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EU E MEU PAI

2 / novembro / 2016

por Marcos Eduardo Neves

Marcos Eduardo Neves é jornalista de primeiro time. Entre muitos feitos escreveu a biografia do craque Heleno, que será interpretado por Rodrigo Santoro no cinema, Roberto Medina, Renato Gaúcho e, mais recentemente, Alex. Ele foi uma das principais alavancas para o projeto A Pelada Como Ela É deslanchar. Nos reunimos várias vezes, consumimos alguns litros de chope e escrevemos várias crônicas. A ideia inicial era um livro. Mas ele foi chamado para ser editor de Esportes do JB, eu deixei a história de lado um pouco e o tempo passou. Meses depois acertei uma coluna semanal com o Globo. Marcos continua sendo um grande colaborador! Abaixo ele conta uma emocionante história envolvendo amor, pelada e morte.


“Entre as principais lembranças que guardo na memória de meu pai estão algumas manhãs de domingo em que, no Moneró, Ilha do Governador, assistia a suas defesas e frangos como goleiro da pelada que rolava solta entre seus amigos. Deve ter começado aí minha propensão a usar a camisa 1 ao longo da minha carreira de atleta frustrado, mas insistente.

Em janeiro de 2000, num sábado, lembro de ter acordado com um inesperado telefonema. Era o velho perguntando se eu podia vê-lo no domingo, pois estávamos há uns três meses sem nos encontrar. Concordei, claro! “Pai, amanhã nos vemos”. Ele agradeceu com um “te amo muito, tá, filho?”. Vai entender esse sentimentalismo, essa saudade…o homem nunca foi disso! Deixei quieto, mas fiquei contente.

Eis que, no domingo, outro telefonema me despertou por volta das 6h. Pensei logo, papai encontrou algum compromisso inadiável – mulher, na certa, pois era um amante incorrigível. Mas era minha irmã, que morava com ele. Aos prantos, ela disse “papai morreu”.

Morreu nada. Foi assassinado. Na sombria madrugada, uma facada pelas costas na jugular, depois de discussão num pé sujo. Bate boca por causa de paixão. Não mulher, mas futebol. Um Botafogo x Santos, pelo Torneio Rio-São Paulo e uma indiscutível vitória de seu alvinegro por 3 a 0.

Então, como ele tinha pedido encarecidamente, fui vê-lo no domingo. Vê-lo e velá-lo. Vê-lo pela última vez. E na segunda-feira, consternado, sem chão, voltei à Ilha para enterrá-lo. 

Do cemitério retornei morto por dentro. Ao menos, meus principais amigos reuniram-se para ir à minha casa me ver, na tentativa de me injetar ânimo, me fortalecer. 

Foi uma surpresa bacana. Dois deles, porém, fizeram uma visita rápida. Era dia de pelada. Ninguém me perguntou se eu queria jogar bola, mas eu quis saber para onde iriam. Não mentiram. Educados, perguntaram se eu queria ir. Para quê? Em fração de segundos, meus olhos brilharam. Decidi honrar papai. Fui para a AABB, na Lagoa, disposto a fechar o gol. Uma defesa milagrosa, numa cabeçada à queima-roupa, dediquei, em silêncio, a ele. Nenhum dos demais peladeiros sabia meu drama pessoal. E eu não queria compaixão. Queria papai presente, a partir de então, me vendo em cada pelada, ajudando a me posicionar, me impulsionando a catar aquela pelota, perdoando minhas falhas mas me incentivando a dar a volta por cima. 

E assim foi. Não lembro se naquela noite ganhamos ou perdemos. Não o meu time. Mas, sim, eu e meu pai.”

Texto publicado originalmente na coluna “A Pelada Como Ela É” em 30 de outubro de 2010

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