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Epidemia

FUTEBOL, GRIPE E HISTÓRIA

por André Felipe de Lima


Lembro-me bem. Tinha somente oito ou nove anos. Minha avó sentada ao meu lado narrava histórias de quando tinha a mesma idade. Era miúda, mas já trabalhava em uma fábrica de tecidos que havia no Horto, atrás do Jardim Botânico. Um tempo no qual “exploração infantil” era algo lamentavelmente tolerável, mas que, obviamente, se tornaria execrável nas décadas seguintes, ou, pelo menos, deveria ter sido. Era uma sociedade rija, árida, conformada. Uma sociedade que lidava com a morte sob uma naturalidade aterrorizante. Justamente esse terror tomou conta de mim ao ouvir minha avó contar com minúcias o que ela mesma presenciara naquele longínquo outubro de 1918. Corpos e mais corpos empilhados em carroças transitavam diariamente pelas ruas do Jardim Botânico. Ela ia para o trabalho assustada com tudo que via. Era somente uma menina de nove anos. Mesmo com a vida convidando-a a imediatamente crescer pelas vias do trabalho braçal, minha avó era uma criança. Os corpos de que falava foram vítimas da mais temível epidemia que assolou não somente o Rio de Janeiro naquele ano, mas todo o Brasil, todos os continentes. A gripe espanhola ignorava fronteiras para matar em massa. Minha avó não tinha (coitada) a dimensão exata do terror que provocava em mim e nos meus primos com aqueles casos e “causos”. Nunca esqueci as histórias da gripe espanhola. Hoje, com já bem vividos 51 anos, recordo minha avó, que escapou daquela fatídica epidemia. Tornei-me um jornalista e uma “tentativa” de cronista do velho e violento esporte bretão. Nessa minha “tentativa” pontual sobre a gripe espanhola, resgato o impacto dela no futebol daquele distante 1918. Foi algo que, espero, jamais aconteça novamente.


Do Rio e de São Paulo, as cidades mais afetadas pela influenza e os dois principais centros desportivos da época, muitos craques foram vítimas da epidemia. A morte prematura de dois deles causou comoção por serem eles craques de importantes agremiações esportivas. Do Fluminense, Archibald “Archie” French, o jovem e promissor craque egresso do Bangu, e de São Paulo, o centromédio (hoje volante) Octavio Egydio de Oliveira Carvalho. 

Archie tinha uma ambição: ser ídolo do Tricolor das Laranjeiras. Caminhava célere para atingir sua meta no futebol. O Fluminense pretendia manter a supremacia, para isso, em relação ao time campeão carioca de 1917, modificou toda sua ala esquerda. O ótimo Machado foi deslocado para a extrema, com Archibald French assumindo o posto de centroavante. Logo no começo do campeonato carioca de 1918 organizado pela LMDT [Liga Metropolitana de Desportos Terrestres] a devastadora gripe espanhola, que chegara à cidade pelo porto, matou milhares de pessoas na cidade, sobretudo entre setembro e dezembro. Archie sucumbiu no dia 29 de outubro de 1918. No final do campeonato, o Fluminense levantou o troféu de campeão e dedicou o título ao bravo centroavante. 

O clube mostrava-se extremamente preocupado com o cenário devastador imposto pela influenza. Na semana seguinte após a morte de Archie, os cartolas do clube Mario Pollo e Marcondes Ferraz doaram à matriz da Glória uma quantia em dinheiro para que fosse distribuída às vítimas da gripe. Os dois dirigentes tricolores também colocaram à disposição do vigário a sede do clube, na rua Álvaro Chaves, e médicos para qualquer emergência. Mas não foi somente Archie French o único infectado pela influenza. O time inteiro do Fluminense (ou grande parte dele), que contava, entre outros, com Marcos Carneiro de Mendonça, Welfare e Chico Netto, teria tombado no leito. Para sorte dos tricolores, todos sobreviveram e garantiram não somente o título de campeão carioca de 1918 e, no ano seguinte, o épico tricampeonato, uma das conquistas mais notáveis da história do clube.


Octavio Egydio nasceu em uma família abastada. Era filho do ex-senador e abolicionista Paulo Egydio de Oliveira Carvalho, fundador do Instituto de Sociologia de São Paulo, diretor do antigo Diário de São Paulo e colaborador do também extinto Correio Paulistano. Quando morreu no dia 24 de outubro de 1918 após contrair a gripe espanhola, Octavio tinha somente 26 anos. Ele, que se formara em direito em 1916, casara-se com Alda Cavaliere sete meses antes do óbito. Uma tragédia sem precedentes.

Octavio defendia a Associação Atlética Palmeiras (nada a ver com o atual Palmeiras), que rivalizava com o Paulistano, de Friedenreich e Rubens Salles. Era um dos principais nomes do futebol paulista daqueles primeiros 20 anos. Após sua morte, o craque deu nome à taça entregue ao campeão do torneio início do campeonato paulista de 1922, no caso, as sua querida A.A. Palmeiras. 

Outros dois famosos nomes do futebol tombaram na cama: Píndaro de Carvalho, notório zagueiro do Flamengo e da seleção brasileira que conquistaria o campeonato sul-americano do ano seguinte, e Belfort Duarte, fundador do América do Rio. O primeiro permaneceu no Rio durante a convalescença; o segundo seguiu para se recuperar da enfermidade em uma fazenda do interior fluminense. Os dois escaparam do pior. Do Botafogo, o caso mais famoso foi o do uruguaio Beheregeray, um dos melhores do time. Ele adoecera em outubro de 1918 e no mês seguinte arrumou mala e cuia e se mandou para Montevidéu para se recuperar da epidemia devastadora. Àquela altura, não havia mais condições para se jogar futebol no país. 

A gripe espanhola que matava milhões e paralisara o País também forçou a suspensão dos campeonatos estaduais. Por precaução, a CBD [Confederação Brasileira de Desportos] adiou o campeonato sul-americano no campo do Fluminense (que ficaria para 1919, tendo o Brasil como campeão) e os jogadores tiveram de devolver à entidade máxima do esporte nacional o dinheiro adiantado para a viagem ao Rio de Janeiro. Os paulistas Neco, Amílcar Barbuy e Friedenreich gastaram tudo e foram punidos. Nova crise instaurou-se entre a Apea [Associação Paulista de Sports Athleticos], imprensa paulista e CBD. Coelho Neto interveio e os ânimos se acalmaram.


A gripe, por sua vez, deu uma trégua. O país e o futebol retomaram suas atividades. 

A gripe espanhola foi a primeira de outras epidemias que mexeriam com o futebol, mas não tão devastadoras como ela. Entre 2002 e 2003, a Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave) causou um rebuliço no calendário do futebol, levando a Copa do Mundo de futebol feminino da China para os Estados Unidos. Em 2006, outra gripe (a aviária) quase impediu a realização da Copa do Mundo. Por pouco a Fifa não desistiu da Copa. Agora, com o avanço mundial do coronavírus, o mundo do futebol volta a se preocupar. Na Itália, país europeu mais atingido pela epidemia, partidas do campeonato italiano foram adiadas e outras foram realizadas com portões fechados. 

Não quero, juro, voltar a ter medo das histórias da minha avó.