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Redentora

A REDENTORA

por Zé Roberto Padilha


(Foto: Reprodução)

Está provado: não foi a Princesa Isabel a verdadeira redentora. A História, sempre implacável nos rastros que deixa pelas cavernas, nos escritos e nos fósseis, agora confirma: ela assinou contrariada a abolição porque nada mais justificava a existência de uma monarquia isolada em meio a tantas republicas pela América. E manter a escravidão em meio aos ventos de liberdade, fraternidade e igualdade que dominavam o mundo. Com a contratação de Vinícius Junior pelo mais rico clube de futebol do mundo, realizando de jatinho, na primeira classe, a viagem de volta que seus ancestrais fizeram em navios negreiros, está mais que provado: a redentora, quem libertou mesmo a escravidão no Brasil, foi uma bola de futebol.

Foi a Inglaterra que impôs ao Brasil o fim do tráfico negreiro, em 1807, e como D. Pedro I não cumpriu o acordo, em 1845 o Parlamento inglês promulgou uma lei, A Bill Aberdeen, que lhes conferia o direito de busca e apreensão de embarcações suspeitas de transportar africanos escravizados por aqui. Apesar deste esforço, pouca coisa adiantou. A escravidão se enraizou de tal forma no Brasil que costumes e palavras ficaram por elas marcados. Se a casa-grande delimitava a fronteira entre a área social e a de serviços, a mesma arquitetura simbólica permaneceria presente nas casas e edifícios onde elevador de serviço não é só para carga, mas também para os empregados que guardam a marca do passado africano na cor. Como ultimo recurso, os ingleses enviaram para cá um emissário, Charles Miller, e um instrumento de liberdade na bagagem que nem o mais racista dos fiscais alfandegários percebeu: uma bola de futebol.


Um dos primeiros times do Fluminense

Como tudo vindo da Europa, logo a elite se apossou daquele instrumento. Só os brancos a tocavam nos clubes sociais, como o Fluminense FC, em gramados bem cuidados, bolas de couro, calções de brim e meias grossas de algodão. Se divertiram e propagaram o novo esporte, mas não era esta a missão daquela redentora. Para realizar a libertação definitiva foi preciso que ela rolasse nas periferias, nos campos de terra batida para o deleite, como único presente, do pobre menino descalço e sem camisa. E foi ali, num duelo de destreza e habilidade, onde ela quicou feliz em lugares inusitados e os meninos ampliavam os recursos para entender seus rumos, que nasceram os gênios da nação. Um rei, Pelé, um príncipe, Ivair, e tantos outros que mudaram a vida das suas proles. Sem exceção, no primeiro contrato, compraram uma casa para mãe. E seguiram pelos gramados a encantar o mundo.


Boa viagem, Vinícius. Quando seu jatinho rumo a Madrid sobrevoar o continente africano, de onde retiramos o melhor da nossa mestiçagem, dê um aceno para o seu berço. E agradeça sempre aquela esfera sintética, que já foi de pano, couro, por ter assinado, com a tinta da dignidade, com o papel da igualdade, a verdadeira abolição da nossa escravatura.