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Quarentinha

SANTIFICADO SEJA O GOL, E VIVA QUARENTINHA

por André Felipe de Lima


Seria injustiça, ou mesmo uma bobagem inominável, dizermos que um goleiro, ou mesmo um zagueiro, um meio de campo ou um ponta são menos ídolos que um centroavante. Não se mede talento e afeto clublísticos pela lógica que tanto arrefece paixões. Desde que o mundo é mundo a lógica tenta frear a arte e a libido. Freud explica. Outros tentam também. Mas há algo que não se questiona. Nenhum proporciona mais alegrias ao torcedor senão o centroavante artilheiro. Ou será que os lógicos e chatos de plantão dirão que o gol é apenas um detalhe? Não, amigos, o gol é a alegria máxima do futebol. Sem blefe, é dele que nascemos todos. Daquele grito único proferido por milhares de bocas simultaneamente, tornando-nos irmandade indissolúvel. Viemos ao mundo várias vezes no momento do gol. A sensação é de nascimento. O artilheiro nos torna um Prometeu acorrentado às avessas ao marcar seus gols a todo instante. Amarra-nos deliciosamente na pedra que se chama felicidade, e que venha a ave de rapina repetidas vezes a nos devorar o fígado.  Somos inexpugnáveis. Não estamos nem aí para dores do corpo ou da alma quando se tem o gol para nos limpar a vida. Pelo menos, naquele dia em que o nosso amado centroavante nos acarinhou, sentimo-nos vivos, e renascidos graças aos gols dele. Ser torcedor é assim, um eterno dependente do gol. Venham vitórias e taças, mas é aquele gol do artilheiro que jamais nos sai da memória. Hoje, dia 15 de setembro, deveria se chamar “Dia do Quarentinha”, quando todo botafoguense deveria rezar, sem contrição, sem pesar, sem temor, pois o santificado Quarentinha nunca os deixou à margem da alegria do gol. Nenhum outro ídolo alvinegro, nem mesmo Heleno, Garrincha ou Nilton Santos, proporcionou tantas e repetidas vezes a alegria do gol como Quarentinha. Foram mais de 400 momentos de puro êxtase dionisíaco.

O ARTILHEIRO QUE NÃO SORRIA

por Rafael Casé


“Os dois tinham a mesma idade e origens bem semelhantes. Embora tenham nascido em locais tão distantes, Belém (PA) e Pau Grande (RJ), vinham de famílias pobres e viveram muitas dificuldades na infância. Eram dois sujeitos simples e pacatos, e ambos tinham uma mesma paixão, a bola… Dona Olga, viúva de Quarentinha, adotou o “cunhado”, de quem gostava muito e era também uma grande admiradora.

– Pra mim o maior jogador do mundo foi Garrincha. Era um anjo. Ele e Quarentinha eram como irmãos. Na conquista do primeiro título mundial, de 58, Garrincha quando chegou foi comemorar conosco lá no apartamento da Álvaro Ramos. Quando viemos morar aqui na Ilha, Garrincha vivia aqui em casa. Ele vinha no fogão, mexia nas minhas panelas, se servia ali mesmo, era de casa. Nós tínhamos limoeiros no terreno, Garrincha ia lá atrás, pegava a fruta no pé e fazia a batida dele. Quarentinha ainda falava: “Não sei como você consegue beber uma coisa dessa”. Garrincha, nessa época, só bebia batida mesmo. Depois daquela história da morte do filho dele é que passou a beber conhaque. Já Quarentinha só bebia cerveja, nada mais.

Jorge, filho de Quarentinha, apesar de pequeno, na época, lembra que a garrafa de Garrincha tinha lugar reservado no bar da casa.

– A garrafa de Praianinha (cachaça famosa naqueles tempos) ficava no bar que tinha lá na sala. Era um bar que tinha pés de palito e uma decoração japonesa, ou chinesa, sei lá… A garrafa era só pra ele.

A filha de Quarentinha, Maria Alice, acha graça ao lembrar da maneira inusitada com que Garrincha chamava os filhos do amigo.

– Ele só chamava a gente de 39. Tinha o Quarenta, meu pai, e nós todos éramos 39. Eu, por exemplo, ele só me chamava de “Gringa 39”.


Mané estava sempre por lá. Ia à casa de Quarentinha para fugir da dieta calórica e alcoólica que lhe era imposta por Elza Soares. Ele e Quarentinha saíam juntos e iam até um botequim próximo para beber algo e comer uns petiscos… Nessas idas e vindas entre a Ilha e os treinos, uma vez Quarentinha, Garrincha e outros craques quase tiveram uma aposentadoria forçada, no cemitério… Os campeões da Copa de 58 haviam ganho de presente um Renault Dauphine, e até mesmo o roupeiro e massagista Assis, do Vasco, foi agraciado. Só que, como ele não sabia dirigir, vendeu o Dauphine para Sabará, só que este também não tinha carteira de motorista. Coube a Escurinho, ídolo do Fluminense, guiar para a turma. Escurinho deixava primeiro Sabará no Vasco; depois, Quarentinha e Garrincha no Botafogo e seguia com Clóvis para as Laranjeiras. Na volta pra casa fazia o caminho inverso.

Garrincha vivia enchendo o saco de Sabará, dizendo que o carro era dele e ele é que tinha que dirigir. Depois de tanto ouvir aquela cantilena, um dia o meio-campo vascaíno decidiu tomar coragem. Garrincha, com ares de vitorioso, sorriu.

Só que entre decidir dirigir e dirigir bem, vai uma grande diferença. Era uma barbeiragem atrás da outra. Todos estavam desesperados, menos Garrincha, que dava a maior força para o “piloto” Sabará. Em São Cristóvão, o motorista novato entrou numa rua, onde uma enorme carreta estava atravessada na pista. Nervoso, acelerou ao invés de frear e todos só não morreram porque o carro que era baixinho passou por baixo da carreta, quase ficando sem o teto.

Um guarda, que viu a cena, ligou a sirene de sua moto e foi atrás. Assustado por não ter habilitação, Sabará continuava em alta velocidade. Garrincha, que não parava de rir sugeriu que Quarentinha pusesse a cabeça para fora do carro para o guarda reconhecê-lo.

Quando Sabará conseguiu parar, o guarda se aproximou de arma em punho e mandou que todos descessem. Garrincha tomou a frente, pediu desculpas ao policial e disse que só estavam correndo porque estavam atrasados para o treino. Para surpresa geral, o guarda liberou o grupo, só que desta vez com Escurinho ao volante. Já, Garrincha foi na garupa da moto da polícia, para que chegasse são e salvo, e a tempo, no treino do Botafogo.”

POUCOS PERCEBIAM, MAS QUARENTINHA SORRIA

por André Felipe de Lima


A melhor dimensão do ser humano é a capacidade da alteridade. A capacidade de olhar para além de si, procurando no outro o complemento de uma identidade. Isso se chama: caridade. Faria 84 anos neste dia 15 o maior artilheiro da história do Botafogo. Faria anos Quarentinha, o que sorria pouco ou nunca. O que era amigo do Garrincha, que o chamava de “Cabeção”. Mas era a forma carinhosa que Mané encontrava para tratar aqueles que amava. Sim, Mané amava Quarentinha. Juntos, lá na área adversária, promoveram jogadas e gols memoráveis. Muitos falam de Pelé e Coutinho. Acho até justo. Porém Garrincha e Quarentinha também faziam das suas juntos. Faziam gols aos montes também. Quantas bolas do Mané foram parar adocicadas nos pés de Quarentinha? Invariavelmente muitas — para lá de 300 — pararam nas redes do infeliz goleiro que diante dele ousasse estar.

Na Seleção Brasileira, as estatísticas não mentem. Em 17 jogos marcou 17 gols. Média assim, nem Pelé. Ah, se Quarentinha tivesse mais oportunidades para jogar ao lado do Rei…


Vamos lá, resposta rápida: quantos gols teria marcado, afinal, o velho paraense Waldir Cardoso Lebrego, “amigo da Onça” dos goleiros caso os técnicos do escrete o percebessem? Não há como mensurar. Mas passaria — fácil, fácil — da centena. A canhota de Quarentinha tinha fogo, meus amigos. Por três vezes ela o fez artilheiro do Campeonato Carioca, em 1958, em 59 e em 60. Quarentinha, o infernal. Deveria sorrir, sim. Mas alegava que ao marcar gols cumpria a obrigação de um trabalhador. Muitos alegavam que a postura era antipática ou qualquer coisa assim. Nada disso. Quarentinha era na dele. Nada mais. Tinha orgulho de percorrer o mesmo caminho do pai, o famoso Quarenta do Paysandu. Só que o filho, de longe, superou o pai. Tornou-se o melhor centroavante da história do Botafogo.

Se desconhecia a pidedade com os goleiros, fora do gramado o Quarentinha era diferente. Uma alma das mais bacanas e generosas.

Em setembro de 1960, o zagueiro Hélio, do América — aquele mesmo, que teve a carreira tragicamente interrompida pela entrada criminosa do Almir Pernambuquinho —, encontrava-se em situação financeira lastimável. Longe dos gramados, pedia ajuda a todos, mas poucos estendiam a mão ao jogador.

A diretoria do América e ex-companheiros do time eram os únicos que ainda se preocupavam com seu ex-craque, com uma ajudinha ali outra acolá. Mas era pouco para que ele, Hélio, realizasse o sonho de ter uma casa própria, que oferecesse mais segurança a esposa e filhos. Bellini e um Almir que se dizia “repleto de remorso” ventilaram na imprensa a possibilidade de um jogo beneficente. Apenas farol.

“Não guardamos ódio dele (do Almir), pelo contrário, imploramos a Deus para que não aconteça o mesmo com ele. Só nos visitou dias após o acidente e depois nunca mais (…) Só pude comprar o terreno em Miguel Pereira, mas o acidente com Almir atrapalhou tudo, pois a casa que tinha sido iniciada está caindo aos pedaços. O dinheiro acabou. Confesso que esperava um pouco mais do futebol”, declarou Hélio.

Mas a surpreendente ajuda chegara afinal. Não partiu do rico e badalado Bellini e muito menos do intempestivo e irascível Almir.

Quarentinha, sim, o maior artilheiro da história do Botafogo, imortalizado pelos seus gols e jamais esquecido graças à preciosa pena do biógrafo Rafael Casé com a brilhante edição do Cesar Oliveira, foi quem financeiramente bancou a obra para que o pobre Hélio concluísse sua casinha em Miguel Pereira. Não houve muita publicidade sobre o fato, mas como me alertou o Casé houve menção do mesmo na biografia que escreveu sobre o Quarentinha. É louvável, acima de tudo, a postura do craque alvinegro. Ídolos do passado como Hélio e Quarentinha eram avessos a arroubos de vaidade. Havia uma preocupação entre pares futebolísticos. Mostrava-se solidariedade, na maioria dos casos, sem interesse ou com viés midiático. Como diz na Bíblia: “Mas, quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita”.


Ídolo como Quarentinha, hoje em dia? Infelizmente, sem chance. Craque como ele, então… nem pensar. Resignados, contenhamo-nos com o que aí está. Enquanto isso, mais um gol da Alemanha.

O que nos conforta, contudo, é saber que um dia tivemos um Quarentinha entre nós, sorrindo igualmente a poesia com as quais sutilmente e para dentro nos debulhamos em lágrimas e em… amor.