de ideias e valores. A rigor, nada o que pensa ou o que “tem a dizer” o lateral direito do Barcelona interessa. (Exceto para o seu empresário, talvez.) Foram duas horas de ode à “excelência” e a uma muito louvada, ultimamente, “meritocracia”. Foi a confirmação de que o modelo de futebol globalizado exige o jogador esvaziado da capacidade de ter opinião própria real. Sem pudor ou medo de aparecer, a face da escravidão moderna no seio do futebol profissional se mostrou naquela noite. Foi até didático. O marqueteiro, o assessor de imprensa, o consultor nem sei exatamente do quê e outros aspones muito bem remunerados converteram o jogador numa marca comercial rentável a ser negociada com grandes clubes, agências de publicidade e redes de televisão. Não tenho notícia de nenhum atleta atual que tenha se insubordinado,mesmo para posar bem para foto, contra isso. (O prejuízo decorrente disso poderia alcançar cifras incalculáveis.) Sinceramente, gostaria de ser apresentado a um para me sentir menos cético. O Emerson Sheik vai pela mesma linha. Me aponte uma única polêmica dele com um mínimo de densidade. Nada além de um imenso e inabitável oco.  Temos aí o Bom Senso FC, uma experiência destituída de qualquer sentido ideológico definido, que parece mais uma organização de empresários que se juntaram para defender os seus interesses corporativos. Mas, claro, sem deixar de apelar para o já manjado e conveniente método de propalar certa “responsabilidade social” ao não deixar de fora do papel as reivindicações dos times das divisões de baixo e mais uma ou outra medida demagógica. Uma boa jogada de marketing para a defesa da reputação da iniciativa. Mas a gente sabe que o recado não poderia ser mais claro: o que está em primeiríssimo plano é a luta pela garantia do interesse financeiro do jogador de elite que não quer perder parte dos lucros para o cartola e para a emissora de TV no negócio da exploração da sua imagem. A não ser que haja uma revolução que ainda não mostrou a cara, definitivamente não há espaço para jogadores como Afonsinho, Paulo Cézar Caju e Nei Conceição no futebol dito “moderno”. Portanto, azar o dele.

 

*Bruno Pavan é jornalista

**Lucio Branco é cineasta (porque a era digital aconteceu)

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *