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Brasil

EXORCIZANDO O “SARRIÁ” DE 82

por Émerson Gáspari


Quando eu – um ancião que assistiu a todas as Copas desde 1930 – me propus a usar minha fantástica imaginação para “brincar de Deus” e alterar o “Maracanazzo” de 50, jamais poderia esperar tamanha repercussão por parte de vocês, aqui no Museu da Pelada. Por isso, cumpro agora minha promessa feita na semana passada: exorcizar todos os demônios daquela que ficou conhecida como “A tragédia do Sarriá”. 

Segunda-feira, 05 de julho de 1982. Muito calor na cidade de Barcelona, onde daqui a pouco, a favoritíssima Seleção Brasileira joga sua sorte contra a limitada Itália, pela XII Copa do Mundo, realizada aqui na Espanha.

Apresso o passo, pois as filas são grandes do lado de fora do estádio Sarriá. Há torcedores por todos os lados, atraídos por um jogo que realmente promete! 

O Brasil é a mais pura expressão do futebol-arte, dono de um meio-campo mágico, esplendor de uma constelação de craques. Este setor do time é a tradução fidedigna da nação futebolística, com seus quatro estados mais tradicionais ali presentes: Falcão (Rio Grande do Sul), Toninho Cerezo (Minas Gerais), Sócrates (São Paulo) e Zico (Rio de Janeiro). A identificação com o torcedor é total.

Desde o ano passado, a equipe maravilha o mundo com exibições exuberantes. Em sua última excursão à Europa, derrotou com autoridade a França (3×1), a Inglaterra (1×0) e a Alemanha (2×1). Em seu último amistoso no país, antes de embarcar para a Espanha, o Brasil esmagou impiedosamente a Seleção do Eire por 7×0, com quase trinta chances de gols criadas durante a partida. Parece nem se ressentir de um centroavante técnico, pois os dois melhores do país neste quesito, Careca e Reinaldo, estão sem condições de jogo e sequer viajaram para a Europa. Pena!

Já por aqui, os “artistas brasileiros” derrotaram a União Soviética na estreia por 2×1 (de virada), golearam a Escócia por 4×1 (também de virada), brincaram com a Nova Zelândia (4×0, com apenas 8% de passes errados) e despacharam a atual campeã do Mundo; a Argentina (3×1, com Maradona expulso, por apelar). 


Quanto à pobre “Squadra Azurra”, merece nosso respeito mais por sua tradição, do que pelo futebol que vem jogando. Após escândalos como a prisão do artilheiro Paolo Rossi (por manipulação de resultados), tropeços seguidos e um futebol retrancado e desacreditado, seu treinador, Enzo Bearzot tem trabalho para convencer a todos que podem vencer a partida.

A Itália passou à duras penas pela primeira fase da Copa, contando com o critério de desempate e um mísero gol a mais do que o estreante Camarões. Depois, até surpreendeu, vencendo a Argentina por 2×1, num confronto que ficou marcado pela caça à Maradona. De qualquer modo, a equipe não joga um futebol convincente, mesmo contando com ótimos jogadores.  

Nenhum torcedor sabe que na preleção, Falcão faz uma colocação quanto a atuarem mais recuados dessa vez, até por possuírem a vantagem do empate. Mas o grupo, após Telê discordar, fecha com o treinador, de que é melhor jogar pra frente, “pois está dando certo, até aqui”. 


É sob essa atmosfera, que Brasil e Itália vêm a campo. Encontro-me na arquibancada, tomando mais uma garrafa de água com gás, nessa tarde abafada e decisiva para o futebol das duas equipes. Um empate nos classifica, mas queremos a vitória. E por goleada, se possível!
Tiro a camisa da Seleção e a enrolo na cabeça, devido ao sol escaldante, enquanto confiro as escalações: o Brasil vem com Waldir Peres, Leandro, Oscar, Luisinho e Júnior; Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico; Serginho e Éder, sob a batuta de Telê Santana. A Itália de Enzo Bearzot, com Zoff, Orialli, Scirea, Collovati e Cabrini; Gentile, Tardelli e Graziani, Bruno Conti, Paolo Rossi e Antognoni.  

O árbitro israelense Abraham Klein apita e o Brasil dá o pontapé inicial: Zico rola para Serginho, que retrocede para Cerezo e daí ao capitão Sócrates. A torcida se agita. 

Apesar da Seleção Brasileira, ter conquistado o coração dos espanhóis, me parece haver mais gente com camisas da Itália espalhada pelas arquibancadas.

Essa turma vibra logo aos 5 minutos, quando Conti inverte bonito o jogo da direita para a esquerda, por onde desce o lateral Cabrini. Ante a aproximação de Leandro, ele levanta a bola na área. Paolo Rossi deixa Júnior para trás e cabeceia praticamente na risca da pequena área, à queima-roupa, no canto direito baixo da meta de Waldir: 1×0.

Uma surpresa que não estava no “script”. Mas a seleção vai empatar, sabemos que vai. 
Serginho luta próximo da área com três italianos e a bola espirra para Zico, que se livra do marcador e tenta dominá-la, colocando-a muito à frente. Tanto, que ela vai parar nos pés de Serginho, já entrando na área. Mesmo canhoto, ele chuta de direita, bisonhamente para fora. O Galinho reclama, pois tinha tudo para concluir e empatar. 

Mas o Brasil continua dominando e as jogadas de ataque se sucedendo. 


Aos 12 minutos, Sócrates estende um passe longo entre dois italianos na meia-direita a Zico, que se livra com um giro surpreendente em cima de Gentile e lhe devolve a bola. O “Doutor” deixa seus marcadores para trás, invade a área pela direita e mesmo com pouco ângulo, fuzila Zoff, que cai sentado. A bola levanta cal ao cruzar a linha: 1×1. Na comemoração, Zico salta nas costas do companheiro. Vibram muito!

Enzo Bearzot insiste para que Gentile não desgrude do “Galinho”, lembrando-o daquilo que haviam combinado nos vestiários: que caberia a ele (e não à Tardelli), a missão de marcar o brasileiro em cima, exatamente como fizera no jogo anterior, com Maradona. O italiano cumpre à risca a ordem, tanto que logo ganha um cartão amarelo.

São 25 minutos: Waldir atira com as mãos, uma bola para Leandro na direita, que mata no peito e a entrega para Cerezo. Esse pensa em lançar mais à frente, porém desiste e inesperadamente, resolve virar o jogo para o meio, onde estão Júnior, Falcão e Luisinho, tendo Rossi a observá-los, de perto. Ao tentar bater de três dedos, porém, ele “espirra o taco” e a bola passa nas costas de Falcão, sendo que Luisinho já saía para o ataque. Paolo Rossi, atentíssimo, “dá o bote”, passando entre eles e arrancando para o gol. No desespero, Júnior tenta um carrinho, mas não o alcança. 

O artilheiro avança até a meia-lua e dispara, aproveitando-se de Waldir Peres estar um pouco adiantado: 2×1 para a Itália. Cerezo se descontrola e começa a chorar, talvez pressentindo o pior. 

O gol revolta os torcedores brasileiros, pela desatenção da zaga. Mas nem tudo é festa para a Itália, pois Collovati, que vinha fazendo ótima partida se contunde e é substituído por Bergomi. E o Brasil começa a pressionar, perdendo oportunidades com Sócrates (que cabeceia livre, mas em cima do goleiro Zoff), com Falcão que chuta de longe uma bola perigosa e quase no fim da primeira etapa com Zico, que recebe um passe rasteiro do “Doutor” e já na grande área, é puxado por Gentille na hora da conclusão. A força do puxão é tamanha, que abre um imenso rasgo na camisa do “Galinho”. De nada adianta mostrar ao juiz: vergonhosamente, ele não dá o penal. 

Chega o intervalo e fico imaginando como estarão os torcedores no Brasil, ansiosos pelo segundo tempo e confiantes na virada do selecionado brasileiro. 

Os times voltam e não há alterações. Apenas taticamente, pois o Brasil passa a alternar uma troca de posições em campo, com os laterais às vezes virando alas e vindo pelo meio, enquanto os meias abrem pelas laterais, escapando da ferrenha marcação.


Já a Itália continua a inverter jogadas de um lado para outro, o tempo todo. Antes, mais da direita para a esquerda. Agora, isso ocorre ao contrário. 

Logo aos dois minutos, o Brasil dá sua primeira “estocada” num chute venenoso de Falcão, que passa próximo ao gol de Zoff.

A Itália acaba tendo um pênalti não marcado, cometido por Luisinho em cima de Paolo Rossi. Seria porque Luisinho é especialista em cometê-los sem que sejam vistos (como o da estreia, diante da URSS) ou será que o juizão quis compensar aquele não marcado em cima de Zico, ainda na primeira etapa? 

Novamente é a vez do Brasil: Cerezo penetra e tenta chutar, mas Zoff é mais rápido e se antecipa, fazendo a defesa. Não é só: pouco depois, Serginho tenta cabecear e como não consegue, improvisa um toque de calcanhar, mas Zoff está atento e outra vez, intervém. Fico imaginando aqui com meus botões, como um goleiro com mais de 40 anos, que na Copa passada afundou a Itália levando quatro gols de fora da área nas duas últimas partidas, possa estar nessa forma física e técnica. Está feito vinho: quanto mais velho, melhor. E um legítimo vinho italiano!

Meus pensamentos são abruptamente interrompidos pelo contragolpe adversário: é Rossi, que recebe passe açucarado de Graziani e cara-a-cara com Waldir, desperdiça enorme oportunidade, mandando pela linha de fundo, por estar desequilibrado. 

O Brasil continua a pressionar, mesmo se expondo ao perigoso revide italiano. 

Acaba sendo recompensado aos 22 minutos: Júnior escapa para o ataque, saindo da lateral e vindo para a meia-esquerda. Já próximo da grande área, executa um passe de três dedos para Falcão que desce pela meia-direita e recebe. 


Há seis brasileiros e oito italianos acompanhando a jogada, a maioria, dentro da grande área. Cerezo passa correndo pelas suas costas, do centro para a direita, atraindo a marcação de três adversários e abrindo a zaga italiana. Falcão corta para dentro, traz a bola para o pé canhoto e já no interior da meia-lua, quase na risca da grande área, desfere um chute violento, no canto direito de Zoff. Tudo igual: 2×2. 

Ensandecido, veias saltadas na cabeça e no pescoço, gritando sem parar, Falcão corre na direção do banco de reservas, numa comemoração verdadeiramente emocionante, num gesto de puro amor e entrega à camisa que enverga e honra. Ato contínuo, o “Rei de Roma” chacoalha Toninho Cerezo – novamente chorando – para motivá-lo.

Após muita luta, o Brasil está novamente “no páreo”, com o empate. Bem que o “olheiro” brasileiro, Zezé Moreira, havia alertado para o poderio do time italiano, qualificando-o como o nosso mais perigoso adversário. Não estava enganado.

Os canarinhos continuam com mais posse de bola e poder ofensivo: num dos ataques, pegam a zaga italiana totalmente desguarnecida: Zico lança Éder, tendo Sócrates livre, pronto para receber e marcar. Entre eles, apenas Scirea, que fica protegendo sua área. Mas Éder não faz o passe para o companheiro. Ao invés disso, tenta o drible e é bloqueado. Foi a grande chance de “matar” o jogo.

Telê então coloca Paulo Isidoro no gramado, sacando Serginho. Percebe que o Brasil precisa variar os lados do campo ao atacar e fixa Sócrates como falso centroavante. Com Isidoro, de certa forma ele reequilibra o time, “desentortando” as linhas táticas, já que, por atuar sem ponta-direita fixo, a formação ficava torta para a esquerda, facilitando a marcação italiana, quase sempre pelo mesmo setor. O ponta também costuma ajudar o time, voltando para ajudar a fechar o meio-de-campo.

A equipe permanece ofensiva, mas sente as dificuldades em penetrar numa zaga tão bem postada e com o forte calor que fisicamente mina os atletas na parte final do jogo. A plateia, de 44 mil privilegiados torcedores, mal pisca os olhos.

Numa bola inofensiva alçada para o ataque, Toninho Cerezo tenta recuá-la de cabeça para Waldir, erra e termina por ceder o escanteio. Zico chama sua atenção, mas ele gesticula que “está de olho”. 


Só que o time não parece estar e mesmo com todos os seus onze homens na grande área, toma o terceiro gol, na cobrança. 

Bruno Conti levanta na área, pela direita. Oscar, Sócrates e Scirea dividem, pelo alto. Tardelli apanha a sobra, gira e bate, dentro da área, em direção à meta. No meio do caminho, Paolo Rossi desvia de Waldir Peres: 3×2 para os italianos, que vibram muito. Júnior pede impedimento, esquecendo-se de que ele mesmo dava condições ao centroavante, por estar na pequena área. 

Uma espécie de “pane mental” abala o time. Depois, o cansaço se incumbe de arrefecer as investidas brasileiras. Parece que o inacreditável vai acontecer: a Itália, verdadeiro “azarão” no “grupo da morte”, vai se classificar, eliminando Argentina e Brasil. Marini entra no lugar de Tardelli, na Seleção Italiana.  


Aos 42, Paolo Rossi trama boa jogada e dá a Antognoni, que vence Waldir Peres, marcando o quarto gol italiano, o qual, por um lapso da arbitragem é mal anulado, pois o atacante não estava impedido. Ainda nos resta uma última esperança!

E ela aparece, na falta cometida em cima de Éder, quando arrancava em direção ao gol. A infração é quase no bico da grande área, pelo lado esquerdo. Passamos dos 43 minutos do segundo tempo. É agora ou nunca! 

Quatorze jogadores na grande área, seis brasileiros, oito italianos. E lá vem a bola na área, magistralmente colocada por Éder, no último bolo de jogadores. A “menina” passa caprichosamente por todos, menos pelo último deles: Oscar, que desfere uma cabeçada violenta, para baixo. 

Zoff salta e no puro reflexo a agarra, com dificuldades, em cima da linha, junto ao pé do poste esquerdo de sua meta. É o fim, para nós! Estamos desclassificados. Nosso futebol lúdico perdeu. Entraremos para a história como a geração genial sem títulos.

Não! Inesperadamente, o bandeirinha corre para o meio-de-campo. Klein dispara em sua direção e ouve o que este tem a dizer: que a bola cruzou a linha de gol, sendo puxada em seguida por Dino Zoff, para concluir a defesa. Klein então parte para o círculo central, tendo os italianos a lhe perseguirem, reclamando. 

“-Gooooooool do Brasiiiiiiiil!!!” . É Luciano do Valle, se esgoelando na cabine de TV, vibrando com o empate brasileiro. Gritamos também, a plenos pulmões, no estádio. Comemoração indescritível! Até os italianos se rendem nesse momento e aplaudem o gol brasileiro, aparentemente aceitando a derrota e a valentia com que sua seleção caiu, não perdendo o jogo ao menos, para o favoritíssimo adversário.

Mais dois minutos de tensão em campo, porém a Seleção Brasileira não dá mais sopa para o azar e ainda perde uma última chance num escanteio magnificamente cobrado por Éder, que o veterano capitão italiano soca para longe de sua meta. 

Aos 46 minutos e 13 segundos, Zoff repõe a pelota com um chutão para o alto e Klein apita o final do jogo: 3×3 e no Brasil, as comemorações eclodem, pela tarde e noite afora. 

O susto muda um pouco a visão de Telê, quanto ao time. Ele não aceitará mais entre os atletas, falta de seriedade defensiva, nem desequilíbrio emocional em campo. Muito menos, confiança exagerada. 


“- Não ganhamos nada, ainda!”, não se cansa de repetir em entrevistas e depois, ao grupo de jogadores. Por via das dúvidas, confirma que Batista passa a ser o titular, a partir de agora, sempre no primeiro tempo, com Cerezo “talvez” entrando no segundo.

Além disso, Serginho ficará no banco, pois Paulo Isidoro será mantido no time e haverá um revezamento entre Sócrates e Zico, no comando de ataque, visando manter-se o máximo de craques, no gramado. Até Dinamite passa a ter chances de entrar. Waldir Peres e Luisinho recebem um voto de confiança; mas qualquer novo deslize e Paulo Sérgio e Edinho estarão de prontidão, para assumirem a vaga de titular. 

A partir daí, nossa seleção engrena, vencendo a Polônia de Lato (desfalcada de Boniek) e chegando à final, diante da França, que eliminou a Alemanha de Rummenigge.

É uma decisão apoteótica, a máxima expressão da pura essência do futebol bonito! De um lado, Michel Platini, Giresse, Tiganá, Rocheteau. Do outro, Zico, Sócrates, Falcão. 

Nem é preciso falar muito: o placar de 5×4 para os brasileiros – inédito na história das finais de Copas do Mundo – já é mais do que suficiente para traduzir a magnitude da finalíssima. O Brasil se torna tetracampeão mundial de futebol, tendo como palco o estádio Santiago Bernabéu, em Madrid. 

Ao receber a taça das mãos do presidente da FIFA, João Havelange, o capitão Sócrates lhe entrega uma carta assinada pelos jogadores brasileiros, pedindo o fim do regime de concentração e o apoio da entidade nessa luta. Havelange promete estudar o caso. 
No dia seguinte, os jornais trazem a cobertura do que foi aquele Mundial: para muitos, melhor até do que o de 1970, no México. E também da festa, por todo o país.

Na capa do Jornal da Tarde, a foto de um garoto chorando com a camisa brasileira, feliz pela conquista, no estádio, vira símbolo daquela geração vencedora. Por uma tremenda coincidência, eu estava próximo do menino e vi quando a foto foi colhida. Comovente!
Na volta para o Brasil, o avião que traz a delegação brasileira aterrissa em Brasília, para que os jogadores sejam homenageados pelo governo brasileiro. 

Perante milhares de torcedores que superlotam o imenso gramado diante do Palácio do Planalto e aproveitando-se da euforia do presidente, o general Figueiredo – que adora futebol e acaba de discursar – o Doutor Sócrates, tendo os jogadores ao seu lado, reivindica “Eleições Diretas Já” para o país, nos microfones, inflamando a massa. 


Surpreso e pressionado há algum tempo pela opinião pública, o presidente promete dar uma resposta em breve a todos. E de fato o faz, semanas depois, marcando eleições com voto direto, para quando terminar seu mandato e entregar o cargo.

A euforia toma conta dos brasileiros nos anos que se seguem. 

Zico, Sócrates e outros craques permanecem jogando aqui, pressentindo dias melhores. Falcão logo retorna ao futebol brasileiro, que agora anda valorizadíssimo. 

Com a eleição de Tancredo Neves, que obtém mais de 70% dos votos, o Brasil entra numa era de investimento alto em educação, saúde e profundas reformas na política, como extinção de cargos, de privilégios e um incansável combate à corrupção. 

No futebol brasileiro, os principais clubes se unem, organizando a Copa União, embrião de muitas mudanças para melhor, nos campeonatos regionais e nacionais, daí para frente.

Aposentados dos gramados, Sócrates e Zico se sucedem na presidência da CBF. Com o apoio do governo, é criada uma lei de incentivo em todo país, que assegura um campinho de futebol gramado para cada 10 mil habitantes, no mínimo, visando levar o esporte aos mais longínquos rincões dessa nação abençoada, assim como, para descobrir novos talentos. 

O Brasil passa a ser “a bola da vez” e a ter seu campeonato transmitido para todo o mundo, inclusive para a Europa e até (quem diria!) para Argentina e Uruguai.

Agora são os estrangeiros que querem copiar nosso jogo! 

O futebol-arte passa a ser reconhecido como modelo de modernidade. Futebol, de agora em diante, só para craques. 

A mídia não abandona sua postura de tratar com seriedade jornalística, o esporte das multidões. Nada de olhar futebol como mero entretenimento ou diversão, formando legiões de torcedores alienados por programas esportivos cheios de gracinhas, tolices desnecessárias e apresentadores que não entendem profundamente do riscado. Jornalismo esportivo é e sempre será coisa séria! Não à palhaçada!

Muito menos transformar a Seleção Brasileira em produto. Ou os clubes, em reféns do dinheiro das cotas televisivas, vítimas de má administração.  

Treinadores que apregoam retrancas e jogam pelo resultado, são perseguidos. 

A ordem agora é primar pela parte técnica, cada vez mais.

A parte física é apenas um complemento importante. Nada mais que isso. Quem não sabe jogar muito bem, não tem espaço. É preciso talento e criatividade, para se firmar.

Laterais podem descer quantas vezes quiserem, ao ataque. Até os dois juntos, se preferirem. Volantes entram em processo de extinção. No meio-campo, somente gênios.  Atacantes, quantos mais, melhor. 

Os pernas-de-pau são definitivamente banidos do futebol profissional. Muitos passam a disputar campeonatos amadores. 

Nada de esquemas rígidos de marcação, tampouco equipes jogando no erro do adversário. Faltas, somente como último recurso. Simular uma entrada faltosa então; vira pecado mortal para os críticos e são exemplarmente punidas.

A beleza do toque refinado, do drible desconcertante e dos gols executados através de jogadas bem feitas, passa a ser primordial e algo cada vez mais constante, nos gramados do Brasil e do mundo. 

Não tem tanta importância levarmos gols, desde que façamos mais tentos do que o adversário; é claro. 

Nunca mais, em parte alguma deste planeta, alguém pronunciará contra o tão sagrado futebol, a terrível blasfêmia:

“- Ganhando o jogo de meio à zero, tá bom demais!”.

BOLÃO DE COPA DO MUNDO

por Abilio Macedo


Na manhã do dia do jogo entre Brasil e Holanda, pela Copa do Mundo de 1974, fui chamado à sala do nosso gerente onde ele estava reunido com todos os supervisores do departamento.

Assim que entrei ele me entregou um maço de dinheiro e uma lista onde todos presentes haviam anotado seus palpites para o resultado do jogo de logo mais:

– Abilio, você vai ficar responsável pelo nosso bolão. OK?
– OK.
– Circule pelo nosso pessoal e veja quem quer entrar. OK?
– OK.
– Você já sabe como funciona. Quem acertar o placar do jogo fica com o dinheiro arrecadado. OK?
– OK.
– Se tiver mais que um acertador, basta dividir o valor entre eles. OK?
– OK.
– Alguma dúvida?
– Nenhuma.
– Tá esperando o que?
– Só ia conferir o dinheiro. 
– Se eu lhe entreguei é porque está certo. Se manda.

Com quase dois metros de altura, durão e de poucas palavras, nosso gerente metia medo em muita gente na fábrica, mas nós, seus funcionários, sabíamos que no fundo ele era um sujeito bonachão e gozador.


A notícia do bolão correu rápido pelo departamento e em pouco tempo a lista tinha mais de 60 palpites, a maioria apostando na vitória o Brasil, pouco mais de dez no empate, e apenas dois apostando na Holanda como vencedor, ambos pelo placar de um a zero. 

Faltando menos de meia hora para o início do jogo, tentávamos ajustar a imagem de um pequeno aparelho de TV branco e preto quando alguém bateu no meu ombro:

– “Querrrró  fazerrrr  o  aposta”.

Era o “Seo” Jurgis, que mesmo sem pertencer ao nosso departamento, já foi anotando o placar de dois a zero para a Holanda no bolão e despejando algumas cédulas e um punhado de moedas sobre a mesa.

“Seo” Jurgis era um senhor estrangeiro, com sotaque carregado, que apesar de excelente profissional era mais conhecido pelas frequentes reclamações sobre as coisas do nosso país, tipo:

– “No Eurrrropa não tem estes porrrrcarrrrias que fabrrricam aqui na Brrasil”.
– “Na Brrasil ninguém respeita horrrrárrrio”.
– “Brrasileirrro sabe trabalharrr, mas se non ficarrr rem cima, a serviço não sai”.

Nada que ele não tivesse até um pouco de razão, mas seus comentários só serviam para nutrir a antipatia que tinham por ele.


Nem gosto de lembrar daquele jogo. Foi muito sofrido ver a “laranja mecânica” nos dominar e ameaçar nosso gol a todo momento, com muita pancadaria pelos dois lados, para sermos derrotados e eliminados da copa.

Ficamos todos desolados, mas a revolta da rapaziada foi aumentando quando ficavam sabendo que o “Seo” Jurgis havia ganho sozinho o nosso bolão:

– Se eu soubesse que aquele “bicho d”água” ia participar eu tinha ficado de fora.
– Eu não quero nem ver a cara daquele gringo, porque se hoje ele falar alguma coisa contra o Brasil eu não respondo por mim. 
– Por que deixaram ele entrar no bolão? Ele nem é do nosso departamento.

O burburinho fez até o gerente abrir a porta da sua sala e pedir calma ao pessoal.

Logo em seguida chegou “Seo” Jurgis.  


Tenho certeza de que se ele apenas entrasse, apanhasse o dinheiro e fosse embora, nada teria acontecido, mas ele resolveu zombar da gente abrindo um enorme sorriso e pedindo uma salva de palmas para Holanda. Aquilo foi demais, principalmente porque nunca ninguém ali o tinha visto sorrir antes.

Quando a coisa ia ficar feia, nosso gerente, que sem ninguém percebesse já estava ali ao lado, deu um tremendo tapa na mesa (que quase nos matou de susto) e um show de interpretação, que tento reproduzir abaixo:

– Isso aqui não é cassino!

Todo mundo ficou surpreso e sem entender nada.

Com cara de bravo e tom de voz elevado, ele continuou:

– Quando eu assumi a gerência, a primeira coisa que eu fiz foi arrancar daquele quadro um aviso com a relação das atividades proibidas na empresa! Vocês se lembram disso?

Ninguém nunca viu esse aviso mas todo mundo respondeu que sim.

Depois de uma pausa que só fez aumentar o suspense:

– Eu fiz isso porque meu pessoal não precisa de um papel para saber que no local de trabalho é proibido consumir bebida alcoólica, realizar práticas religiosas e (dando uma ênfase maior) jogar ou fazer apostas em dinheiro!

Aí ele deu outro tapa que quase desmonta a mesa:

– Estou muito aborrecido porque uma dessas regras sagradas foi desrespeitada. 

Ninguém dava um pio e “Seo” Jurgis com olhos arregalados.

– Mas fiquem sabendo que não vou permitir que falem pela fábrica que alguém ganhou dinheiro de jogo no meu departamento. Não mesmo!

E continuou:

– Não quero saber o nome dos envolvidos, porque se eu souber todos sabem qual será a punição. 

Nova pausa.

– Eu exijo que amanhã, até o final do dia, naquele mesmo quadro de aviso, esteja afixado o recibo de algum orfanato ou instituição de caridade para o qual será doado todo o dinheiro de jogo que aqui foi arrecadado.

E antes de sair: 

– Se alguém tiver alguma dúvida ou se sentiu prejudicado, pode vir falar comigo!

Entrou na sala e bateu a porta de um jeito que estremeceu todo o prédio .

Para encerrar:

O dinheiro do bolão foi doado a uma instituição de caridade e “Seo” Jurgis depois ainda me agradeceu por não ter seu nome envolvido “no jogatina”.

E ninguém, nunca mais, tocou no assunto…

DEIXEM O NEYMAR EM PAZ

por Ricardo Dias


Ando afastado do Museu; muitas coisas acontecendo, nenhum dinheiro entrando, tendo que cuidar do bolso para os políticos não roubarem o pouco que ainda tenho. Mas é Copa, e confesso que ando indignado com nossa burrice.

Temos um dos três melhores do mundo e ele como ele apanha. Contra a Suíça foram 10 faltas, a primeira das quais deveria ter valido um cartão amarelo – e expulsão quando o cretino efetivamente tomou um. 

Nós nos revoltamos contra essa perseguição? Saímos às ruas cantando a Marselhesa querendo o sangue dos adversários ou do juiz? Mandamos tweets raivosos para a Fifa? Não. Fazemos memes sacaneando Neymar. Ele apanha, tendo se recuperado em tempo recorde de uma contusão grave (Petkovic demorou 8 meses em lesão similar), e cai. Qualquer um de nós, tomando tranco semelhante, cai. Mas ele cai 10 vezes, apanha 10 vezes, os suíços revezam para o fraquíssimo árbitro não punir, e sacaneamos ele. 

Ah, mas ele usa um cabelo horroroso, parece que derramou miojo no cocuruto! Well… Ronaldo, para tirar a atenção de sua contusão, foi fantasiado de Cascão para a final de 2002. Nos anos 60/70, Afonsinho, o libertador dos jogadores, foi criticado por usar cabelo comprido. Saldanha reclamou do cabelo do Paulo Cesar, black power, dizendo que a bola ia amortecer ali. Marinho Chagas, Dé, todos foram criticados por usar cabelão. E fica a questão: por que cabelo de jogador deveria ser tema de conversação?


Ah, mas Neymar usou uma mala de 15 mil reais; foi de helicóptero não sei pra onde. Tem iate, olha que absurdo! Há alguns anos Xuxa fez uma festa de 1001 noites para a filha, ainda neném. Foi criticadíssima pela ostentação. Um amigo, que foi à festa, comentou:

– Tem gente que se endivida para fazer uma festa bacana para os filhos e ninguém critica. A Xuxa usou o dinheiro DELA e fez a melhor festa possível, ora!

E é isso. Temos inveja. Os caras ganham fortunas, realmente incompreensíveis, mas é dinheiro privado, não está saindo de nossos bolsos. No Facebook, textões imbecis comparam o salário dele ao de professores, textos falsos dizem que ele teve 200 milhões perdoados pela receita…

Eu me imagino no lugar dele. Que professor tem que ganhar bem, que é uma vergonha a miséria que recebem, sem dúvida. Mas o que diabos o salário dele tem a ver com isso? Não vi nenhum meme comparando o salário dos professores ao do Tarcísio Meira ou do Felipe Massa, por que o Neymar? Só a inveja explica. O cara é de família pobre, não pode ter iate! E namora a Marquezine (que pegou uma sobra da inveja e foi “acusada” de ter peitos caídos!)!


Neymar é o que a gente não conseguiu ser, ele se libertou de nossos políticos, de nossas mazelas, não sofre para pagar boleto, então pau nele! E também não podemos torcer para a seleção. A gloriosa camisa amarela foi demonizada por alguns bobinhos, e não podemos torcer pois o governo nos rouba. O governo (TODO governo, não apenas esse) nos rouba 24 horas por dia, com ou sem Copa, e querem nos roubar uma das nossas poucas possíveis alegrias!

Nelson Rodrigues tinha razão: o brasileiro é um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem!

Vai, Brasil!

O VALOR DO PATRIOTISMO

por Daniel Monsanto, de Saint Germain en Laye


Começou mais uma Copa do Mundo e eu queria falar sobre o orgulho de ser Brasileiro e de torcer pela seleção canarinho. A camisa mais admirada e também mais temida!!!!

Por anos e anos, todos tivemos orgulho de torcer pela seleção e sempre escutamos as pessoas falarem “vocês só ligam para futebol, vocês têm que se preocupar com a política, com a necessidade do povo e etc….”, sendo que isso é só uma opinião de quem não curte futebol, querendo diminuir a importância do esporte para o Brasileiro e essas pessoas não percebem o mal que fazem para o orgulho nacional. Claro que é só futebol, mas o patriotismo, o nacionalismo que isso desperta nas gerações que vão vir e nas atuais, são muito importantes para autoestima da nação e do povo.

Infelizmente, eu penso que nos últimos 12 anos, ou seja, nas três últimas Copas – desde 2002, que fomos campeões do mundo – o Brasil vem perdendo esse prestígio mundial e, intimamente a isso, está ligado a “falta de crédito” com o seu povo que sempre amou e apoiou. E isso é muito mau, muito decepcionante e triste para mim, que sou amante do futebol, mas principalmente um apaixonado pelo Brasil e pelo brasileiro, porque tudo isso ajudaria o povo a se reerguer e lutar contra políticos corruptos, contra ladrões que acabaram com a nossa pátria. Querendo ou não, nossa esperança se renova, quando a nação se une, nem que seja por futebol.

Então,  estou aproveitando o início de mais um Mundial, para despertar em cada um dos brasileiros que lerem essa mensagem, que tenham orgulho em ser Brasileiro. Ontem aconteceu um triste e lamentável episódio na cidade em que moramos, Saint Germain en Laye, onde também se encontra o Centro de treinamento do PSG.

Entramos eu, minha esposa, dois filhos e meu pai em um açougue para comprar um frango e o dono do açougue virou para mim e falou assim em francês:

– Você gosta de funk?

– Claro, sou brasileiro. Na verdade além de brasileiro, sou carioca, onde o funk no Brasil surgiu.

Ele retrucou:

– Vou botar aqui uma música, e colocou no YouTube um funk americano e começou a dançar.

Eu disse para ele que aquilo era a origem do funk, o funk soul americano. E que o funk a que ele se referia era o funk carioca. Ele arrogante falou:

– Eu não preciso que você me ensine! –

E eu falei que também não precisava que ele me ensinasse, então ele falou apontando para uma de suas funcionárias, que ela era brasileira e essa funcionária falou que era de Minas Gerais. Ele, retomando o assunto, liberou novamente a música e cantou:

– 1, 2, 3, zero! – que foi uma música da Copa do Mundo de 98, que o Brasil foi vice-campeão mundial para a França e eles cantavam muito, que traduzindo do francês seria: 1, 2 , 3 a 0, ou seja, humilhando o Brasileiro.

Levei na esportiva, só que eu virei para ele e falei assim:

– Eu volto aqui no seu açougue, no fim da Copa do Mundo.

Até então eu nem estava muito empolgado com essa Copa, mas esse francês despertou a minha ira e o meu orgulho, não me contive e falei para ele: 


– Você não pode se esquecer, que nós temos 5 títulos mundiais, que vocês só tem um pequeno título ganho dentro de casa de maneira suspeita!

Inclusive o Platini revelou outro dia, que mexeram nas bolinhas do sorteio para a França enfrentar o Brasil apenas na final – então o “jeitinho brasileiro” que muito brasileiros gostam de falar pelo mundo que o brasileiro é um povo que não presta, que o mau do Brasil é o brasileiro, esses ditados racistas e preconceituosos que o brasileiro faz dele mesmo ao redor do mundo e dentro do Brasil, existe em outras nacionalidade também.

Tem gente de boa índole em tudo que é nacionalidade e tudo que é cargo no mundo inteiro – e continuei falando para ele:

– Vocês só têm (une etoile) uma pequena estrela, o Brasil tem (cinque etoiles) cinco estrelas! 

Ele ficou rindo e segui falando:

– Você tem que rir mesmo porque nós temos os melhores do mundo, nós temos: Pelé, Romário, Ronaldo, Rivaldo, Ronaldinho Gaúcho, Neymar, Gerson, Rivelino, Jairzinho, Paulo César Cajú!

Fui falando uma série de jogadores, ele foi ficando com a cara toda branca e começou a fingir que não gostava de futebol. A funcionária dele, de Minas Gerais, falou:

– Ah, ele não estava falando de futebol,


– Você está defendendo o seu patrão? Claro que entendo, mas você está defendendo em português o seu patrão, falando que ele não estava falando de futebol? Ele falou nitidamente: 1, 2, 3 a 0, você não se lembra da Copa de 98, mas eu me lembro muito bem, porque eu amo futebol!

Mas continuando, nós saímos do açougue dele e eu disse que voltava a falar com ele depois da Copa, por que nós somos os melhores do mundo.

Enfim, voltando ao início do assunto que originou esse desabafo, quero dizer que quem sabe essa Copa não desperta o patriotismo e ufanismo da nossa nação. Que nós possamos mudar esse Brasil, principalmente no voto pessoal, vamos votar em gente nova!

SUBVERTENDO A TRAGÉDIA DE 50

por Émerson Gáspari

Um homem ter mais de noventa anos é uma dádiva. Ainda mais se este ancião estiver lúcido e apto a produzir fantasias futebolísticas. Imagine então, alguém que assistiu ao vivo, a todas as Copas. Desde a primeira, quando meus pais, de boa condição financeira e em férias no Uruguai, me levaram, em 1930. Tenho noção do que isso significa: talvez eu seja o único ser humano do planeta que tenha tido este privilégio, até hoje.


Guardo todos os ingressos e especialmente as recordações do que estas cansadas retinas já viram nos Mundiais. E com autoridade de “testemunha ocular”, lhes afirmo: nem sempre os “deuses do futebol” foram justos. Daí me propor a promover “justiça divina”, usando minha fantástica memória e poder criativo, para alterar os fatos da história e recontar o futebol segundo minha lógica, numa “realidade alternativa”. Comecemos por aquela tragédia do “Maracanazzo” de 50!

Domingo aprazível de 16 de julho de 1950, na belíssima cidade do Rio de Janeiro, capital de um país com 52 milhões de habitantes, dos quais 205 mil se espremem num Maracanã abarrotado, inacabado, na finalíssima entre Brasil e Uruguai, pela IV Copa do Mundo.

Misturado aos presentes, me seguro a uma das barras de sustentação do anel superior do estádio. Cheguei ao meio-dia. Vim de bonde e prossegui a pé, entre a multidão que surgia por todos os lados e que agora vibra com a entrada das seleções em campo. O discurso do prefeito Ângelo Mendes de Morais aumenta a obrigação da vitória e eu, vascaíno e fã de Barbosa, torço pela consagração daquele que é meu maior ídolo em campo, hoje.

O Brasil de Barbosa; Augusto, Juvenal e Bigode; Bauer e Danilo Alvim; Friaça, Zizinho, Ademir de Menezes, Jair Rosa Pinto e Chico; do técnico Flávio Costa. Os uruguaios, do treinador Juan López Fontana: Máspoli; Andrade, Matias Gonzáles e Tejera; Gambetta e Obdúlio Varela; Ghiggia, Júlio Perez, Míguez, Schiaffino e Morán.

O jornalista Mário Filho – fundamental para o Maracanã acontecer – realiza esplêndida cobertura do evento na imprensa escrita e pelo rádio, os torcedores curtem Antônio Cordeiro e Jorge Curi narrando pela Rádio Nacional, Pedro Luís pela Pan-Americana, entre outros.

Nossa seleção – com seu uniforme todo branco – fez campanha exemplar até aqui: 4×0 no México, 2×2 com a Suíça, 2×0 na Iugoslávia e depois, no quadrangular final, 7×1 na Suécia e 6×1 na Espanha. Já a “Celeste Olímpica”, por obra do estranho regulamento, teve trajetória mais curta: 8×0 na Bolívia, 2×2 com a Espanha e 3×2 na Suécia, antes de chegar à final.

A grande surpresa até agora é a eliminação da seleção inglesa, que conseguiu perder para os EUA, em Belo Horizonte. Outra decepção é a bicampeã Itália (poderia até conquistar a Jules Rimet em definitivo) também eliminada precocemente, mas a base de sua seleção morreu num trágico acidente aéreo que vitimou toda a equipe do Torino, um ano antes do Mundial.

Sou supersticioso e não estou com bom pressentimento: primeiro, porque hastearam nossa bandeira de cabeça para baixo. Depois, porque pela primeira vez perdemos no “toss” e começaremos jogando do lado oposto ao habitual. Mas não há de ser nada!


Sob o apito de George Reader, árbitro inglês, às 14h55m o jogo começa: Ademir rola no círculo central para Jair, a seu lado, que atrasa para Bauer.

Olho em volta e meus pensamentos se perdem em meio aquele universo de pessoas ávidas pela vitória e o título. Já pensou se o Brasil me perde um jogo desses?

Aqueles milhares de lenços brancos girados no ar seriam usados para enxugar as lágrimas da derrota, mas não seriam suficientes para conter a tristeza pelo fracasso.

Súbito, sou despertado pelo som da massa, que vibra com o escanteio a nosso favor, logo no minuto inicial. São mais de dois milhões de cariocas torcendo em casa e nas ruas; dez por cento deles, aqui no Maraca!

O jogo é renhido: o Uruguai procura travar o meio-campo, num ferrenho bloqueio aos meias  Zizinho e Jair e ao agora centroavante e artilheiro Ademir, dificultando-lhes os espaços. O Brasil procura tomar a iniciativa sempre, mas os gringos controlam bem as investidas adversárias e são mais incisivos, no contra-ataque: em menos de 15 minutos já levaram perigo duas vezes à meta brasileira e agora, perdem outra chance, numa bomba que passa raspando, atirada por Ghiggia. Ele, que ao lado de Júlio Pérez, está promovendo um verdadeiro rebuliço pela ponta direita, contra Bigode e Juvenal. 

O Brasil é melhor, domina a cancha e chuta mais ao gol, porém, se perde nas dificuldades em penetrar a bem postada zaga, tendo à frente o “caudilho” Obdúlio Varela. Chamado de “Negro Jefe”, ele grita com os companheiros e pressiona o árbitro o tempo todo, pois sabe que a chance celeste reside em suportar o ataque brasileiro. Num dos lances, aos 28 minutos (enquanto o jogo está paralisado), desfere um tapa em Bigode, após uma falta, tentando intimidá-lo, sem que o juiz intervenha.

Mas o selecionado brasileiro não deixa de atacar e de perder chances seguidas, as últimas com Jair, Zizinho e Chico. É quando o Uruguai fustiga novamente é Míguez, de fora da área, acerta o poste esquerdo da meta de Barbosa. 

O jogo, que a torcida previa ser fácil, com vitória de goleada, vai se afigurando como o autêntico clássico sul-americano que de fato é. Uma guerra na qual os entrincheirados inimigos resistem bravamente. Quando o juiz encerra a primeira etapa, os brasileiros já atacaram dezessete vezes, contra apenas cinco, do adversário.


Há alguma apreensão, mas, sobretudo a confiança num selecionado quase todo carioca, com nada menos do que oito titulares atuando aqui. A base é do meu Vascão, o “Expresso da Vitória”, vencedor do Sul-Americano de Campeões de 1948.

Pontualmente às 16h05min; recomeça o prélio. As equipes não têm mudanças, pois as substituições são proibidas. Pessoalmente, dói o coração ver o jovem Nilton Santos preterido na escalação: ele que joga o “fino” no Botafogo. Não sei se o Ely do Amparo ali atrás também não seria uma boa. Mas tenhamos fé, o time brasileiro é valoroso e nada há de dar errado.

Passamos do primeiro minuto da etapa complementar: Máspoli recebe um recuo de Júlio Pérez e chuta para longe. Augusto cabeceia o balão na direita, onde Andrade antecipa-se à Friaça. Só que Zizinho intercepta e aciona Ademir, próximo da área. Este rola na direita, para a lépida entrada de Friaça, que invade a grande área pelo lado direito, batendo cruzado, antes que Máspoli possa sair da meta, pra fechar o ângulo: 1×0!

Explode o “formigueiro humano” no Maracanã: rojões eclodem aos montes, enquanto os gritos de “Brasil, Brasil”, se sucedem: falta pouco para colocarmos as mãos na Taça Jules Rimet. Nós, que encaramos o desafio de sediar o Mundial num período de pós-guerra complicado para o mundo. Nós, que levantamos este gigante de cimento em menos de dois anos. Nós, que somos o único país a participar das quatro Copas até aqui realizadas. Nós, que por força do regulamento, jogamos por um empate e agora estamos na frente, em pleno começo de segundo tempo! Merecemos o título!

Mas o Uruguai não pensa assim: Obdúlio grita com a equipe, pede garra, pede alma.


Alucinado, cobra que cada um, dê um pouco mais de si, na cancha. Reclama de tudo e de todos. O público não compreende e passa a vaiá-lo por isso. Só que o inimigo, acordado pelos avisos de seu capitão, vem para cima. O duelo entre Ghiggia e Bigode se intensifica. Júlio Pérez se multiplica em campo. E as chances uruguaias vão surgindo, pois o jogo é lá e cá, com os brasileiros fazendo mais faltas inclusive, até aqui.

Eles não se entregam: brigam por todas as bolas e acabam sendo recompensados aos 20 minutos: Júlio Perez passa por Ademir e entrega a Obdúlio, que abre na direita para Ghiggia. Este vence Bigode na corrida e centra para Schiaffino, já na área, se antecipar a Juvenal e chutar de primeira, no alto. O couro bate na parte superior da rede, após vencer Barbosa. Tudo igual! E muito a contragosto, o responsável pelo placar manual altera o resultado no marcador do Maracanã para 1×1.

Silêncio sepulcral no “maior do mundo”. Dá para ouvir a comemoração dos rivais, gritando, se abraçando. A multidão se cala, pressentindo o pior. O medo se instala no coração de cada brasileiro. A perplexidade contamina até aqueles que a milhares de quilômetros acompanham o drama pelas ondas do rádio.

Incrédulo, o time se segura como pode; sente o baque. Parece agora antever uma tragédia não anunciada. Pela cabeça de muitos, os erros afloram: a mudança da concentração, os discursos políticos que não permitiram aos atletas se alimentarem direito, a interminável missa de duas horas em pé imposta pelo treinador, a euforia desmedida da imprensa e da torcida, pintando um Brasil campeão antecipado.

A dramaticidade vai ganhando contornos inigualáveis: Barbosa bate um tiro de meta e Obdúlio intercepta, entregando a Míguez, que passa para Júlio Pérez. Daí para Ghiggia na ponta, que vence Bigode e centra de novo para Schiaffino, mas este cabeceia para fora. Ufa! Barbosa repõe a bola, Tejera corta de cabeça, entregando-a para Obdúlio e daí, para Júlio Pérez. Mas Danilo neutraliza, passando a Ademir que tabela com Zizinho. “Mestre Ziza” lança Chico, que dá a Jair, invadindo a tumultuada grande área. O chute sai violento, Máspoli defende, mas solta e Ademir na corrida, atinge o goleiro, enquanto na confusão, Gambetta toca para trás, quase marcando contra. Que jogo, gente!

Aquela tensão absurda no campo é transmitida para todos nós, nas arquibancadas. As expressões nos rostos extenuados dos jogadores, o esforço do árbitro para manter a disciplina em campo e o sofrimento fica escancarado na face de cada torcedor presente.


São 33 minutos. Uma raivosa disputa de bola entre Jair, Tejera, Danilo e Júlio Perez, termina com a pelota nos pés de Míguez. Ele devolve para Júlio Perez, que mesmo marcado por Jair, descola um passe em profundidade para Ghiggia, o qual começa a correr pela direita, fechando em diagonal, com Bigode na sua escolta.

Instantaneamente, três uruguaios avançam na iminência de um novo centro. Ghiggia já deixou Bigode para trás, invade a área pela direita, mas está perdendo o ângulo e prepara-se para cruzar. Nosso arqueiro dá dois passos à frente, para tentar interceptar o cruzamento, ante a súbita aproximação dos adversários, que invadem a grande área, pelo meio. Juvenal vem chegando atrasado, no lance. Minha respiração trava, o coração congela e parece vir à boca.

É agora, meu Deus!

Gigghia, surpreendentemente, atira para o gol. Pega de mau jeito na bola, que mesmo assim, desgraçadamente, toma o rumo da meta brasileira. Vai entrar! Vamos perder! Não!!!

Então, Moacir Barbosa Nascimento salta para trás feito um gato e de ponta de dedos, toca na pelota, que raspa a trave e sai pela linha de fundo.

Uuuhhh! O som das arquibancadas, ecoando por todos os lados, por si só, já diz tudo: o susto abala muita gente no estádio e talvez tenha enfartado alguns torcedores pelo Brasil afora, agarrados a um rádio, nesse instante. Foi a maior chance uruguaia.

Imagino o que teria sido se essa bola entrasse e perdêssemos a final: Barbosa seria crucificado, massacrado e não só ele: todos os negros e mulatos envolvidos no lance fatal, também.


O maldito racismo disfarçadamente dando as caras de novo e o povo escolhendo seus “bodes expiatórios”. O dia 16 de julho seria taxado de o “Dia da Derrota” e essa história, jamais esquecida, até que seus protagonistas morressem, sem terem sido perdoados pela imprensa e pela torcida, num cruel e injusto julgamento. Por tudo isso e muito mais, ainda bem que essa bola não entrou…

O susto parece acordar a equipe brasileira, que agora passa a atacar bastante, mesmo que de maneira afoita. O Uruguai centraliza seus ataques em Gigghia, que às vezes deixa Bigode em maus lençóis. E o tempo vai passando.

De súbito, informam o público oficial da partida: 173.500 pagantes. Mas sabemos que as catracas acabaram sendo liberadas bem antes do jogo e que o público real superou 200 mil pessoas. É a maior plateia de um evento esportivo em todos os tempos.

O espetáculo vai terminando. No rádio de um torcedor próximo de mim, ouço que em São Paulo, a Suécia acaba de vencer a Espanha por 3×1 e de ficar com o terceiro lugar.

Aqui, instantes finais de uma agonia que parece interminável. Aflitos, os torcedores não ousam mais comemorar antes do fim, mesmo já estando bem próximo dele.

Um gol pode mudar a história desta Copa.

São 43 minutos; Matías González bate tiro de meta. Danilo intercepta e rola para Jair, que levanta para Chico, só que Gambetta é mais esperto: a pelota vai para Júlio Perez, que a entrega à Míguez. Deste, parte um lançamento para Ghiggia. O bandeirinha Mr. Ellis marca impedimento. Apesar disso, ele toca por cobertura diante de Barbosa, com o balão indo se perder pela linha de fundo. Mais um susto: que seja o último!

O Brasil desce para o ataque e Ademir desperdiça a chance de marcar, chutando fraco e para fora, após um centro de Friaça. Os nervos à flor da pele atrapalham demais nossa seleção, apesar da vantagem do empate. 

Já os torcedores não aguentam mais aquele suplício; muitos choram, enquanto outros pedem o fim da peleja. A maioria, no entanto, aguarda em silêncio, roendo as unhas.

A imagem do Cristo Redentor, com os braços abertos sobre a cidade me vem à cabeça e rezo com todas as minhas forças, pelo título agora tão próximo. Outros me seguem, numa emocionada oração.

O Brasil ataca com Zizinho, que cai na área e os uruguaios puxam novo contragolpe. Mas três deles estão impedidos. Juvenal cobra na área, Obdúlio rebate. Ademir recupera e lança Friaça, desarmado por Gambetta. Augusto apanha a sobra e devolve à Friaça que mesmo desequilibrado, centra. Gambetta põe a escanteio.


Atenção: pode ser o último lance da batalha! São 45 minutos do tempo derradeiro; Friaça cobra o córner, Jair sobe apoiando-se faltosamente em Máspoli que é encoberto, a bola vai sobrar limpa na área para Gambetta, mas o juiz, de costas para o lance, trila seu apito e encerra o calvário: o Brasil é campeão do mundooo!

Indescritível! O Maracanã parece que vai ruir: fogos estourando por todos os lados (dentro e fora do estádio), lenços sendo agitados, pessoas pulando, chorando de emoção, gritos, aplausos, sorrisos e abraços aliviados trocados por todos nós: enfim, somos campeões mundiais!

Jules Rimet aparece no gramado e entrega a Taça do Mundo ao capitão Augusto, que a repassa aos companheiros de equipe. Barbosa a abraça ternamente e abre um sorriso largo que ilumina aquele semblante imaculadamente negro. Ele, mais do que ninguém, merece todo nosso carinho, respeito e reconhecimento. Não resisto à cena e deixo as lágrimas rolarem pelo meu rosto. A emoção toma conta de mim.

Começa a “volta olímpica” pelo gramado, os jogadores seguidos por um batalhão de fotógrafos e repórteres. Não há quem não se emocione. Os uruguaios são aplaudidos pelo povo, que reconhece a bravura dos adversários, valorizando nossa conquista.


São 17h e o céu do Rio de Janeiro vai se iluminando cada vez mais pelo foguetório interminável, prenúncio de uma noite de intensas comemorações, com direito a muito samba. Fato testemunhado pelo capitão uruguaio Obdúlio Varela, que horas depois da decisão, percorre as ruas cariocas sem ser notado e sente sua tristeza pela derrota ser suplantada pela alegria que o título causou a aquele povo tão simples e simpático.

Mal sabe ele que a 750 quilômetros dali, numa cidade chamada Bauru, horas antes, o futuro já começaria a ser traçado, quando o jogador Dondinho, ao desligar o rádio após a decisão, chora de felicidade pelo título conquistado.

Intrigado, não entendendo direito o que se passa e pensando que o pai esteja triste de verdade, seu filho Edson, de apenas nove anos (futuro Pelé) lhe faz uma promessa.


– Não fique assim, papai. Quando eu crescer, vou ser jogador de futebol e ganhar uma Copa do Mundo pro senhor!

O que se passou depois disso? Prefiro deixar por conta da imaginação de todos vocês!

 A minha, usarei para recontar a “Tragédia do Sarriá” na Copa de 82, num próximo texto.

 Até lá, amigos!