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Tonho Véio

TONHO VÉIO

por Tom Correia

As derrotas consecutivas de um carpinteiro heptacampeão


Tonho Véio

A tarde é de sábado, o tempo é de chuva. Operários buscam abrigo nos tratores estacionados à beira do campo de São Brás, limite entre o bairro da Federação e o Vale das Muriçocas, periferia de Salvador. A prefeitura está recapeando a pista da avenida Sérgio de Carvalho, que atravessa toda a comunidade, embutida numa baixada que começa na Vasco da Gama. Há mais de uma década, serviços de grande porte não eram vistos na região. Eleições municipais serão realizadas em quatro meses. Deve ser coincidência.

Sem preleção, o técnico da Portuguesa distribui as camisas laranja de verdes listras horizontais que não combinam muito com os calções e os meiões vermelhos. Cada conjunto do único uniforme está espalhado no chão, debaixo das árvores plantadas no lado oposto do campo. O adversário do dia é o Juventude B, que também se prepara num local próximo. A Lusa do Vale vem de duas derrotas seguidas, a última delas frente ao Juventude A: um humilhante 6 a 1.

Na véspera das partidas, Tonho Véio, 54, sempre fica ansioso e sonha com resultados. Dessa vez estava otimista, a profecia fora favorável. Sonhou com a vitória do time que fundou em 1998 após a dissolução do mítico Esperança, dos grandes Orlando e Milton, Luisinho e Osmar, Dinho e Everaldo. A equipe chegou ao heptacampeonato da Liga batendo um a um como se fosse uma máquina húngara de fazer gols, um papa-títulos da Vila Belmiro.

O céu se fecha e grossos pingos d’água se precipitam sobre o campo de terra batida onde os jogadores da Portuguesa se abraçam, formando um círculo. Um padre-nosso e uma ave-maria precedem um grito de guerra apoiado por aplausos. Todos aguardam pelo início de mais uma rodada da competição disputada por 14 equipes. Ninguém espera mais pelo final da temporada do que Tonho. Lá se vão dez anos desde o último troféu de campeão. Para ele não importa.

– Não bebo, não gosto de festa. Esse time é a minha alegria, o futebol é a minha ‘baixa’, é o que me deixa de coração espantado – se declara com o forte sotaque trazido de São Gonçalo dos Campos, terra natal, 108 quilômetros interior baiano adentro.


O árbitro aciona o apito. Léo, Décio e Rogério; Paulo Bau, Valdir e Cláudio; Pereira, Vado e Adriano. O time escalado pelo homem negro, grisalho, franzino e de estatura mediana é formado em sua maioria por moradores do Vale. São eletricistas, carregadores, pedreiros, vendedores de material de construção, porteiros e metalúrgicos que, durante setenta minutos, esquecem o desemprego. Os biscates são a alternativa de sobrevivência. Mesmo sem conseguir criar chances claras de gol, a Portuguesa domina as ações. O Juventude B se defende, rifando a bola, sem organizar um contra-ataque consciente.

Léo, o jovem cego do olho esquerdo, é um goleiro calado e ‘semi-ótico’. Veste-se quase todo de preto, involuntariamente buscando inspiração no lendário Aranha Negra. Aos 22 minutos, numa saída equivocada do zagueiro Décio, Jairo rouba a bola e toca para Isaías marcar Juventude 1 a 0. Tonho Véio agita-se na beira do campo. O semblante acusa o golpe. Rugas bem marcadas aparecem na testa. Sua voz rouca é descompensada, desprovida da modulação ideal: de perto é alta demais; a meia distância, quase inaudível. Seus trajes de diretor técnico são a representação espontânea de um Luxemburgo ao contrário: camisa de empresa de ônibus para a Operação Carnaval 2007, calça jeans de barra dobrada e sandálias havaianas verde-pálido. 

Ele acende o primeiro Hollywood de uma série de cinco. A partida é renhida. Não há poesia ou lirismo, apenas prosa endurecida. Botinadas concretas produzem um som rascante do atrito de canela contra canela. Raça e força de homens rudes suplantam os escassos instantes de técnica, quase todos saindo dos pés de Pereira, o camisa 10 da Portuguesa. Ele distribui a bola utilizando um bom repertório de dribles, lançamentos e passes precisos. Seu único pecado é não finalizar as jogadas que inicia. É o intocável do time. Não recebe reprimenda ou orientação por parte do comandante.

Tonho tem 30 anos de experiência como carpinteiro, ofício aprendido na época em que trabalhou como servente ao chegar à capital baiana, em 1974.

– Trabalho ‘fichado’ em obra, mas agora estou desempregado aí porque as empresas estão chiando por causa desse negócio de idade! – justifica-se.

A faixa etária dos seus jogadores situa-se entre os 23 e os 42 anos; a escolaridade é baixa, poucos concluíram o ensino médio. Dentre todos, só o dono do time conheceu os brejos, as hortas e a lama que invadia as primeiras casas do Vale das Muriçocas, construídas no final dos anos 70 à base de mutirões. Conheceu também as valas de esgoto a céu aberto que atraíam quantidade absurda de insetos, o que deu origem ao nome do lugar.


Falta a favor do adversário. “Excelença, vamo olhá diretcho!”, Tonho contesta, num dos poucos momentos em que tenta intervir. Acompanhando os lances de perto, o árbitro criterioso até seria discreto se não fosse pelo moicano, o brinco e as tatuagens. Vagas orientações táticas são recebidas com indiferença. A voz rouca e débil do líder parece não chegar aos ouvidos dos dez comandados, que lhe pediram para não xingar durante os jogos. O cessar-fogo do boca-suja começara há duas rodadas, há duas derrotas.

O time ressente-se do primeiro gol e cede espaço ao Juventude, que cresce. Aos 28, numa jogada despretensiosa, Jairo domina na entrada da área e coloca de chapa, no canto. Léo, caladão, aceita. 2 a 0. Tonho não sabe quanto tempo ainda resta do primeiro tempo: ninguém da equipe trouxe relógio. Ele passa a mão no rosto, enfia o dedo no nariz, no ouvido. Acende um novo cigarro e abre um papel amarrotado que envolve as carteirinhas dos jogadores. Escolhe uma delas e dirige-se à mesa da comissão, preparando mudanças.

Tonho Véio não possui religião e nem precisa dela para falar diretamente com o seu Deus. Na ‘Muriçoca’, as opções para quem busca consolo espiritual são variadas. Os templos católicos, protestantes e afro religiosos convivem lado a lado abocanhando, cada um, de acordo com seus ritos, a fatia de fiéis provedores. Na barraquinha do Pai Helinho, localizada no trecho comercial mais ativo da Sérgio de Carvalho, folhas de descarrego são vendidas aos que necessitam recarregar as energias, mudar o rumo das coisas que estão dando errado na vida. No Terreiro de Dona Boneca, trabalhos podem ser encomendados para que caminhos sejam abertos à prosperidade. 

Ele não apela para macumba. Quer vencer na bola, de preferência jogando bonito, como na época em que regia o Esperança. O padrão amarelo e preto que aniquilava os rivais como se fosse o Ypiranga dos anos 20, o Peñarol três vezes campeão do mundo. No intervalo, o técnico-carpinteiro faz três alterações de uma só vez. Alguns questionam, mas respeitam a decisão. Ele queima mais um Hollywood ao mesmo tempo em que afirma não entender a atuação do time. A falha de Décio ocasiona sua substituição.

– É o melhor zagueiro que nóis tem, mas vou colocá outro. Testá logo aquela miséra ali… se não prestá, não vem mais…

A temporada 2008 foi aberta há dois meses*. Até dezembro, quando o novo campeão do Vale será conhecido, grande quantidade de barro ainda deverá ser extraída das chuteiras utilizadas no campo de São Brás. Cada turno é dividido em dois grupos de sete equipes, das quais as quatro primeiras colocadas se classificam para as fases seguintes até a decisão em jogo único. A Portuguesa não avançaria caso o campeonato fosse encerrado após o 3 a 1. Ao invés de estudar estratégias ou posturas táticas que revertam o panorama do time na competição, o Véio Tonho prefere acreditar no “Imponderável de Almeida” rodrigueano.

– Quando eu xingo, meu time ganha… vou voltar a xingá de novo e eles vão ganhá… – sentencia, enquanto se despede com algumas ferramentas na mão, pronto para assentar a milionésima fechadura, a milionésima porta.


Jogadores da Portuguesa do Vale posam para foto antes da partida

*texto publicado originalmente no blog Caverna do Escriba em 2008.