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ERROS

27 / outubro / 2023

por Claudio Lovato Filho

Ele havia prometido levar o menino ao jogo. O menino só falava naquilo nos últimos dias. A camisa já estava separada, assim com o calção e os meiões.

No domingo de manhã, por volta das onze, o homem disse:

“Vou dar uma saída e já volto”.

Uma nuvem de preocupação começou a se formar na cabeça do menino.

O homem beijou a mulher, que estava na cozinha, e saiu. Ao passar pela sala, ouviu do menino:

“Você vai demorar?”

“Não, não. Já volto” – respondeu. E saiu.

Havia um histórico ruim envolvido nisso, um histórico de exagero de bebida no boteco e de esquecimento de tudo mais. Um retrospecto de erros que a fisionomia da mãe (agora parada no meio da sala) e do menino (que fingia interesse no programa da TV) não negava.

O tempo passou. Mãe e filho não trocaram uma palavra. Lá pelas tantas, o menino desligou a TV e foi para o pequeno quintal nos fundos da casa chutar a bola contra o muro.

O tempo passou mais, e a mãe já sentia o coração apertado e uma irritação crescente – irritação que era fruto de inconformidade, revolta e frustração.

O tempo passou mais e mais (ele nunca para), e o menino já havia ido para o quarto. Agora estava sentado na cama, ao lado da camisa, do calção e dos meiões.

A mãe tentou o celular do marido, sem o menino ver. Ligou. Ele não atendeu. Mandou mensagem. Ele não visualizou.

Eram quase duas quando um sentimento fatalista de derrota se abateu sobre o menino e a mãe.

“Vamos comer”, ela disse, pensando na bela porcaria que essa vida às vezes é. “Já está tarde”.

Mais uma vez o homem os havia decepcionado.

Quando ele vai parar com isso? – ela pensou, sem qualquer esperança de encontrar uma resposta que lhe desse alento.

Quando estavam sentados e já começavam a comer, ouviram o barulho (barulhão) do portão da garagem se abrindo. Então, em menos de um minuto, o homem apareceu, segurando uma sacola com várias embalagens de isopor dentro dela.

“Não iam me esperar pro almoço? Eu, hein!” – ele disse, soltando uma daquelas risadas que podiam, na mesma medida, causar raiva e desarmar espíritos.

“Ainda não está com a camisa do jogo por quê?” – ele falou para o menino, (mas) olhando para a mãe. E essa foi a senha para que o menino voasse em direção ao quarto com o coração batendo como um bumbo descontrolado e voltasse de lá com um sorriso que não estava na boca mas estava nos olhos. Vestia o uniforme completo do time e, com dificuldade, continha a vontade de pegar a mão do homem que era seu pai e arrastá-lo consigo porta afora em direção ao estádio, em direção à felicidade.

#

Ele sabe que não deveria ter reagido. Não daquela forma. Mas reagiu. E agora se arrepende. Perdeu a cabeça e mandou um companheiro de time para o hospital. Socos em pleno treino aberto à imprensa. Não sabe qual será a decisão do clube, mas sabe que não será boa para ele. Só espera que isso não dê em rescisão de contrato. Ele diz para si mesmo em pensamento, sentado sozinho na varanda do apartamento imenso: Não é para tanto! Ou é? Queria poder fazer o tempo voltar. Mas não pode. Queria e não queria. Aquele bosta mereceu cada soco que levou. Ele se pergunta: Mas e você, babaca, também merece o que vai receber? Sim? Não? Nenhuma das alternativas? Ou as duas? Você se estrepou, mano – ele diz para si mesmo, agora em voz alta, com o olhar perdido nas luzes da cidade. O celular toca. Ele confere quem está chamando. É o empresário. Ele atende. Pelo tom do “boa noite” que recebe já conclui que o estrago foi irreversível. São sempre irreversíveis. A diferença são as consequências. E, no presente caso, elas serão de lascar. Uma condenação devastadora que encontrará a punição mais severa de todas dentro de sua própria cabeça, uma punição duradoura e implacável, que se abaterá sobre ele de uma forma terrível e, sim, irreversível.

#

“E agora, faço o quê?”

“Agora? Agora é ir em frente, tentar compensar de alguma forma, se recuperar, se redimir”.

“Você acha que vai adiantar? Acha que é possível mesmo? Eu me ferrei!”

“Hoje, sim. Você se ferrou. Está ferrado. Pronto. É isso. A partir de agora é a sua recuperação”.

“Mas não tem perdão para o que eu fiz”.

“Não se trata de perdão. Se trata de dar um jeito de ir em frente da melhor forma possível”.

“Foi um erro muito grande. Inadmissível”.

“Não há o que fazer em relação a isso. Está feito”.

“A torcida nunca vai me perdoar”.

“Isso a gente não tem como saber. Agora é ir em frente”.

“Vou tentar”.

“Você sabe que a solução não está em ficar remoendo o que não pode mais ser mudado, não sabe?”

“Eu sei”.

“É sempre a próxima oportunidade. É isso o que interessa. O jogo seguinte é o mais importante de todos. E não importa se o último foi um horror ou foi uma maravilha”.

“Sim, eu sei”.

“Você sabe”.

“Eu sei”.

“Então tá”.

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