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valdir appel

O MITO NÃO MORRE

por Valdir Appel


Em 1960, o Vasco veio a Brusque exibir a Taça Jules Rimet conquistada na Suécia, para meus conterrâneos, na sede social do Clube Esportivo Paysandu. Eu tinha 14 anos.

No empurra-empurra, consegui ficar frente a frente com Barbosa, a lenda viva. Tímido, só consegui pedir um autógrafo na minha caderneta de estudante, caderneta que virou atração na escola. Pudera, não era só o autógrafo do grande goleiro Barbosa; consegui que todos os jogadores vascaínos, liderados pelo campeão do mundo Bellini, eternizassem aquele momento.

Um ano mais tarde, Barbosa estaria de volta a Brusque para uma homenagem. Na verdade, um presente do Paysandu, iniciativa do presidente Polaco aos associados do clube que tinha uma maioria absoluta de torcedores vascaínos.

Atendendo aos pedidos, o goleiro não se fez de rogado e treinou com os profissionais do nosso alviverde. Fiquei atrás do gol, buscando os arremates sem rumo porque os tiros que atingiam o arco paravam nas seguras mãos de Barbosa. Ele não usava luvas, o que lhe rendeu muitas fraturas e dedos tortos. Aliás, durante muito tempo, vivemos a ilusão de que o Paysandu iria contratá-lo em definitivo.


Eu ouvia as transmissões dos jogos do Campeonato Carioca, e particularmente os do Vasco. Conhecia apenas pelo nome os oponentes que desafiavam a perícia, a colocação e agilidade do elástico goleiro. Com sua imagem nítida na minha retina, guardada daquele treino, eu podia ver suas defesas se materializarem na voz dos locutores da Rádio Nacional do Rio de Janeiro.

As revistas esportivas (raras por aqui) volta e meia traziam fotos do arqueiro em ação. Uma delas me deixou extasiado: o corpo na horizontal, paralelo ao travessão, o toque na bola com a ponta dos dedos, de mãos trocadas.

Pude vê-lo mais uma vez em ação, no Maracanã. Estava na arquibancada, logo atrás do gol, a esquerda da tribuna de honra. O jogo, uma preliminar de veteranos. No corpo atlético de Barbosa, apenas os cabelos grisalhos evidenciavam o passar dos anos.

No final do primeiro tempo, um chute diagonal riscou o espaço entre a grande e a pequena área, o corpo negro trajando uniforme cinza, ergueu-se com a leveza de quem nunca envelheceu: voou como um pássaro, e buscou a bola-menina que sempre lhe foi obediente. Desceu ao solo para receber os aplausos maravilhados dos espectadores, no maior estádio do mundo.

O eu menino estava lá, com um sorriso maroto e emocionado.

GUALICHO

por Valdir Appel


Em 1967, Mané Garrincha já não era o mesmo.

Sem clube, sem oportunidade, desacreditado.

Mas, um pedido comovente dos jogadores vascaínos, liderados por Brito, nosso capitão, convenceu os dirigentes e o técnico do clube, a dar uma nova oportunidade ao genial ponta-direita.

Terça-feira.

Mané chegou com seu andar torto.

Trajando camisa aberta no peito, bermuda e chinelo de dedo.

Nos vestiários, vestiu seu agasalho de plástico escuro.

A chuva lá fora nos tirou o gramado, e o treino foi transferido para o ginásio.

O espaço menor aproximou o grupo.

As ordens de Gentil Cardoso eram passadas ao pé do ouvido.

O cone com o desenho da cruz e malta não teve o costumeiro uso.

O megafone ficou largado, oscilando junto ao corpo do técnico.

Lado a lado corríamos.

Manquitolando, Mané Garrincha faz par com Brito.

As bochechas enormes, as pálpebras caídas, os ombros pesados, denunciavam o seu pesadelo.

O plástico de seu esquente, derretia o excesso da noite mal dormida na sua rotina noturna – madrugada de doses de traçado, ao som da voz rouca de sua amada Elza nas boates de Copacabana.

O início dos trabalhos no clube para a necessidade de descanso do craque, era um pesadelo. Muito cedo para fazê-lo entrar em forma.

E, naquela manhã, não seria diferente. O espaço menor não diminuía o tempo de esforço.

Mais voltas para compensar os limites do ginásio e quebrar o pouco da resistência que sobrava ao Anjo Torto.

Naquela manhã, corríamos em silêncio.

Um pouco pelo tempo fechado e escuro, que nos manteve contidos.

As brincadeiras sem graça foram substituídas pelo sopro de cada um para o atleta cansado.

Sopro de respeito, de reconhecimento e de vida, injetado com vigor, para reerguer o mito Gualicho*.

Após as insuportáveis e intermináveis voltas, a ordem de parar nos jogou ao chão. Em círculo, para a sessão de ginástica, e suas longas sequências de exercícios localizados.

Mané puxou, com dificuldade, uma perna para abraçá-la. Depois a outra.

Estava ao lado do pássaro ferido, e não pude disfarçar a lágrima que desceu pela minha face.

Mané já não esperava a volta do adversário para driblá-lo de novo.

A vida já o driblara.

Só que ele ainda não sabia.

 

*Gualicho- Apelido do Garrincha antes da fama. Gualicho, cavalo argentino ganhador de Grandes Prêmios no Brasil, nos anos 50.

 

O ANJO TORTO

por Valdir Appel


Ele viajou em seu confortável Impala, levando um enteado e mais dois garotos oriundos dos juvenis do Vasco, para a cidade serrana de Cordeiro, distante aproximadamente 200 quilômetros do Rio de Janeiro, para disputar um amistoso contra uma seleção local, e que marcaria a sua estreia com a camisa da cruz de malta. 

No caminho, fez discretas paradas em botecos de beira de estrada para molhar o papo e limpar a poeira do gogó.

Ao chegar, foi recebido pelo centroavante Bianchini, que o conduziu à residência do seu sogro. 

Disposto a impressionar, o anfitrião mostrou uma garrafa de cachaça envelhecida em tonel de carvalho, guardada a sete chaves, e que só seria aberta no dia em que pisasse em sua residência uma das três celebridades que tanto admirava: governador Carlos Lacerda, Pelé e Garrincha.

– Pois então, chegou a hora de abrí-la! – disse o visitante que, munido do copinho especial para doses, não se fez de rogado e repetiu várias vezes a marvada. 

Concordou com o anfitrião: a cachaça era realmente deliciosa! 

Porém, Mané preocupou-se em permitir aos garotos que o acompanhavam apenas o consumo de refrigerantes. 

Um barbeador elétrico foi providenciado também, para o craque fazer a barba de alguns dias.

Já o ônibus do Vasco, que levava um time composto de alguns titulares, juvenis e jogadores em teste, comandado pelo “Queixada” Ademir Menezes, foi direto para o estádio. 

Nos vestiários, a curiosidade e a expectativa pela estreia do ponta não era só dos dirigentes e torcedores: os próprios jogadores, principalmente os mais jovens, acompanhavam com interesse todos os movimentos do ídolo. Ficaram surpresos, principalmente pelo fato dele vestir somente calção, meias e chuteiras, além da camisa, desprezando ataduras e o suporte que todo atleta usava. 

Foi um sufoco para o time entrar em campo, todos queriam ficar próximos do homem das pernas tortas. Não havia alambrados, apenas uma mureta de madeira, separando o publico dos jogadores. Policiais fizeram um cordão de isolamento para que os dois times chegassem ao centro do gramado. Mesmo depois de iniciado, o jogo foi interrompido algumas vezes por causa da invasão de apaixonados torcedores que queriam uma foto ou simplesmente tocar naquele que já fora o maior ponta direita do mundo.

Na primeira bola que Garrincha recebeu, ele a dominou e parou em frente ao marcador. Hipnotizou-o, ensaiou a saída, e arrancou para a direita, sem a bola. O lateral o acompanhou. Mané voltou e verificou que o ponta esquerda adversário recuara em socorro do lateral, roubando a bola que ele havia deixado para trás. 

A torcida explodiu numa vaia!

– Xi! Mexeram com o homem! – comentou o meia vascaíno Paulo Dias com os companheiros.

E como mexeram! Daí pra frente, foi um espetáculo que ele jamais repetiria com a camisa do Vasco: dribles, arrancadas, passes perfeitos e um gol de falta, numa exibição magistral durante aqueles inesquecíveis 90 minutos. 

Por mais incrível que possa parecer, Mané Garrincha, antes de se imortalizar com a camisa 7 do Botafogo, tentou a sorte no Vasco da Gama. Uns dizem que ele não ficou por causa das pernas tortas e de um desvio na coluna; outros, que ele não levou chuteiras e por causa disso foi impedido de treinar.

Coube ao Vasco, em 1967, atendendo ao pedido de um grupo de jogadores liderados pelo capitão Brito, a missão de tentar recuperar a “alegria do povo”, já no ocaso da carreira. O último clube de Mané fora o Corinthians, onde jogara sem brilho. 

Totalmente dependente da sua companheira Elza Soares, a única pessoa que lhe foi fiel, varava as noites e madrugadas acompanhando seus shows e bebendo em demasia. 

Mané chegava em São Januário bem cedo para os treinos, com os olhos tristes e fundos, e revelando, no andar cansado e desanimado, sua impotência para vencer os vícios. 

Praticava exercícios leves que pouco ou nenhum resultado traziam ao seu corpo debilitado pelo excesso de peso. Nós percebíamos a sua boa vontade e a inutilidade dos seus esforços. Todos torciam por ele, mas ninguém acreditava mais no seu futebol. 

O Vasco desistiu dele ou ele desistiu do Vasco? Nunca fiquei sabendo. Mas ele nos reservou uma surpresa. 

No ano seguinte, foi o Flamengo quem lhe deu uma derradeira oportunidade. E foi justamente contra o Vasco, que ele presenteou os torcedores e admiradores com o seu ultimo grande show.

Era uma quarta-feira, de noite estrelada, propícia para a prática do futebol. 

O Maracanã, seu palco preferido, estava decorado a caráter. Quase 90 mil pagantes assistiram, incrédulos, suas arrancadas, sempre pela direita, em cima de um impotente lateral esquerdo, Eberval, que pedia ajuda de Fontana e Brito, que eram driblados em fila, provocando na platéia momentos de puro êxtase.

Os locutores das rádios passavam tanta emoção e vibração na narração daqueles momentos materializados como um milagre, que milhares de torcedores sem ingresso, que escutavam o jogo do lado de fora do Maracanã, colocaram abaixo um dos seus portões. Aos empurrões, alcançaram as ladeiras do estádio, pularam as catracas e chegaram as arquibancadas para poder ver o que parecera (até então!) improvável: a ressurreição de Garrincha.

A metamorfose durou menos de 45 minutos. Seus joelhos sentiram as jogadas mais duras da nossa zaga. Os torcedores, de pé, ovacionaram sua saída de campo. Um público silencioso e triste viu um segundo tempo sem graça, e o fim da magia deixar pra sempre o maior estádio do mundo.

Foi a única vitória contra o nosso maior rival que eu não comemorei.

GENTIL

por Valdir Appel


Talvez seja pura lenda. 

Circulava entre os boleiros do meu tempo, a história de um jogo na Bolívia, nos anos 1950, entre o Vasco da Gama e um time de La Paz. Preocupados em evitar uma goleada histórica do timaço vascaíno, os dirigentes andinos resolveram buscar na arbitragem uma forcinha para equilibrar o jogo. 

Os times brasileiros geralmente aplicavam sonoras goleadas nos times locais.

Velha raposa, Gentil Cardoso, treinador do Vasco, previamente informado das intenções do seu adversário, matreiramente desembarcou na Bolívia, não como técnico, mas se fazendo passar por árbitro de futebol. 

Hospedou-se num hotel longe dos seus comandados e fez circular a notícia de que estava na cidade um famoso árbitro argentino.

Os dirigentes locais entraram em contato com Gentil, que foi contratado para apitar o jogo.

A partida seguiu bem disputada até a metade do segundo tempo, o Vasco vencia por um módico 1 a 0, e o público estava empolgado com o seu time, que encarava com garra os brasileiros. 

Aos 20 minutos, um atacante do Vasco trombou com um zagueiro boliviano, e caiu na área. 

Gentil, incontinente, assoprou o seu apito e disparou em direção a grande área, com o dedo indicador apontando a marca do pênalti.


Em questão de segundos, estava rodeado de jogadores e dirigentes locais, que saíram do banco de reservas esbravejando e contestando a marcação do árbitro hermano. 

Era uma gritaria só:

– Usted no es hombre para marcar un pênalti contra nosotros, en nuestra casa!

– Usted no vá salir vivo de acá!

Gentil acalmou os agressores: 

– Ustedes no entenderán nada! Y ese dedito acá no vale nada? La falta es para allá!

Gentil mostrou o dedo polegar indicando a direção contrária, marcando falta do atacante do Vasco.

Gentil Cardoso

Descrição

Gentil Alves Cardoso, foi um treinador de futebol e uma das figuras mais folclóricas do esporte. Gentil Cardoso era torcedor e técnico do Bonsucesso. Wikipédia

Nascimento: 5 de julho de 1906, Recife, Pernambuco

Falecimento: 8 de setembro de 1970, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro

JOÃO AVELINO, O POPULAR 71

por Valdir Appel


Baixinho, bochechudo, de bigodinho aparado, chapéu de palha para proteger a calvície do sol, e dono de um humor sarcástico e afiado, o treinador João Avelino parecia uma figura chapliniana comandando suas equipes.

Montou o primeiro time do Ceub de Brasília para a disputa do campeonato brasileiro de 1973.

Cabia ao jogador identificar um elogio por trás das palavras duras e das críticas que ele fazia constantemente.

Era dado a comparar de forma pejorativa um atleta seu a outro mais famoso:

– Pelé perde pra você! Se você continuar chutando assim, vai matar o goleiro… de raiva!

– Vaii cabecear assim na casa da mãe Joana!

Suas provocações davam resultado, mexiam com os brios dos jogadores que se superavam.

Quando o estádio Mané Garrincha estava prestes a ser inaugurado e alguns treinos foram permitidos para reconhecimento do gramado, um repórter pouco experiente foi entrevistar João Avelino:

– Seu João, o que o senhor está achando do gramado?

João se abaixou, colheu e mastigou um cadinho de grama, e respondeu:

– Verdinho, macio e azedinho, meu filho!

O mesmo incauto repórter:

– Seu João, como é que o senhor está vendo o jogo?

– Com os olhos, meu filho, com os olhos!

João Avelino Gomes, mais conhecido apenas como João Avelino ou como 71, foi um treinador de futebol brasileiro, que se destacou principalmente por suas passagens em dois clubes da cidade paulista de São José do Rio Preto: o América-SP e o Rio Preto. Wikipédia

Nascimento: 10 de novembro de 1929, Andradas, Minas Gerais

Falecimento: 24 de novembro de 2006

Local de nasc: Andradas (MG), Brasil