por Eduardo Lamas Neiva
Após a apresentação de Jackson do Pandeiro, com o “Frevo do bi”, a Copa de 62 passou a ser relembrada com detalhes e brilhantismo pelos amigos no bar Além da Imaginação.
Idiota da Objetividade: – A seleção brasileira em 1962 não deu show como em 58, mas jogou pra ganhar, que é o que interessa.
Ceguinho Torcedor: – Foi um futebol sofrido, quase feio, um duro futebol de cara amarrada. Jogávamos sim, pra vencer. Amarildo, o dostoeivskiano, enfiava-se pela área como um rútilo epilético. Ao marcar os dois gols da vitória sobre a Espanha já pendia do seu lábio uma baba elástica e bovina. Na final, quando os tchecos fizeram o primeiro gol, pensamos em 50, mas Amarildo apanhou a bola e partiu para o gol. Antes que o adversário pudesse esboçar o ferrolho, Amarildo dribla um, dois. O goleiro sai para cortar o centro. Era chegado o grande momento. E, então, o Possesso enfia uma bomba entre o goleiro e a trave. Amarildo nunca foi tão dostoeiviskiano como no segundo gol. Driblou não sei quantos e deu para Zito marcar. Após o terceiro gol, a Tchecoslováquia estrebuchou, pôs fogo nas narinas como o Dragão de São Jorge. Naquele dia, o Brasil mostrou a potencialidade criadora de um povo de napoleões.
João Sem Medo: – Que maravilha, Ceguinho!
Músico: – Depois de toda essa efusividade de nosso brilhante Ceguinho Torcedor, só tocando uma, ou melhor, duas músicas que têm o mesmo nome, “Brasil bi-campeão”, uma gravada antes e outra após a Copa de 62.
A banda que está no palco com auxílio de um coro infantil executa, então, a composição do Padre Ralfy Mendes, que originalmente havia sido gravada pelos Pequenos Cantores da Guanabara, e logo em seguida, a música de Umberto Silva e Lewis Jr., que havia sido gravada ainda em 62 pelo Coro do Clube do Guri.
https://discografiabrasileira.com.br/composicao/154828/brasil-bi-campeao
Muitos aplausos. E o papo volta à mesa.
João Sem Medo: – Pelé se machucou na segunda partida e não pôde jogar mais naquela Copa.
Músico: – Sim, na próxima música, gravada após a conquista do bi, fala do desfalque do Rei, cita todos os jogadores convocados e já se anuncia o tri.
Garçom: – Que não viria em 66, mas em 70, como todos sabem… Vamos ouvir, então, “Brasil bi-campeão”!
https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/147327/brasil-bi-campeao
Todos dançam e curtem muito como se comemorassem de novo o bicampeonato mundial. No fim, muitos aplausos. E rápido como uma flecha, o nosso copydesk pega a bola e parte pro ataque.
Idiota da Objetividade: – O técnico Aymoré Moreira levou para o Chile 14 jogadores que haviam sido campeões em 58. Trocou apenas De Sordi por Jair Marinho, na lateral-direita; Orlando por Jurandyr, na zaga; Oreco por Altair, na lateral-esquerda; Dino Sani, Moacir e Dida por Zequinha e Mengálvio no meio; Joel por Jair da Costa na ponta-direita, e Mazola por Amarildo e Coutinho no ataque.
João Sem Medo: – Apesar da experiência e de termos praticamente o mesmo time de 58, estreamos contra o fraco time do México com uma vitória de 2 a 0 que não credenciaria ninguém a ser campeão do mundo. Pelé sofreu com Vavá, que estava uma gracinha. O ataque esteve muito mal mesmo, nunca se entrosou naquele dia. Mas vencemos o primeiro jogo e o que mais interessa senão a vitória?
Idiota da Objetividade: – Os gols do Brasil foram feitos no segundo tempo, por Zagallo e Pelé.
Ceguinho Torcedor: – Amigos, qualquer brasileiro, vivo ou morto, só pensava no escrete. Até o grã-finismo se incorporou à torcida brasileira e com que ferocidade! Na tarde de Brasil x México eu fui dar uma olhada no Country. Todo mundo lá estava atracado ao radinho de pilha. Quando Zagallo enfiou o primeiro gol, vi um grã-fino tornar-se elástico, alado, acrobático e virar uma delirante cambalhota.
Risada geral no bar.
Idiota da Objetividade: – O segundo jogo foi contra a Tchecoslováquia e houve empate sem gols. Pelé se machucou aos 27 minutos de jogo e, como não era permitido fazer substituições, ele ficou em campo fazendo número apenas.
Pelé se levanta e pede a palavra.
Pelé: – Eu senti que era grave depois que eu chutei a bola. Não sei se quem esteve lá se lembra, eu bati de esquerda, a bola bateu na trave e quando quis acompanhar a jogada, eu senti que a perna bambeou. Mas eu tentei ir e aí não deu pra firmar a perna e eu caí, pois teve um desagarro muito grande no adutor. O músculo desprendeu. Ainda forcei, saí de campo pra ver se dava pra voltar, mas não deu.
João Sem Medo: – E talvez tenha agravado a sua lesão, Pelé. O Brasil ficou praticamente com um jogador a menos até o fim.
Pelé: – É, João. Nesse jogo teve um fato bonito. Tem uma hora que eu já estou machucado e estou com a bola mais ou menos na lateral, acho que foi o Masopust, não sei qual jogador da Tchecoslováquia que ele para e não dá o combate, ele espera eu fazer a jogada.
João Sem Medo: – Talvez tenha sido a primeira vez que presenciei dois times satisfeitos com um resultado, contentando-se com o empate em branco, sem que ninguém possa afirmar que o jogo tivesse sido marmelada.
Pelé concorda com a cabeça e se senta novamente, enquanto o papo continua à mesa principal.
Idiota da Objetividade: – Mas o Brasil pôs duas bolas na trave…
João Sem Medo: – A verdade é que aquele jogo teve o grande mérito de mostrar a personalidade do quadro brasileiro. Mesmo sem uma peça-chave, como Pelé, nossos jogadores nunca se perturbaram. E nisso tudo é justo que se destaque a categoria, a frieza, a inteligência, inconfundíveis do extraordinário Didi. Os tchecos também não se empolgaram com a vantagem numérica, entraram em campo para obter a classificação. Jogaram como se fosse 11 contra 11. Não fosse isso e nos teríamos estrepado de verde e amarelo. Vavá, embora lutasse muito, foi mal outra vez.
Ceguinho Torcedor: – E Amarildo não ia entrar, em hipótese nenhuma. Com suicida teimosia, o Aymoré estava disposto a deixar o Amarildo na cerca. Não percebia que o craque alvinegro é possesso e que o ataque precisava de possessos. E, súbito, a Fatalidade põe o dedo no escrete do Brasil. Pelé, o Divino, sofre a distensão mágica. Não recebeu nem um leve, imponderável toque. E caiu. Caiu como e por quê? Ninguém soube, mas eu sim: – a Fatalidade de Perez Escrich, que reabilitava e promovia suas adúlteras invocando a Fatalidade. A distensão de Pelé foi como a Revolução Francesa para Napoleão.
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Um gol desse não se perde!
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