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A Pelada Como Ela É

ETERNA JUVENTUDE

por Sergio Pugliese

Em maio, esse time de pelada da foto completou 57 anos. Nesse período, revelou nomes como Wanderley Luxemburgo, Paulo César Puruca (ex-América) e Zé Mário, campeão invicto pelo Vasco, em 77. Já estaria ótimo para um time que nasceu sem obrigação de nada. Mas conte cinco da esquerda para a direita na fila de baixo. O moleque franzino, que nessa idade já encantava torcedores e assombrava adversários, é Zico. O time, Juventude de Quintino.


EM PÉ, ZÉZINHO,CHIMANGO, SÉRGIO GORDO, JAIR PEPÉ, JOÃO, TEOPHILO, JARUBA, XANDINHO, TUNICO, PEDRINHO, PAULO PIRÃO E ANTUNES. AGACHADOS, BARATA, PAULINHO, ZÉ BRACINHO, CLAUDIO, ZICO E SIDNEY.

– Esse time faz parte da minha vida, da minha história – recordou, feliz. 

E histórias não faltam. Mas quem poderia contá-las? Onde encontrar aquela imagem que todos dão como perdida? Quem saberia o nome dos jogadores que passaram por lá? As datas, as legendas das fotos? Para essas perguntas, a resposta era a mesma: “O Nando!”, “Só com o Nando!”, “O Nando deve ter!”, “Com certeza o Nando sabe!”. 

Todos os times de pelada têm um responsável pelas anotações, estatísticas e até estatuto. No Juventude é o Nando! Na verdade, essa crônica deveria ter apenas um personagem principal, o Galinho de Quintino, até Nando Coimbra ser solicitado. E ele entrou em campo disposto a mostrar serviço, apresentou um ótimo repertório de jogadas e garantiu a vaga de titular. Nando é um dos irmãos bons de bola de Zico e além de poeta, pintor, estilista (ele é quem desenha as camisas do time) e ótimo contador de histórias é o arquivo ambulante da família e, claro, do Juventude. 

– As histórias do nascimento do Juventude são especiais, mágicas, e continuam vivas em minha cabeça – disse. 

Continuam vivas porque ele é o único dos irmãos (Zico, Zezé, Antunes, Edu, Tonico e o falecido Zeca) que ainda mora numa casa arejada de Quintino, a mesma que Sandra, mulher de Zico, morou um dia. A rua é a Lucinda Barbosa. Nela o Juventude nasceu. Na casa vizinha, morava o Galinho e numa outra pertinho ainda existe a quadra de futebol de salão que transbordava em dias de jogos. Ele voltou lá com a equipe do A Pelada Como Ela É e presenciou um espaço quase abandonado. 

– Vou mandar trocar esse piso, pintar essas paredes – prometeu, enquanto tirava o lixo do caminho. 

De volta para a casa mostrou as fotos mais marcantes do vermelho e branco, todas digitalizadas, e embarcou num mar de lembranças e emoções. Lembrou-se do dia em que vários jogadores, já consagrados, estavam em sua casa comemorando um aniversário do Juventude quando chegou o cantor João Nogueira para animar a roda de churrasco e cerveja. Estavam lá, Zico, Cantarelli, Liminha, Jaime, Geraldo, Zé Mário, Tadeu, Edu, Volmir, Bráulio, Alex, Luisinho Tombo, Flecha, Paulo César Caju, Paulo César Puruca, entre outros. 

– Aí, o João Nogueira levantou-se e fez a convocação. Disse que estava tudo ótimo mas faltava uma peladinha. 

Em minutos todos estavam descalços jogando na Franco Vaz, rua de paralelepípedo, no fim da Lucinda Barbosa. 

– Foi maravilhoso! Impossível nos dias de hoje com tantos papparazzis. Juntou foi gente para assisti-los! – divertiu-se. 

Por um lado foi ruim não ter um registro desses, mas para eles essas peraltices faziam parte do dia a dia. A família estava acostumada a reunir multidões. O Juventude tinha um fã-clube enorme. Zico, muito pequeno e magrelo, fazia miséria com a bola. Quando entrava em campo junto com os grandões muitos adversários o ironizavam e após o jogo ficavam estarrecidos com suas apresentações. Telê foi vê-lo jogar incontáveis vezes. 

– O time completo era difícil perder – assume Zico. 

Nando estava animado com as histórias mas durante a entrevista seu celular tocou. Era a convocação para a pelada no Grêmio Esportivo Vital. Garantiu que estaria lá em cinco minutos. Sua mochila já estava pronta. 

– Amigo, é muita história! Depois continuamos, combinado? A peladinha é prioridade! 

E aos 72 anos se mandou pelas ruas de Quintino esbanjando juventude, uma eterna juventude.


LEMBRA?

por Sergio Pugliese


Sergio, Guará e Wilsinho. | Foto: André Teixeira

Numa conversa com amigos psicólogos comentei sobre a criação do Museu da Pelada, esse site que, humildemente, se propõe a eternizar histórias bacanas de boleiros. Nunca imaginei que a notícia desencadearia uma sessão de análise em plena mesa de bar.

– Interessante essa iniciativa! Até me animo em escrever um artigo propondo uma discussão epistemológica para o estudo do futebol como objeto científico – dissertou Paulinho Assef ou Dr. Assef para os “analisados”.

Achei o comentário denso e, não tendo cultura suficiente para debater o tema, pedi um pastel de angu. Mas Julinho Bandeira, colega de profissão de Assef, não fugiu ao debate.

– O Museu desperta os sentimentos de afetividade e paixão, como enredo para o entendimento do futebol para além do racional e pragmático.

Isso deve ter sido lindo, pensei, mas sem universitários por perto recorri ao garçom.

– Mais uma gelada!!!!

O papo se aprofundava, intenso, recheado de psicologês. Mas meu radar captou um termo que sempre adorei ouvir: memória afetiva. Não saberia explicá-lo tecnicamente. Certamente os meus amigos cabeçudos clareariam meus pensamentos, mas, mergulhei, solitário, numa sessão de regressão etílica e me lembrei do Capri, meu primeiro campinho de futebol e onde vivi, sem qualquer sombra de dúvida, alguns dos melhores dias de minha vida. Exagero? Não, certeza!!!!

– Posso elaborar esse artigo, Pugliese? – perguntou Assef, como se eu estivesse a seu lado, deitado num divã.

O Capri merecia bem mais do que um artigo. Deveria ter sido tombado pelo Patrimônio Histórico. Era a memória afetiva de um bairro! Memória afetiva, adoro falar isso!!!! Quando entrei no Capri pela primeira vez senti uma emoção muito, mas muito, mas muito maior do que em minha estreia no Maracanã para assistir Vasco x Portuguesa. O campinho ficava, na Murtinho Nobre, em Santa Teresa, nos fundos do colégio Machado de Assis, onde estudava. Não fazia ideia de sua existência até, um dia, vários garotos entrarem correndo no pátio da escola para resgatar uma bola que caíra na área da cantina. A partir daí, eu, Luís Antônio, Paulo Roberto, Carlos Gordo, Mauro, Zezinho & Cia elegemos o Capri como nossa segunda casa. Cresci ali! Na mesa, o debate prosseguia:

– Fatores chamados não-cognitivos influenciam no desempenho da memória de maneira significativa – ensinava Julinho. 

Talvez minha memória seja seletiva porque só me lembro de momentos especiais, pelo menos os vividos no Capri. Na rua do campo, moravam dois cracaços, Orlando Bomba e Edu Tostão. Ficar sentado, sob as árvores vendo jogá-los era uma dádiva. Ali, vi os caras que conquistaram o primeiro título do Aterro, em 66, Hugo Aloy e Rony, deitarem e rolarem. Quantos tênis o explosivo Rony arremessou no telhado do Machado de Assis!!!! E Porquinho, o artilheiro Duílio, o trio Roberson, Flávio e Ruy? Seu Djalma marcando o tempo e vendo o filho Márcio encher Cesar de gols. Meu irmão Bruno, o Diabo Louro, espanando, na zaga, e meus amigos da vida toda Guará, Wilsinho e os saudosos Vitinho, Adãozinho e a pontinha Mônica Villaça. Será que isso é memória afetiva? Na verdade, o Capri foi parte da memória afetiva de um bairro inteiro.

– Você lembra de seu primeiro campo, Pugli? – perguntou Assef.

Ah, como lembro, pensei!!!! Quando anunciaram que na semana seguinte o Capri seria interditado para a construção de uma praça, anexa ao Parque das Ruínas, a resenha virou uma terapia coletiva. Aquele campo tinha um valor social além da conta!!! Vi amigos chorando e, claro, desabei também. Percebi, talvez, pela primeira vez, que a relação entre o homem e a bola ia muito além da imaginação. Talvez naquela situação se encaixasse a frase atualíssima do Assef: “entendimento do futebol para além do racional e pragmático”. Deve ser isso. Só sei que ontem fui ao Parque das Ruínas para ver a exposição do parceiro Cosme Martins. Tantos anos sem ir lá, uns 35 talvez. Encontro Guará e Wilsinho!!!! Caraca, memória afetiva perde!!!! Mas é isso, memória afetiva é um armazenamento de sensações sedimentadas, que explodem, brotam, ganham vida própria quando, por exemplo, encontramos o Guará e o Wilsinho!!! E do alto do Parque das Ruínas, coração disparado, os três olhando para o que um dia foi o Capri, Guará, conservando a pureza juvenil, abre a porteira das emoções com uma pergunta objetiva, curta, no fígado da memória: “Lembra?”.   

PURO-SANGUE

por Sergio Pugliese


(Foto: Arquivo)

Da mente brilhante e inquieta de Pedro Ernesto Stilpen, o Stil, brotaram livros, canções, charges, roteiros, musicais, curtas e animações. Na passagem pela TV Globo, trabalhou com os titãs Augusto Cesar Vanucci e Roberto Talma, participou da conceituação dos programas de Chico Anysio e Jô Soares, e abarrotou a estante de prêmios e diplomas. Talento raro! Mas dois troféus sacolejam a memória do artista e o fazem revirar as gavetas em busca de mais vestígios daquela época dourada, início da década de 70: os do bicampeonato do Alazão, timaço da Rua Principado de Mônaco, em Botafogo, criado, treinado e presidido por ele durante 10 anos.

– Sempre fui perna de pau, mas para atender a um pedido da criançada da rua montei o time, criei o escudo e confeccionei as bandeiras – recordou, emocionado.

Apesar da traumática goleada na estreia, 10 x 1 para o Jardim Montevideo, do cracaço-aço-aço Antonio Papinha, em pouco tempo o Alazão tornou-se conhecido e temido nas redondezas, e até hoje é lembrado, junto do Estrela, da Rua Hans Staden, e do Matriz da Rua das Palmeiras, como os times mais famosos de Botafogo. Stil não podia imaginar essa ascensão gigante e, além do infantil, precisou montar o infanto, o juvenil, o adulto, o veterano, o time de meninas, equipes de natação, vôlei, basquete e até tiro ao alvo.

– Só faltou o golfe. Com uma sede teríamos virado clube – atestou Antonio Carlos Meninea, o Zezo, zagueiro do Alazão “contratado” pelo Estrela.

Foto | Arquivo


No reencontro entre velhos amigos, acompanhado por nossa equipe, surpresa! Stil presenteou Zezo, atualmente morando em São Paulo, com o acervo do Alazão: duas velhas bandeiras, documentos, medalhas, uniforme e dezenas de carteiras de sócios, com as fotos de craques mirins, entre eles Marco Antonio Fittipaldi, o Marquinhos, o goleiro Ricardo, Jorginho e Marcelo. Zezo prometeu montar um site, escanear fotos, digitalizar jornais, abusar das ferramentas tecnológicas para manter viva a história do clube de suas vidas. (Foto: Arquivo)

– Além das infinitas alegrias, precisei me desdobrar em mil para cuidar desse time – divertiu-se Stil.

Desde a escolha do nome, em parceria com Fernando Plata, dono de dois cavalos no Jóquei, até a organização de torneios, tudo era responsabilidade de Stil. Inúmeras vezes saiu correndo da Globo para acompanhar amistosos nos subúrbios da cidade e passou madrugadas acordado desenhando o escudo _ um cavalo cuspindo fogo _ confeccionando as bandeiras e compondo o hino: “De azul e branco, explode meu coração! Botando fogo, entra em campo o Alazão! Competição, com emoção! Com sangue e raça, leva tudo de roldão! Vamos torcer, eu e você, que o nosso time nasceu para vencer!”.

– Me empolgava mesmo, dedicação total – confirmou. 

Certa vez, exausto das tarefas profissionais, foi flagrado pela mãe, Dona Sylvia, de madrugada, lavando o uniforme da garotada. O pau cantou, mas a felicidade extrema superava o sono, afastava o estresse. Estava “no topo da vida”, como costuma dizer, e o Alazão lustrava o caminhão de responsabilidades e tarefas a cumprir, suavizava a pressão do a dia a dia. Água gelada na frigideira em brasa! Quando os moleques puro-sangue entravam em campo e atropelavam mais um pangaré, as cobranças dos diretores globais transformavam-se em poesia, a criatividade pulsava. Mas 10 anos depois, o Alazão abandonou as pistas, assim como o Estrela, do porteiro João do Dia, e o Matriz, do saudoso Agnaldo. Sobraram a saudade e o acervo para desmentirem essa aposentadoria e exibirem em fotos amareladas um Aterro lotado e os torcedores desfraldando a imponente bandeira azul e branca.


Estrela de Botafogo, no Aterro, em 1980. Da esquerda para a direita: Carlinhos, Marcelo, Jorge, Barriga, Luisinho e Seu João do Dia (técnico e dono do time). Agachados: Zezo, Paulista, Kamuzinho, Genildo, Marquinhos Açougueiro e Cabeça. (Foto: Arquivo)

 

 

HOMEM AO MAR

por Sergio Pugliese


(Foto: Reprodução)

Após nadar mil metros numa velocidade infinitamente superior aos recordes mundiais do americano Michael Phelps, Arnaldo buscou ar e apenas com os olhinhos para fora d´água conferiu se o mar estava para peixe. Sinal verde, partiu para a segunda etapa da prova: sair correndo e chegar são e salvo em casa, na Rua Inhangá, em Copacabana. Fim de semana sim e o outro também a cena era comum nos clássicos de futebol de praia entre Lá Vai Bola, Radar, Copaleme e Ouro Preto, do saudoso Raphael de Almeida Magalhães.

– Antes de aprender a apitar, aprendi a nadar – divertiu-se o árbitro Arnaldo Cezar Coelho durante jantar com a equipe do A Pelada Como Ela É. 

Nesse tempo a regra ainda não era clara e sequer havia uma Liga de Árbitros representando a categoria na praia. Arnaldo viveu a época de ouro do futebol de areia, acompanhou sua evolução e o surgimento de vários craques, como Haroldo, do Lá Vai Bola, contratado pelo Santos, de Pelé. Muitos técnicos eram porteiros, como Tião, do Dínamo, Tião, do Juventus, e Jaime Pafúncio, do Maravilha. Até o famoso árbitro Armando Marques, que usava o pseudônimo de Rui, era dono de um time, o Lagoa, de Ipanema. A rivalidade era tanta que muitos jogos não terminavam. Policiais não eram vistos e a torcida transbordava o paredão, apelido da calçada que, antes de tantos aterros, ficava acima do nível da areia. Um dia, o folclórico Matarazzo anulou gol legítimo após batida de escanteio. Terminara o jogo com a bola no ar num lance idêntico ao de Zico na Copa da Suécia, em 78. O pau comeu, mas Matarazzo, Deus sabe como, conseguiu escapar por entre as pernas dos jogadores, no melhor estilo futebol americano. De casa, ligou para os técnicos de Radar e Copaleme e deu o resultado. 

– O couro comia e era impensável uma menina namorar alguém de outra turma – recordou, enquanto apreciava o vinho italiano Sassoalloro, um de seus preferidos. 


(Foto: Reprodução)

Arnaldo cresceu vendo os árbitros fugindo e sendo xingados. Sua mãe ficava de queixo caído com as barbaridades descritas sobre ela nas súmulas. Mas ele foi aprendendo a se defender e uma das soluções era apitar próximo ao mar. Quando a chapa esquentava, mergulhava, nadava da Rua Figueiredo Magalhães até a Praça do Lido e desaparecia. Mas foi graças a esse estágio, esse laboratório infernal, que Arnaldo aprendeu a controlar os nervos, amenizar situações críticas com paciência e jogo de cintura. Foi nos buracos da areia e sol escaldante que adquiriu um preparo físico invejável e cultivou tornozelos resistentes. Quase não se contundia e voava nos gramados. Acompanhava os lances de perto e por apitar sem bandeirinhas durante muitos anos tinha excelente visão periférica. Não tem dúvida que os embates nas praias contribuíram para levá-lo a duas Copas do Mundo e duas Olimpíadas. 

– Vivi grandes momentos de minha vida na areia. Ela foi minha escola – atestou. 

Ao todo foram onze Copas do Mundo. Oito pela Rede Globo, onde é comentarista há 27 anos, levado por Armando Nogueira, duas apitando e bandeirando, 78 e 82, e uma, em 74, como carregador de malas de Carlinhos Niemeyer, criador do Canal 100. As emoções foram infinitas e talvez não tivessem sido tantas se passasse nos testes para meio campo que fez em todos os clubes cariocas. Era apenas um jogador esforçado. Foi bem melhor correr lado a lado dos maiores jogadores do mundo, vê-los por um ângulo diferente. Nunca esqueceu de sua estreia no Maracanã, em 66. Muitas emoções! Antes de falar como foi degustou mais um gole de vinho, saboreou a lembrança por alguns segundos. Como o tempo passa! A bola era laranja. De um lado Altair pelo Flu e do outro, Evaristo pelo Fla. Não era preciso falar mais nada. 

– E a final na Copa do Mundo? – quis saber Reyes de Sá Viana do Castelo, bandeirinha nas horas vagas e camisa 13 do A Pelada Como Ela É. 

A resposta não veio, só um prolongado silêncio, como se a maquininha do túnel do tempo pedisse para ficar ali, paradinha, enquadrada naquele dia. Então, nós respondemos por ele. 


(Foto: Reprodução)

Quando foi escalado para a final da Copa do Mundo, em 82, Arnaldo sentiu próximo o dia da glória. Ele era o Brasil na final! Ao entrar em campo para fazer o reconhecimento olhou para os lados e não viu o mar, seu antigo refúgio. Sorriu e emocionou-se ao lembrar-se dos tempos de menino quando assistia os jogos sentado no paredão, entre as ruas Ronald de Carvalho e Duvivier. Até que sua hora chegou. Um árbitro faltou e alguns torcedores sabendo de sua paixão pelo apito o incentivaram a substituí-lo. Nas aulas de Educação Física, do Colégio Mallet Soares, os professores Renato Brito Cunha, Juarez e Claudio já haviam percebido seu talento. Na praia, o bicho pegava, mas nesse dia Arnaldo fechou os olhos, respirou fundo e se apresentou aos capitães. Tinha 16 anos. O jogo foi bem mais complicado do que a final entre Itália e Alemanha. Nessa partida, só o alemão chato Ulrich Stielike catimbou. Na areia, o cercaram algumas vezes. A pressão foi forte, mas o moleque era duro na queda. E nos dois jogos mais importantes de sua vida, Arnaldo enfrentou os mesmos fantasmas, o medo de errar e de cometer injustiças. Mas tanto em Copacabana, carregado de sonhos, quanto no monumental estádio espanhol Santiago Bernabeu, em busca da definitiva consagração, homem e menino saíram vencedores.

 

Texto publicado originalmente na coluna A Pelada Como Ela É, do Jornal O Globo, no dia 26 de março de 2011.

GOL DE LETRAS

texto: Sergio Pugliese | edição de vídeo: Daniel Planel

De repente, o puxão de orelha. Era o quarto da semana, pelo mesmo motivo. 

– Já para casa treinar caligrafia! 


(Foto: Arquivo)

O menino não era louco e obedecia. Conhecia bem o peso da mão de Odilon, um dos quatro irmãos. Ele sempre chegava de surpresa, dava o bote e com apenas dois dedos capturava a presa. Incontáveis vezes invadiu os rachas da Rua Manoel Leitão, na Tijuca, para aplicar seu radical método de ensino. Nessa época, as orelhas de Arnaldinho cresceram alguns centímetros, mas a técnica do mano surtiu efeito. E que efeito! O fominha de bola, sem abandonar os campos, se tornou o primeiro aluno do Colégio Vera Cruz e da Faculdade de Educação, do Instituto Lafayette. Aos 15 anos, começou a escrever crônicas esportivas no Última Hora e aos 17, talento reconhecido, foi contratado pela Manchete, onde ficou 37 anos. Hoje, o intelectual Arnaldo Niskier é imortal da Academia Brasileira de Letras, presidente do Centro de Integração Empresa Escola (CIEE) e autor de 60 livros educativos. 

– Nenhum deles incentivando a prática do puxão de orelha – garantiu, às gargalhadas, durante chá na ABL com a orgulhosa equipe do A Pelada Como Ela É. 

Mas Arnaldo reconhece a importância da família em sua formação e apesar das broncas todos sempre o incentivaram a tentar a sorte no futebol. Torcedor apaixonado do América, treinou no clube como ponta-esquerda do infanto-juvenil e ganhou a vaga de titular quando Zagallo, Mariozzi e Manfredo foram para o Flamengo. No início, conseguiu conciliar a paixão com os estudos e os plantões no jornal. Lembrou da primeira matéria, em 1954: Bangu, do goleiro Princesinha, 6, Madureira 1. Também era excelente nadador e ganhou 56 medalhas, mas uma otite o afastou das piscinas. Na Manchete Esportiva, o cenário mudou. O chefe Augusto Rodrigues, irmão de Nelson Rodrigues, o liberou para três treinos, mas no quarto chiou e o jovem Arnaldo optou pelo jornalismo. Só sobraram as peladas na areia da Praia da Barra da Tijuca e os campeonatos de futebol de salão pelo Clube Municipal. 

– Nossa vida era dura e eu pagava meus estudos, precisava trabalhar – contou, enquanto dividia um bolo de aipim com coco, com Reyes de Sá Viana do Castelo, intelectual dos bares e da equipe do A Pelada Como Ela É. 


(Foto: Arquivo)

Mas a história de Arnaldo ganhou corpo e seu nome virou referência na área de Educação. Orgulha-se do currículo e dos altos cargos, mas prazer mesmo foi jogar ao lado do filho Celso Niskier, o Samarone, hoje o reitor bom de bola mais jovem do Brasil. As peladas aconteciam no Teresópolis Country Clube e também participava o goleiro Antonio Nascimento, atual editor do caderno de Esportes de O Globo. Segundo Arnaldo, o uniforme de Toninho era praticamente uma armadura, cheio de parafernálias e cobria quase toda a extensão do gol, sendo impossível penetrá-lo. Arnaldo também lembrou os campeonatos intercolegiais e elegeu o gol de cabeça feito pelo Vera Cruz como o mais lindo de sua carreira. Mas foi obrigado a ouvir uma tirada infame de Reyes de Sá. 

– O gol da vida de um intelectual só podia ser de cabeça. 

Arnaldo se fez de surdo e para o cenário das fotos escolheu a imponente Biblioteca Acadêmico Lúcio de Mendonça, no prédio anexo à ABL. Ali, virou menino, quebrou regras e falou alto. Acabara de receber uma bola de nossa equipe e estava exultante, então encarou Reyes de Sá e devolveu o trocadilho. 

– Me fotografa fazendo um gol de Letras. 

Aos 76 anos, num elegante terno, puxou a bola com o bico do sapato engraxado e arriscou algumas embaixadinhas, mas ela escapou. “Você era bom nisso”, comentou baixinho para ele mesmo, como exercitasse a memória, provocasse o talento guardado desde os 65 anos quando atuou pela última vez, em Barra do Piraí, e foi aposentado por um estiramento. Concentrado, novamente rolou a redonda no assoalho e iniciou o show. Uma, duas, três, agora sim…ela subiu e aterrissou mansa na gravata de seda. Tanta empolgação assustou Luiz Antônio de Souza, há 39 anos dirigindo e zelando pelo nobre espaço abarrotado de livros raros. De sua mesa alertou sobre o perigo de uma porta de vidro das estantes ser quebrada. Não chegou a puxar a orelha do escritor, como Odilon, mas pediu modos. Mergulhado num mar de nostalgia, Arnaldo recordou suas boladas explodindo nas janelas das casas da Rua Filgueiras Lima. Era como se o tempo não tivesse passado e ele ainda fosse o mesmo menino peralta da Tijuca. Emocionado, citou Machado de Assis: “Esta a glória que fica, eleva, honra e consola” e pela primeira vez, desde que assumiu a cadeira 18, da Academia Brasileira de Letras, há 27 anos, entendeu o verdadeiro sentido da palavra imortal.

Texto publicado originalmente na coluna A Pelada Como Ela É, do Jornal O Globo, em 2 de julho de 2011.