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Santa Catarina

AEROPORTO FECHADO

por Claudio Lovato


Hoje eu tenho 50, cabelos grisalhos e uma coluna escangalhada, mas eu me lembro perfeitamente daquele dia quando eu ainda não havia feito 12 anos e o aeroporto fechou.

Meu pai e eu estávamos numa conexão, voltando para casa depois de uma viagem a trabalho que ele teve de fazer. Eu costumava acompanhar meu pai nas viagens dele.

O aniversário da minha mãe era no dia seguinte, meu pai carregava a pasta de trabalho e uma sacola de loja com o presente dela. O sistema de alto-falante informava que o aeroporto estava fechado devido ao mau tempo. Dizer “mau tempo” era um eufemismo, eu concluí depois, muito depois, porque caía uma tremenda chuva e havia ventos de furacão.

A sala de embarque estava lotada. Eu e o velho havíamos conseguido encontrar dois assentos vagos num canto e ficamos ali, na expectativa de que o aeroporto reabrisse.

De repente, meu pai me cutucou com o cotovelo.

– Você viu quem está aí?

Fiquei olhando para ele com cara de ponto de interrogação.

– Olha lá! – ele disse, apontando com o queixo.

Então eu vi.

Era o time da nossa cidade. O nosso time. Fiquei de boca aberta, meu pai riu do meu espanto. Naquela época, eu só pensava em futebol.

Meu pai começou a identificar os jogadores:

– Aquele lá é o Luiz Carlos, o Beto, ao lado dele é o Ney, perto deles é o Flávio…

Eu tentava acompanhar com os olhos as informações que meu pai me dava. Ele também era louco por futebol. 

– Olha lá o Hélio Goulart, o nosso técnico. Grande treinador!

Algumas pessoas de repente começaram a se aproximar dos jogadores para pedir autógrafos e conversar. Usavam guardanapos, contracapas de revistas e bordas de páginas de jornal para recolher as assinaturas.

– Quer ir lá? – meu pai perguntou, e, sem esperar pela resposta, se levantou e me pegou pelo braço.

Mais alguns instantes e eu me vi na frente do João Sérgio, o nosso goleiro. Meu pai tinha me dado uma caneta e um bloco de anotações. Ao lado do João Sérgio estava o Chico, nosso ponta-esquerda, e na frente dele estava o Adilson, e então eu já havia conseguido três autógrafos. E depois consegui os do Vicente, do Benetti, do Jairo Müller… Enchi várias páginas.

Ainda se ouviam risadas e reinava um clima de confraternização quando começou um murmúrio entusiasmado num ponto um pouquinho mais afastado de onde nós estávamos, eu fui conferir e então vi um menino de sete ou oito anos batendo bola (uma bola de futebol de plástico, gomos pretos e brancos) com o Vinícius e o Domingues, e foi então que outro menino e depois outro foram entrando naquela roda improvisada, e outros jogadores se aproximaram e o círculo foi aumentando e meu pai me deu um empurrãozinho nas costas e dali a alguns segundos a bola veio para mim e mandei a bola em direção ao Lino e ele fez várias embaixadas e passou para um garoto ruivo.

Ficamos ali muito tempo, vendo as demonstrações de habilidade dos nossos heróis (o que eles fizeram com aquela bola!!!), ouvindo as brincadeiras deles uns com os outros e os elogios que eles nos dirigiam (e que nós levávamos a sério). E na terceira ou quarta vez em que toquei na bola fiz algumas embaixadas e passei a bola para o Juarez, nosso centroavante, nosso grande goleador, que matou no peito e mandou de cabeça para o Miro, e depois disso ele, Juarez, me olhou, balançou a cabeça para cima e para baixo e fez sinal de positivo com os dois polegares, querendo me dizer que aprovava o que eu tinha feito… E ali, naquele exato momento, achei que nunca haveria nada mais importante para mim que o futebol.

Foi então que o sistema de alto-falantes informou que o aeroporto não estava mais fechado e que as chamadas dos passageiros seriam reiniciadas imediatamente. Tinha parado de chover e ventar. Seguimos nossa viagem de volta para casa. Nós estávamos regressando, e o nosso time, indo para um jogo que seria realizado no fim de semana.

Algum tempo depois, deitado no meu quarto, após ter contado a uns amigos dos meus pais o que havia acontecido naquele dia no aeroporto, ouvi meu pai dizer a eles que nunca havia me visto tão feliz, que eu “não cabia em mim”.

Meu velho, sempre me incentivando, sempre vibrando comigo, sempre me dando aquele empurrãozinho.

Hoje, apesar da minha idade, volta e meia fico querendo que o velho, de alguma forma, me diga o que devo fazer, fico esperando aquele toque firme e carinhoso no meu ombro, aquele empurrãozinho de que sinto tanta falta desde que ele se foi, um ano depois daquela viagem maravilhosa em que encontramos nosso time no aeroporto fechado, a última viagem que fizemos juntos, eu e meu velho. 

CALÇADÃO

texto: Claudio Lovato | foto: Bruno Veiga


Os pés de tornozelos inchados, mal acomodados nas sandálias de couro, procuram um ponto estável nas pedras portuguesas. E os olhos na areia.

– O garoto com a 8 é bom de bola – ele diz para si mesmo, pensamento em voz baixa, diluída no vento que vem do mar.

Um homem mais novo se aproxima e o cumprimenta de um jeito muito econômico, meio receoso, sem dúvida reverente.

– Fala, seu Maneco!

O velho retribui com um cumprimento ainda mais escasso, sem tirar os olhos da areia. A mão trêmula segura um copo de cerveja trazido do quiosque. Os pés doloridos buscam a compreensão das pedras pretas e brancas, e principalmente dos buracos de praxe entre elas.

– Mas ainda é nervoso! Com o tempo vai ganhar sangue frio – o velho diz.

O garoto com a camisa 8 passa perto deles. Cospe na areia, faz um movimento rápido com o pé esquerdo para cobrir o cuspe e põe as mãos na cintura. Agora está abandonado, esquecido, distante de onde as coisas se desenrolam. Levanta o braço, pede a bola, mas ela não vem.

E o velho diz:

– Ansioso que só ele.

O copo de cerveja na pontinha do banco de cimento, a mão no bolso da camisa social de mangas curtas, o maço na mão, depois o isqueiro de plástico, outro cigarro aceso.

O garoto da 8 recebe a bola, perto da calçada. Dá pinta de que vai cruzar, mas resolve que não. Vai com ela em direção ao gol, como se houvesse ouvido uma ordem superior, muito acima de sua capacidade de dizer não, e então chuta cruzado, com toda a força e toda a fúria que consegue reunir naquele momento crucial, mas o que sai é um arremedo de chute, um engodo, uma piada, e ele custa a acreditar no fiasco que fez, e os companheiros reclamam, e o velho traga o cigarro e solta a fumaça e diz para si mesmo (e talvez para o companheiro ao lado):

– Era isso mesmo.

O velho, a quem todos chamam respeitosamente de seu Maneco, agora dá as costas para o jogo e põe-se em movimento, em seu passo de romaria.

O amigo o observa ir embora e depois vai se juntar a outros quatro que estão sentados ali perto, em cadeiras de plástico.

– Quando será que eles vão voltar a se falar? – um deles pergunta.

E o que estava com o velho responde:

– Tem mágoa demais nisso aí.

O garoto de camisa 8 se volta para o calçadão, faz cara de quem olhou para lá só por acaso, põe a mão na parte de trás da coxa esquerda (um cacoete), levanta o braço pedindo a bola e sai trotando rumo àquela região da areia onde nada se decide. 

DE VOLTA

Por Cláudio Lovato Filho, de Santa Catarina

Ele estava fora havia sete anos, por força de uma transferência para o exterior determinada pela empresa de bebidas na qual ingressara como trainee. E exterior longínquo: primeiro o Vietnã, depois a Tailândia. Nas vindas ao Brasil, de férias, as viagens com a família e as visitas aos parentes sempre lhe tomavam todo o tempo. Era a primeira vez, em sete anos, que ele voltava ao campo das peladas de outrora para rever os camaradas de bola, seus companheiros de momentos pra lá de prazerosos e, com impressionante frequência, antologicamente hilários. 

Ele chegou acompanhado de Gilson Anarquista, seu antigo vizinho de prédio e responsável por sua inserção no grupo. Chegou devagarinho, mãos no bolso da bermuda. Gilson, que caminhava, rindo, às costas dele, não havia avisado o pessoal. Era uma visita surpresa.

Dalvo Marreta foi o primeiro a avistá-lo. Soltou um “não acredito!” e, no mesmo instante, Beto Cegonha já estava trotando em direção ao recém-chegado para saudá-lo com sua proverbial efusividade.


Autor do texto, Cláudio Lovato mexe na máquina Olivetti Studio 46, presente do pai

Autor do texto, Cláudio Lovato mexe na máquina Olivetti Studio 46, presente do pai

Estavam todos lá: Toni Paraquedista, Jorge Marechal, Márcio Mandrake, Juarez Viking, Fernandão Ruim de Curva, Albertinho Cara de Bebê, Cleber Verminoso e todos os outros. Eles o receberam como se ele tivesse regressado de uma guerra longa e quase perdida. Relembraram, riram, riram mais, e até jogaram bola. Ele usou as chuteiras emprestadas por Tonho Ostra, que calçava seu número e que disse que não iria jogar porque a hérnia de disco estava “perigando começar a querer incomodar, uns ‘ameaço’”. Quando alguém disse, “Pô, e logo hoje não vai ter nenhuma carninha pra gente botar no fogo!”, Gilson saiu-se com esta: “E vocês acham que o Anarquista aqui ia deixar faltar carne numa noite assim?” Depois foi até o carro e voltou com o isopor a tiracolo.

Lá pelas tantas, depois de ter batido a bolinha (não conseguiu dar sequência às jogadas, errou gol feito, cansou, riu, foi motivo de riso) e antes do churrasquinho, ele pensou: “Como eu gosto disso aqui!”, e sentiu a saudade daquele velho e pequeno prazer – a pelada com os amigos – bater sem dó nem piedade no peito.

Foram embora quando já era quase meia-noite, depois de o velho Lopes, zelador do pequeno conjunto formado pelo campo e por duas quadras, dar o ultimato, bem ao seu estilo polido e diplomático: “Chega, seus malucos! Vamos meter o pé!”

Ele foi embora sentindo-se leve como havia muito tempo não conseguia se sentir. Achou que, naquela noite, tinha rejuvenescido uns 15 anos. Abraçou um por um dos companheiros, prometeu nunca mais ficar tanto tempo sem aparecer e despareceu rua abaixo e noite adentro, ao lado de Gilson.

Foi o próprio Anarquista quem trouxe a notícia, um mês e meio depois daquela visita. Sim, o amigo estava voltando ao Brasil. Sim, sim, para a cidade deles. “Ele disse para o chefe que queria voltar”, relatou Gilson. E prosseguiu, com detalhes: “O chefe disse: ‘Rapaz, você sabe que, se voltar, vai ganhar menos. E também não posso lhe dizer que a carreira na empresa vai ser tão bonita quanto poderia ser’. E ele disse para o chefe: ‘Tudo bem’”.  Anjo Gabriel, perplexo,  quis a confirmação: “Ele disse ‘tudo bem’? Assim mesmo?” Tadeu Badulaque observou, com toda a autoridade que seus conhecimentos de geografia lhe conferiam: “Morar na Oceania não é fácil, não, rapaziada!” Moraizinho Sem Pescoço comentou: “A família não devia estar aguentando mais essa história de morar no Sudeste Asiático”, e aproveitou para dirigir a Tadeu um sorrisinho irônico.

Exatos 37 dias depois desse comunicado ao grupo, ele reapareceu para jogar. Estava de volta ao país, à cidade que amava, à pelada sagrada de todas as segundas-feiras.  Quando um dos amigos lhe perguntou se realmente achava que tinha tomado decisão certa, ele respondeu: “Uma vez ouvi um cara dizer que felicidade é se sentir completamente vivo. Eu estou feliz, amigo”.