por Cláudio Lovato Filho

Foi uma tabelinha muito rápida. O passe rasteiro e forte, mas no lugar certo, a bola um passo à frente dele, no ponto exato para pegar bem no meio dela, e ele encheu o pé. A rede estufada. A torcida enlouquecida. E agora ele, eufórico, sem conseguir acreditar no que havia acabado de fazer, recebe o abraço dos companheiros; alguns se jogam sobre ele, rindo e gritando, e a cabeça parece um redominho, um catavento na tempestade, uma hélice descontrolada, pensamentos na velocidade da luz, lembranças que se amontoam, se enroscam, disputam espaço umas com as outras. São frações de segundos que encerram uma eternidade: a fratura, a cirurgia, o tempo parado em casa, o apoio da família e dos amigos, a recuperação, a ansiedade pela volta, a volta, a superação. Sente, neste momento, uma profunda alegria por estar de volta, por estar bem, estar vivo para desfrutar de tudo isto, sem nenhuma amargura em relação ao passado, sem medo do futuro.
Então ele chora.
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Assim foi, que aos 72 anos, o treinador resolveu parar. Estava honrando um acordo com a família. O coração não estava aguentando mais (literal e metaforicamente). Tinha dado a sorte de encerrar a carreira no clube do coração, o clube que o lançou para o futebol como jogador e que o lançou para o futebol como técnico, e na cidade que tanto amava. Agora estava ali, se despedindo depois do último jogo. Caminhava na pista atlética, abanando para a torcida nas arquibancadas, sendo ovacionado. Caminhava com seu passo firme, as pernas arqueadas, uma de suas marcas registradas; caminhava e acenava, achando que estava no controle dos nervos, mas quando passou em frente à organizada que ficava atrás do gol do setor Sul, a maior organizada do clube, abriu-se uma bandeira, um bandeirão, um negócio gigantesco e muito bem feito, com o rosto dele pintado e embaixo uma frase que dizia: “Sempre contigo”.
Então, isto era inevitável, ele chorou.
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O menino está na garagem do prédio chutando a bola contra o muro. Ainda sente no rosto a dor da agressão sofrida por ter desafiado a autoridade paterna. Na verdade, apenas fez uma pergunta, mas isso foi o bastante. Agora está ali, tentando afastar o peso da mágoa com o uso da perna direita. Não foi a primeira vez que apanhou, mas desta vez sentiu algo diferente na ação da qual foi vítima. Não percebeu irritação, brabeza, impaciência, esse tipo de coisa. Percebeu raiva. Outro chute na bola, a bola contra o muro, a bola voltando rápida, o corpo desviando, a bola batendo na lixeira ao lado do elevador de serviço. E o tempo todo as lágrimas correndo pelo rosto, que ainda tem um lado mais vermelho que o outro.
É o choro que chega aos olhos depois de percorrer um canal conectado diretamente ao coração – coração que neste momento parece caber numa caixa de fósforos.
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Onze de dezembro de 1983. Estávamos reunidos ali desde o fim da tarde, embora o jogo só fosse começar à meia-noite. A “arquibancada” era a ampla sala da casa desocupada da família de um dos parceiros. (Os pais estavam no exterior, preparando a volta em definitivo para o Brasil, depois de muito tempo fora.) Éramos uns 20, no total, talvez mais, todos na faixa dos 18 anos, todos muito amigos. Alguns, em franca minoria, eram torcedores do meu arquirrival vermelho (incluindo o dono da casa), mas fazer o quê? Bom, para estes valia estar com os irmãos, valia a festa, com toda a sede e todo o gosto pela farra dos 18 anos. Havia um surdo, um tarol, um repinique, um tamborim e outros instrumentos. Um tarol quem tocava era este que vos escreve. Assim avançamos pela noite: cantando, batucando, bebendo, rindo, confraternizando. Até que chegou a hora de parar tudo, porque o jogo ia começar. E o time deste que vos escreve sagrou-se Campeão do Mundo no Japão, dois a um em cima dos alemães, na prorrogação, dois gols de um cara só um pouco mais velho que todos nós que ali estávamos, o nosso ponteiro direito, o nosso camisa 7, Renato Portaluppi.
Então, pouco tempo após o juiz inglês apitar o fim do jogo, escorado num carro estacionado em frente à casa, diante de um irmão que me entregava o velho tarol, chorei tudo o que tinha para chorar. Depois, lágrimas enxugadas nas mangas do sagrado manto azul, preto e branco, ataquei com as baquetas em plena madrugada da rua Monteiro Lobato, bairro Partenon, em Porto Alegre.
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