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Livraria

CHATO DE LIVRARIA

por Rubens Lemos


Adriano e Lima Neto são duas figuras do maior conceito. São os caras que me apresentam as novidades literárias na única livraria razoável de Natal. Inteligentes – Lima Neto escreveu dois livros -, conhecem minhas preferências e ojerizas. Avisam quando chegam novidades de autores prediletos em romances policiais, em biografias, política e no futebol.

Tenho de desviar o rumo da prosa para admitir um desagradável item que consta da minha figura, sei lá, genérica. Carrego uma espécie de chip de atrair chato, mala sem alça, penetra, espaçoso, esférico irritante. Chato também sou, não sou de abrir a boca antes que desconhecidos me cumprimentem ou me perguntem qualquer bobagem. Sou mesmo é impaciente.

Depois de visitar a livraria e constatar que nada de novo havia chegado, especialmente livros apetitosos anunciados no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Pernambuco e em Brasília, decidi passar dois meses em recesso. Simplesmente não sairia de casa para encontrar Adriano e Lima Neto que, além de excelentes no atendimento, são donos de um ótimo papo. Com eles, converso horas e horas.

A pretexto de resolver um problema pessoal, saí do trabalho e decidi rever os amigos. Lá estavam os dois que vieram reclamando. Tentaram falar comigo sobre um novo lote com diversos romances criminais franceses e suecos e ainda guloseimas e extravagâncias para todos os apetites na área da Copa do Mundo. Um livraço de arte sobre todas as Copas, imagens inéditas de Pelé em 1958, de Maradona em 1986 e de Barbosa sofrido no Maracanazzo em 1950.

Gosto de observar cada uma das fileiras para pescar joias desprezadas pelos que preferem o layout bonito, o colorido ao conteúdo.

Garimpando com os olhos, encontrei o ótimo livro de Nelson Motta sobre as Copas que ele acompanhou, a história do título do Fluminense no Campeonato Carioca de 1971, aquele do famoso gol polêmico do ponta-esquerda Lula, criado nas Rocas, em Natal.

Achei ainda a biografia de Eneas, craque sonolento da Portuguesa de Desportos, morto em acidente de carro, como morreria outra descoberta da Lusa, o espetacular Denner Augusto.

Também por lá pesquei o texto sublime de Roberto Drummond narrando seu amor desmedido pelo Atlético Mineiro e prestando uma homenagem telúrica ao centroavante Reinaldo, gênio devastado por contusões e uma vida turbulenta fora de campo logo após encerrar a carreira. Reinaldo foi o sucessor de Tostão e o Zico das Minas Gerais.

Os três – eu, Adriano e Lima Neto, detestamos o futebol preparado para orangotangos e jogado por seres humanos assemelhados a robôs ou a lutadores profissionais.

O meu chatômetro ligou, acionou, meu instinto acendeu, despertou. Chegou um sujeito alto, com um enorme tratado sobre antropologia. Decidiu invadir sem permissão nossa cidadela de debate.

Sem ser perguntado, cumprimentado, olhado, apreciado ou indiscretamente, xingado, passou a despejar ingredientes de uma infalível enxaqueca.


Disse – não queríamos saber e até detestamos ao tomar conhecimento -, que prepara um estudo para mostrar que o futebol revela a face egoísta e gananciosa do brasileiro. Pegajoso, pensei comigo. No mínimo, chama a imprensa de PIG. Olha o padrão:

– Quer algo mais pedante que o drible? O drible é a demonstração de um homem querendo dominar e escravizar o outro, ultrapassando-o.

Estancamos, furiosos. Os vendedores, menos, claro, por dever de ofício. Eu, em cólera contida na contagem mental de um a dez. Imaginei Garrincha destruindo a defesa russa em três minutos em 1958.

Lá me veio Pelé costurando beques do Benfica no Mundial de Clubes de 1962, Zico transformando iugoslavos em dominós humanos nas fintas seriais até marcar um golaço no Arrudão e Romário aplicando um elástico em Amaral, do Corinthians e batendo de biquinho no ângulo do goleiro Ronaldo.


O intruso continuou:

– Quando comemora um gol, o sujeito, inconscientemente, provoca um abatimento retórico e moral que pode ser irreversível ao adversário arrasado. Retórico e dialétical. Pincei e pensei: nunca me livrarei de analfabetos solenes.

Aí pensei mesmo em Romário. Desdobrado em desportividades com os goleiros deitados e os zagueiros de mãos na cabeça no Ex-Maracanã lotado, ele arrancando, tocando macio e correndo para a torcida, geralmente a da vítima, para provocar.


Cansamos do babaca. Adriano pediu licença e foi atender um senhor à procura da biografia de Winston Churchill, que deveria ter eliminado todos os inconvenientes durante a Segunda Guerra. Lima Neto sumiu.

Saí para o caixa soltando um palavrão, baixinho, mas suficiente para o sujeito ouvir. Por favor, sou dos bons costumes e respeito as damas que nos dão a honra da leitura. Não, não, não direi o que eu murmurei. No máximo, revelo duas inofensivas expressões : vai e sifu.

VIDA LONGA

por Ruy Castro

Não se passa um dia sem a notícia do fechamento de um estabelecimento tradicional: um sebo particularmente rico de livros em francês, um café que vivia cheio de gente, um hotel que já hospedou uma seleção campeã do mundo (a do Uruguai, em 1950), uma banca de jornais que servia cafezinho aos clientes e até uma poderosa loja de artigos esportivos no quarteirão mais caro de Ipanema. Por trás de cada história, a fuga da clientela e do dinheiro e a quebradeira a que levaram o país.


Ao mesmo tempo, não se sabe do fechamento de farmácias, bancos e templos evangélicos, nem de lojas de colchões, de móveis de carregação ou de artigos de casa e vídeo. Por sinal, são elas que ocupam os espaços onde até há pouco se abrigava aquele comércio tão simpática e necessário. Não que essas novas lojas, tão arrogantes, não possam existir. Mas quem precisa de quatro farmácias da mesma rede num único quarteirão? Em outros países, as prefeituras controlam esse abuso.

Por isso, quando se sabe que uma livraria no Rio está completando 19 anos não é caso apenas de soprar velinhas, mas de soltar foguetes. É o que acontece hoje, dia do aniversário da Folha Seca, na rua do Ouvidor, coincidindo com o de são Sebastião, padroeiro da cidade. Quando Rodrigo Ferreira a abriu, em 1998, sua proposta era audaciosa: uma livraria “carioca”, especializada em livros sobre o Rio, música popular e futebol. Desde quando um país em eterna crise comporta tanta especialização?

Mas Rodrigo se impôs e sua presença injetou a felicidade naquele trecho da Ouvidor, entre 1º de Março e Travessa do Comércio. Surgiram botequins, restaurantes, rodas de samba e de choro, tornando-o um dos quarteirões mais deliciosos do velho Centro.

Não se entende mais o Rio sem a Folha Seca. Vida longa a essa livraria, que faz tão bem à cidade.


Texto publicado original na Folha de São Paulo em 20 de janeiro de 2017.