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“uma coisa jogada com música” – capítulo 51

29 / fevereiro / 2024

por Eduardo Lamas Neiva

A declaração do Ceguinho Torcedor de que a distensão de Pelé foi para a seleção brasileira o que a Revolução Francesa foi para Napoleão Bonaparte causou um certo burburinho, mas logo a Copa de 62 continuou sendo o tema da mesa principal do Bar Além da Imaginação.

Idiota da Objetividade: – Para se classificar, a seleção brasileira precisava ganhar da Espanha, que foi ao Chile com o húngaro Puskas e o argentino Di Stéfano, naturalizados.

Sobrenatural de Almeida: – Tapei os olhos do juiz pra ele não ver o pênalti de Nilton Santos em Collar.

Garçom: – Vi esse lance mil vezes na TV e em vídeo e ainda acho que o espanhol se jogou quando viu Nilton Santos se aproximar.

Nilton Santos se levanta em sua mesa e participa da conversa.

Nilton Santos: – Eu não podia arriscar, senti que o árbitro ia marcar a falta, então dei aqueles dois passos pra fora da área e ele caiu.

João Sem Medo: – O Nilton foi malandro, pois o árbitro viu falta e daria pênalti se percebesse que o lance tinha sido dentro da área.

Ceguinho Torcedor: – Foram os dois passos mais geniais da História do futebol!

Idiota da Objetividade: – Na cobrança da falta, Adelardo marcou de bicicleta para a Espanha, mas o juiz chileno Sergio Bustamante anulou o gol. A Espanha ficaria com 2 a 0 a seu favor e seria bem complicado para o Brasil virar. Mas a seleção brasileira teve um pênalti não marcado pelo árbitro, de Etxeberría em Amarildo, mais pro fim do jogo.

Ceguinho Torcedor: – Naquele dia fomos uma nação em pileque unânime. De pileque sem ter bebido nem água da bica. E é lindo, é gostoso, é sublime quando não há entre milhões de sujeitos, não há um sóbrio.

Todos riem.

Idiota da Objetividade: – Os espanhóis abriram o marcador aos 34 minutos do primeiro tempo, com um gol de Adelardo.

João Sem Medo: – A Espanha era formada por uma verdadeira legião estrangeira. Puskas já havia defendido o seu país, a Hungria, em 54. E ainda tinha o Di Stéfano, argentino.

Ceguinho Torcedor: – O primeiro gol do Brasil foi a obra de um possesso. Apesar da estúpida distância física, todo o Brasil era testemunha visual e auditivo de cada lance da partida. E eu vi, no momento do gol, vi Amarildo, a cara, o peito, a loucura de Amarildo.

Idiota da Objetividade: – Amarildo empatou para a seleção brasileira aos 26 minutos da etapa final e marcou o da virada aos 40.

João Sem Medo: – Foi um jogo dificílimo, como era previsto, aliás. Mas estávamos certos de que Amarildo seria uma solução feliz na triste emergência de não podermos mais contar com Pelé. E o garoto abusado do Botafogo não nos decepcionou. O que nos surpreendeu foi sua timidez inicial naquele jogo. Mas no segundo tempo foi um deus nos acuda. Parecia que a jaula tinha sido aberta naquele momento e a fera estava solta. Com que ímpeto, com que disposição, com que peito, Amarildo entrou no meio de quatro espanhóis para marcar o primeiro gol. Com que coragem enfrentou a dura defesa espanhola nos momentos mais difíceis e, apesar disso, com que paciência suportou as entradas violentas. Desmentiu assim os que diziam que sua escalação era uma expulsão em potencial, pois julgavam que se irritaria no primeiro encontrão. Mas ele não ficou no primeiro gol e soube aguardar, no lugar exato, o cruzamento de Garrincha, limitando-se a cumprimentar o goleiro com uma cabeçada digna de Heleno de Freitas, pela consciência com que foi desferida.

Ceguinho Torcedor: – No segundo gol, Mané deu uns dez salames dionisíacos. Comeu, com aquele apetite imortal, toda a defesa inimiga. E comeu o juiz, comeu o bandeirinha…

João Sem Medo: – Ô, Ceguinho, foi então uma suruba!

O público cai na gargalhada.

Ceguinho Torcedor: – É que às vezes uso palavras e termos antigos, meu amigo. Comer era driblar. Você bem sabe, João.

João Sem Medo: – Sei sim, falei de Amarildo, mas Garrincha teve tantos méritos quanto ele, acho que até mais, pois foi agressivo em toda a partida, enquanto só abriram a jaula do Amarildo no segundo tempo.

Garçom: – É só falar em Garrincha que vou logo me lembrando das várias músicas que ele ainda recebe como homenagem. Se me permitem, vou pôr aqui no nosso som, uma do flautista Márcio Menezes, instrumental, muito boa. Chama-se “De Mané pra Garrincha”.

O povo do bar curte muito a música, cumprimenta ou acena para Mané, que ao lado de Elza Soares apenas sorri. Enquanto faz os seus pedidos aos garçons, a turma do Além da Imaginação bate um papo, vai ao banheiro, dá uma esticada nas pernas… Finalizada a música, que agradou bastante a todos, João Sem Medo retoma a pelota com rapidez para concluir seu raciocínio.

João Sem Medo: – Talvez eu tenha me empolgado por Amarildo pelo fato de ser o seu jogo de estreia, enquanto que já estávamos acostumados com o Garrincha, que aliás tinha mesmo um apetite imortal. Fui técnico e diretor dele no Botafogo e o cara driblava todo mundo também fora das quatro linhas.

Mané solta uma sonora gargalhada e é acompanhado pelo público.

Garçom: – Na minha infância, a garotada falava que tinha dado um “come”  quando driblava alguém.

Ceguinho Torcedor: – Viu, o Zé Ary me entende. Mas o Mané fez tudo isso com uma saúde de passarinho. E tudo isso com alegria, com bondade, com pureza. No fim, não havia mais ninguém pra driblar, ninguém. E então Mané, que tudo via, tudo sabia, passa para Amarildo. Mas não foi um passe qualquer. Nem a cabeça de São João Batista foi tão na bandeja como aquela bola do Garrincha. E estava lá o possesso, Amarildo, o rútilo epilético. E então ele enfiou a sua cabeçada mortal. Aquilo era o Brasil!

João Sem Medo: – Garrincha fez de tudo naquela Copa. Fez até o que não estava habituado a fazer, gols de fora da área, de cabeça, de canhota…

Garçom (aos músicos e à mesa principal): – Vamos a mais uma pra homenagear o grande Mané?

Todos concordam. E Garrincha é todo sorriso.

Músico: – Zé Ary, vamos convidar ao palco, então, o Manduka. Onde você está, Manduka?

Manduka: – Opa, aqui. Vamos lá!

Manduka vai ao palco, mas antes dá um forte abraço em Garrincha, e é aplaudido.

Manduka: – Obrigado. Muito obrigado. Grande Mané, que prazer! Prazer estar aqui e ouvir tantas histórias maravilhosas. “Mané Garrincha” é o título desta música. Simbora!

https://www.youtube.com/watch?v=_eKhGYjqLMM  

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Um gol desse não se perde!

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