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valdir appel

CÁDIZ

por Valdir Appel


O avião que transportava a delegação vascaína pousou em Madri. 

Na lanchonete do aeroporto, os jogadores foram surpreendidos pelo ponta-esquerda Moraes, que pediu a garçonete, em perfeito portunhol:

– Por favorzito, dê-me una Cueca-Cueja!

Imediatamente, virou intérprete da rapaziada.

De Sevilha, os cruzmaltinos seguiram para Cádiz, em ônibus especial, para disputar o torneio Ramón Carranza, que reúne costumeiramente duas equipes espanholas e duas sul-americanas.

Sexta-feira, para entrar no fuso, o time foi treinar à noite e fazer o reconhecimento do gramado do estádio. Foi mais um recreativo descontraído do que propriamente um ensaio técnico.

Às 22h, com o sol ainda se pondo em Cádiz, o pessoal zanzava pelo hotel, sem sono; afinal, ainda eram 18h, na cabeça da rapaziada. 

O técnico Gentil Cardoso, velha raposa, confiando nos seus comandados verificou, às 22h30, que todos já haviam levado suas chaves da portaria do hotel, e concluiu que os jogadores haviam se recolhido aos seus apartamentos. 

Na verdade, todos saíram com suas chaves no bolso, a pé, pelas ruas da histórica cidade, em busca dos seus tradicionais bares. 

E, de bar em bar, grupos revezavam em volta das máquinas de jogos eletrônicos, novidade para a maioria, na época, disputando rodadas de cerveja com azeitonas sem caroço. 

Quem perdia, pagava.

A consequência veio no dia seguinte. 

Jogo contra o Real Madrid de Gento, maior estrela do time espanhol e lendário ponta-esquerda, já com seus 40 anos, em fim de carreira.

No vestiário, Ari, que marcaria Gento, fazia seu aquecimento bastante otimista:

– Hoje é mole, vou dar um  no velhão!

Ari foi substituído ainda no primeiro tempo, depois de levar um baile e três gols pelo seu setor. Gento também cedeu lugar ao jovem Amâncio, que deu show na segunda etapa, enquanto um gol solitário e de bela feitura do ponteiro Nado foi a única nota digna de registro da derrota histórica por 6 a 1.

No domingo, em disputa do terceiro lugar, nova derrota, agora para o Peñarol, de Figueiroa, Abadi e Spencer, por 3 a 1, com três gols de Pedro Rocha. 

O Valência se sagrou campeão, derrotando o Real.

A taça recebida pelo quarto lugar, foi apelidada pelos jogadores de Troféu Chacrinha. 

À noite, no hotel, alguém escondeu o troféu e provocou sérios transtornos. Até a polícia foi chamada, e a busca terminou dentro do saco de chuteiras dos jogadores, irritando profundamente o massagista Marinho, responsável pela bagagem, que nada tinha a ver com o caso. 

Alheios a confusão, Gentil, o goleiro Franz e o Dr. Marcozzi conversavam na porta do hotel e foram atingidos por um balde de água fria jogado em suas cabeças. 

Franz ainda argumentou que a água provavelmente era proveniente de algum toldo recolhido de uma sacada. Não convenceu muito porque não chovia há meses em Cádiz. Na verdade, todos sabiam que as sacanagens eram obras do Ananias e do Brito, mas ninguém entregava, por cumplicidade.

SEU CHICO

por Valdir Appel


Por mais de 40 anos, o Vasco teve um mordomo que fez da rouparia o seu santuário.

O presidente João Silva pedia licença e apenas Fontana, Brito e Danilo Menezes eram (eventualmente!) autorizados a entrar naquele recinto. 

Da janelinha daquele escaninho, seu Chico mostrava apenas seu magro rosto, sempre com um cigarro no canto da boca, rosnando em resposta um bom dia mal humorado e ranzinza, àqueles que timidamente o cumprimentavam.

Detestava futebol! Jamais foi visto na saída do túnel dando uma espiadinha no andamento de uma partida. Tomava conhecimento dos resultados apenas para saber se receberia bicho ou não.

Nos vestiários, os jogadores não tinham o que reclamar dos serviços do seu Chico. As cestinhas de material eram entregues por ele de forma impecável. Não cometia erros, não dava oportunidades a reclamações.

O que alegrava os atletas era a chegada de um jogador para testes. Sulista, então, era um prato cheio! Um de nós checava o material do recém-chegado e sugeria que ele fosse pedir atadura para proteger os pés.

– Seu Chico, o senhor poderia me ver uma faixa?

Chico ia até o armário da rouparia e trazia a faixa de campeão de 1958 e a entregava para o jogador:

– Pronto, aqui está a sua faixa.

– Seu Chico, é faixa para os pés!

– Ah, então o senhor quer uma atadura?

– Isso, isso, seu Chico!

Chico então lhe dava uma atadura. O cara dizia que eram duas. Chico replicava:

– Então, o senhor quer um par de ataduras!

Torcedores visitantes também nos deixavam felizes:

– Seu Chico, é uma honra conhecer o roupeiro mais famoso do Brasil! Venho de Itajubá, Minas Gerais, lá só tem vascaíno. Eu, por exemplo, sou doente pelo Vasco!

Chico esticava a mão para fora da rouparia e apontava o dedo:

– Entre na primeira porta a esquerda e procure o doutor Marcozzi. Doente, é com ele.

Chico não gostava do nosso treinador, Célio de Souza, e fazia questão de que todos soubessem. O goleiro reserva, Celso, atendendo a um pedido do Célio, foi ao vestiário pedir que seu Chico enviasse todos as bolas disponíveis para fazer um treinamento diferenciado.

– Pra quê todas as bolas?

– Sei lá, seu Chico!

– Pra quê todas as bolas, se uma já atrapalha vocês?

Novamente o Celso, sempre ele…

– Seu Chico, o seu Célio mandou pedir mais um jogo de camisas.

– Quem é o seu Célio?

– Ora, o seu Célio de Souza, treinador do Vasco!

– Não conheço nenhum Célio de Souza treinador. Volta lá e pede pra ele mandar o diploma!

Por conta do Ademir Menezes, passamos alguns constrangimentos…

Ademir costumava ir ao vestiário, quando o jogo era no Maracanã, para nos visitar. Nestas raras ocasiões, seu Chico saía do seu cubículo, se aproximava do grande Queixada, ajoelhava-se aos seus pés e os beijava, dizendo:

– Este sim, me deu muito bicho! Não estes merdas que estão aí, agora!

O MÉDICO E O MONSTRO

por Valdir Appel


Em 1969, o Vasco abriu as portas para dois jovens talentos: o ex-craque Evaristo Macedo e o ortopedista Arnaldo Santiago.

O técnico Evaristo, culto e educado, fazia questão de passar uma imagem de um sujeito sarcástico e gozador, e usava constantemente palavrões no meio da boleirada. 

Caminho mais curto, segundo ele, para a comunicação com os jogadores.

Em contrapartida, Arnaldo se portava como um gentleman dentro e fora das quatro linhas do gramado e procurava desesperadamente melhorar a educação e o nível cultural da rapaziada. 

Orientava e chamava a atenção dos que falavam palavrões, tarefa nada fácil, já que Evaristo não colaborava, por pura sacanagem.

Evaristo fazia suas preleções colocando-se estrategicamente de costas para a saída do túnel que dava acesso ao campo em São Januário, pedindo que os jogadores o avisassem quando da aproximação do doutor Arnaldo.

Assim que o médico apontava no túnel, um jogador entregava:

– Lá vem o doutor!

Imediatamente, Evaristo aumentava o volume da voz e desfilava todos os palavrões do seu amplo repertório.

O doutor Arnaldo aproveitava o embalo, fazia meia volta e retornava ao departamento médico, com todo mundo caindo na gargalhada.

PRESIDENTE FLEUMÁTICO

por Valdir Appel


Joguei em vários clubes brasileiros, e tive a oportunidade de conhecer presidentes que fizeram história à frente deles. Alguns folclóricos, outros déspotas; alguns maquiavélicos, outros tirânicos; alguns autoritários…

Quando cheguei ao Vasco da Gama, o presidente era João da Silva ou simplesmente seu João, como os jogadores o chamavam, e seu vice era Antônio Soares Calçada.

Seu João era um dos donos da Carrocerias Metropolitana, instalada na Avenida Brasil. Chamava a atenção pelos hábitos elegantes e conduta de um lorde inglês, algo incomum para um homem que começou a vida como comerciante, dono de uma banca de jornais.

Gostava de circular com o seu chapéu de feltro, fumando cachimbo com um fumo aromático importado. De fleumático tinha algo: era categórico, imperturbável e decidido. Cordial e de fala mansa, transpirava credibilidade e confiança. Gostava e falava com orgulho das qualidades de sua Mercedes Benz conversível:

– Ninguém abre o motor de uma Mercedes antes de 15 anos de uso!

Observando-o, tornei-me um fumante de cachimbo e usuário de um chapéu idêntico ao dele, que comprei em Lisboa. Meus papos com o presidente, nas concentrações, eram sempre sobre cachimbos. As melhores marcas, tamanhos, filtros e formas. Tabacos, tipos de tabacos. Como encher o cachimbo, como acender, como mantê-lo aceso.

Por último, falávamos sobre a limpeza do cachimbo com escovilhões cônicos e a necessidade, por vezes, de usar alguma bebida com alto teor alcoólico para fazer uma limpeza mais profunda. Virei colecionador, cheguei a ter 27 cachimbos: inglês, italiano, americano e até japonês.

Em 1970, seu João era o vice-presidente do senhor Agarthino Gomes. Seu João participava ativamente de todas as atividades do clube e, nas preleções do técnico Tim, sentava-se no meio dos jogadores, absorto, enquanto o mestre estrategista mexia os seus botões, posicionando a sua equipe e revelando os segredos do adversário.

Na terceira rodada do campeonato carioca, Tim fazia sua preleção e, ao definir a lateral esquerda com Batista (que vinha atuando bem), João Silva o interrompeu. Tirou o cachimbo da boca e indagou:

– Tim! Batista?

E Tim respondeu:

– Batista, não. Eberval!

Nos olhares trocados entre os jogadores, a pergunta: seu João estaria escalando o time?

Com a ajuda do presidente ou não, o Vasco foi campeão carioca naquele ano.

A GOLEADA VASCAÍNA

por Valdir Appel


Logo após a conquista do título carioca de 1970, o Vasco conseguiu uma excepcional vitória contra o Santos de Pelé, 5×1 no Maracanã, pelo Campeonato Brasileiro.

Este jogo fazia parte de um dos testes da então recém lançada loteria esportiva no país e o Santos era tão superior tecnicamente ao time do Vasco, que ganhadores do concurso fizeram apenas 12 pontos, errando exatamente este jogo.

No princípio dava a impressão de que a equipe santista massacraria a cruzmaltina. O Santos atacava e alugava meio campo, mas a cada contragolpe o Vasco marcava um gol, chegando aos 4×0 rapidamente.

O torcedor não acreditava no que estava vendo e muito menos o pessoal do banco de reservas do Vasco. Quando o Santos diminuiu o placar fazendo o seu gol, que seria o de honra, um dos reservas comentou:

– Vejam como o “negão” Pelé buscou a bola no fundo das redes! O Santos vai virar este jogo!

O zagueiro Joel Santana foi o primeiro a sentir a disposição de Pelé e levou uma cotovelada do Rei, num lance na lateral do campo, que aumentou o volume e deixou marcas para sempre no nasal do rapaz.

Mas, apesar de toda pressão santista, um gol vascaíno logo no início do segundo tempo matou o jogo e o ânimo do time do Rei Pelé.

Esta foi a única grande performance vascaína na competição.

O Vasco, paralelamente ao Campeonato Brasileiro, viajava e intercalava amistosos pelo país afora, usufruindo o prestígio de campeão carioca.

Os jogadores viviam em ritmo de festa com a complacência do treinador Tim.

Em um amistoso em Aracaju, à noite, o time atrasou na saída para o estádio, porque os jogadores não desciam para a recepção, envolvidos que estavam num jogo de cacheta.

Os quartos conjugados do hotel, davam passagem para reunir o maior número possível de atletas em volta de um colchão, onde as apostas corriam soltas. Alguns perderam o prêmio da conquista do Campeonato Carioca nesta viagem.

Após a partida, Tim liberou o grupo até o café da manhã.

Todos sem exceção foram para um bordel, que fecharam como se privado fosse. Houve quem dançasse tango, alguns transaram e outros apenas beberam.

Um deles deu volta olímpica no interior do bordel, nu em pêlo, enquanto duas “senhoras” se atracavam no quarto de onde ele saiu.

O craque afirmava que elas estavam brigando por causa dele.

Finalmente, todos conseguiram voltar ao hotel a tempo de arrumar as malas e tomar o café da manhã, fazer o check-out e seguir para o aeroporto.

Em pleno voo, os grupos de cacheta se formavam envolvendo assentos, obstruindo o serviço de bordo e o livre trânsito no interior da aeronave, causando constrangimento a passageiros e aos comissários de bordo.

O presidente João Silva teve que intervir, proibindo de vez a jogatina.

Vinte e quatro horas depois tudo, voltou à rotina em São Januário, exceto pela gonorréia que alguns jogadores trouxeram de lembrança do nordeste.

Colocados em quarentena pelo departamento médico, desfalcaram o time no jogo seguinte.

(Torneio Roberto Gomes Pedrosa, 1970)