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claudio lovato filho

PONTO DE ENCONTRO

por Claudio Lovato Filho


Leio tua mensagem e começo a seguir tua instrução: “Me encontra no portão 4”.

Guardo o celular no bolso da calça e começo a dar a volta no estádio.

É quarta-feira, já passa das 9 da noite, apresso o passo do mesmo jeito que faz a maioria dos torcedores em minha volta. 

Está quente e um vento atravessado insinua a possibilidade de pé-d’água a qualquer momento.

Vejo um ambulante com o isopor lotado de água mineral e cerveja, penso em tomar uma, mas desisto da ideia, porque quero chegar logo ao nosso ponto de encontro.

Um casal vai à minha frente. Um rapaz e uma moça de seus 20 anos. Estão abraçados e caminham quase saltitando, excitados, eufóricos, felizes de um jeito que só é possível nessa idade e nessas circunstâncias.

Em sentido contrário ao meu se aproxima um homem, ainda jovem, com dois meninos agarrados aos seus braços. Todos vestem a camiseta do time e os meninos se esforçam para acompanhar o passo do adulto, que, ao que tudo indica, é o pai. Quando passam por mim ouço um dos guris dizer: “Hoje a gente tem que ganhar!” Então penso nas vezes em que estive naquela mesma situação, dizendo a mesma coisa. Pra ti. 

Chego por fim ao portão 4, o nosso ponto de encontro. Acendo um cigarro, mesmo sabendo que reprovas esse meu mau hábito, e releio no celular a tua mensagem de e-mail, e a releio e releio e releio, e digo para mim mesmo que não importa que ela tenha sido escrita e enviada por ti há um ano, quando ainda tínhamos entre nós tua presença alegre e forte e teu braço para segurar (para te amparar e nos sentirmos amparados).

Então apago o cigarro, guardo o celular e começo a caminhar em direção à rampa de acesso.

O CORAÇÃO NUMA CAIXA DE FÓSFOROS

por Claudio Lovato


Entrei no carro quando o temporal estava prestes a desabar. Foi só o tempo de fechar a porta para que os primeiros pingos começassem a metralhar a janela. O motorista era um cara grisalho. Quando li o nome dele e olhei para a foto que apareciam na tela do meu celular, uma sensação de estranha familiaridade me assaltou, mas foi só dentro do automóvel que tive a certeza de que era ele. 

“Puxa, mas você é o Délio! Que satisfação!”, falei sem conseguir calibrar o volume da voz e o tom do entusiasmo. 

“Desculpe, não entendi”, ele respondeu, evitando meus olhos no retrovisor. 

“Será que eu me enganei?”, eu disse. “Você não é o Délio, centroavante?”

“Não, não sou”, ele disse, forçando um sorriso. “Muita gente me confunde com ele”.

Não dissemos mais nada um ao outro. A corrida durou mais alguns minutos. Durante o que nos restava de viagem nem me dei o trabalho de pesquisar sobre ele na internet, ver fotos atuais, conferir o que ele andava fazendo, essas coisas. Eu sabia que era ele. Paguei, saí do carro e fiquei pensando sobre as razões de ele ter mentido. Não cheguei à conclusão alguma. Fiz apenas algumas suposições sem a menor importância. 

 

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“Vai com Deus, meu filho”, e isso foi tudo o que ela disse.

Seu menino estava indo embora. Ela bem que gostaria de fazer um último pedido ao seu Waldemar, para que ele cuidasse bem do menino, mas não conseguiu. Se tentasse falar mais do que falou, cairia num choro incontrolável. 

Thiago levava a mochila às costas e uma bolsa preta de náilon, ambas com o distintivo do clube, mas não eram produtos licenciados; seu Waldemar tinha comprado tudo, uma forma de agradar o garoto e tornar “oficial” uma sequência de procedimentos que de oficial tinha muito pouco. 

Ela viu o filho e o homem magro e calvo entrarem no carro, sob a chuva fina e insistente, e tomarem o rumo da capital. 

“Vai com Deus, meu filho”, ela pensou, os braços cruzados, o coração parecendo estar dentro de uma caixa de fósforos. 

 

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Há algum tempo que ele só tem olhos para ela.

Ele foi uma promessa de craque que deu certo. Profissional aos 18 anos. Europa aos 21. Duas Copas do Mundo. Hoje, de volta ao Brasil, é o artilheiro do clube. Solteiro. Rico.    

Ela trabalha na loja do clube. Mora na periferia. É um pouco mais jovem que ele.

Ele passa pela loja todos os dias. A loja é anexa ao Centro de Treinamento. Numa tarde em que o sol e a chuva resolveram aparecer juntos, ele a convidou para sair. Ela disse não. Tem namorado. Vão se casar. O namorado dirige Uber e estuda para concursos. 

O artilheiro, apesar disso, só tem olhos para ela. Apaixonou-se como somente ocorreu uma outra vez em sua vida – pela mulher vencida pela doença cruel há dois anos. 

Ambos – o artilheiro celebridade e a vendedora da loja do clube – estão sendo honestos com eles mesmos. 

São pessoas que já entenderam que a vida está além do que se compra e do que se vende. 

 

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Nos últimos dias, ele tem pensado muito no avô. 

O avô lhe dava muitos conselhos e gostava muito de ditados e provérbios.

“Não se deve ser arrogante com os humildes nem humilde com os arrogantes”, o avô dizia com frequência. 

Ele riu, enquanto dirigia para casa. O avô era uma figura. 

Muito, muito tempo atrás, antes de sua primeira viagem com o time principal, ele recebeu do avô o seguinte conselho:

“Cuidado com o terno. A camisa é branca. Quando forem comer no aeroporto, cuidado com a beterraba e o molho da massa”.

Ele riu de novo dentro do carro silencioso que avançava no asfalto molhado pela chuva que tinha começado de manhã e não dava sinais de trégua. 

Como sentia saudades do avô.

Chegou em casa, estacionou o carro na garagem e, antes de sair, olhou para a calça. Na perna direita, logo acima do joelho, a marca redonda e roxa denunciava que uma rodela de beterraba havia despencado ali. 

Então, antes de dar aquele dia por encerrado, ele pensou:

“Em apenas um par de dias fui arrogante com um humilde e humilde com um arrogante”.

E por fim:

“Eu não sou isso”. 

Depois, com a cabeça baixa e os olhos grudados no chão, foi falar com os dois bisnetos do homem que ele sempre teve e sempre terá como referência absoluta do que é bom e digno e realmente importante.    

O MENINO, AS LÁGRIMAS E O ESCUDO

(Para o amigo Daniel Hirschmann, que soube dizer a um menino as palavras certas no momento mais necessário)

por Claudio Lovato


O menino chora, de cabeça baixa, os cotovelos apoiados na mesa, o rosto escondido entre as mãos. Seu time perdeu.

O pai é jovem, e está ao lado; o gestual é idêntico ao do filho, apenas não chora.

A mãe, de pé ao lado deles, não sabe o que fazer.

Então um homem mais velho, também vestido com camisa do clube, se aproxima do menino, coloca a mão no ombro dele e lhe diz em voz baixa:

– Não desiste desta camisa. Ela ainda vai te dar muitas alegrias. Certo?

A mãe sorri para o homem, agradecida. O pai se mantém calado. O menino balança a cabeça em sinal de concordância.

O homem retorna à mesa em que estão sua esposa e dois amigos, ambos veteranos de muitas batalhas assim como ele.

Não se sabe o que será do menino. Pode-se imaginar que não desistirá, que persistirá. Ele sabe que pode esperar o melhor de seu clube, pois, apesar de ser ainda um menino, já vivenciou vitórias e conquitas extraordinárias.

O certo é isto: enquanto existir um menino que chore por seu escudo, o futebol seguirá vivendo.

Seguirá vivendo da forma que deve.

PARA SER CRAQUE NA VIDA

por Claudio Lovato Filho


É um filme para os apaixonados por futebol e para os adeptos do bom cinema. Mas que não se preocupem aqueles que não fazem parte do primeiro grupo. Isso não os impedirá de curtir uma joia em cartaz nos cinemas do país chamada “O desafio de um campeão” (“Il campione”), de Leonardo D’Agostini, que trata da transformação de seres humanos em produtos, do quanto as relações familiares e de amizade podem ser nocivas ou salvadoras e sobre a importância da educação para a verdadeira libertação do indivíduo.  

Os apaixonados por futebol encontrarão no filme aquilo que tanto desejamos na ficção sobre o nosso esporte do coração: uma narrativa verossímil, protagonizada por personagens bem-construídos e com a dose necessária de emoção e lirismo que o futebol pede em qualquer situação – além, é claro, de ótimas cenas de jogos.  

Aos devotos do bom cinema, “O desafio de um campeão” oferece um roteiro simples e honesto, que nunca perde o foco e que atinge seu ponto alto na descrição do processo de amadurecimento do jovem astro Christian Ferro (Andrea Carpenzano) como resultado de seu relacionamento com o professor Valerio Fioretti (interpretado de forma magistral por Stefano Accorsi), contratado pelo Roma para colocar o jogador de 20 anos nos trilhos dos estudos.

“O desafio de um campeão” é um grande filme. É ficção sobre o futebol levada à tela grande com a seriedade e a competência que o esporte merece. Acima de tudo, é a história de alguém que passa a entender que as soluções para nossa vida dependem das decisões que nós mesmos tomamos – e que, ainda assim, sempre precisaremos de ajuda.  

SOLITÁRIO

por Claudio Lovato


O técnico de futebol é um solitário, meu padrinho Ivan Miguel sempre dizia. Ele nunca foi técnico, nunca foi jogador. Meu padrinho Ivan Miguel era contador. Um torcedor de arquibancada.

Estou pensando nisso agora, nas palavras do meu padrinho, porque fiquei sabendo pelo Altair, meu auxiliar, que por sua vez ficou sabendo pelo Cidão, preparador de goleiros, que alguns jogadores estão querendo me derrubar. O Richard e o Neozinho estão liderando a coisa. 

O Richard é o meu jogador mais experiente, já disputou duas Copas, botei ele na reserva. O Neozinho, bom, este é o que se pode chamar de traíra. Eu o trouxe lá do fim do mundo, de um clube que, na melhor das hipóteses, vai ficar lutando eternamente para se manter na terceira divisão nacional. Trouxe o cara para cá, há mais de dois anos, o garoto foi recebido como um reizinho por minha causa, deram a ele todas as condições de mostrar o futebol que tem, e agora está aí, querendo me passar a rasteira. Quantas vezes o moleque veio me abraçar na beira do campo depois de fazer um gol… O pessoal aqui do clube, de sacanagem, dizia que ela era meu filho.

Mas o técnico de futebol é um solitário, como dizia o meu padrinho Ivan Miguel. E olhe que ele nunca entrou num vestiário, nunca ouviu uma preleção, nem esteve em concentração. Não tem jeito, eu sei: quando os jogadores querem derrubar o técnico, eles derrubam mesmo. É só questão de tempo. Estou sabendo que tem jogador que até gosta de mim, que não vê problema na minha permanência, mas estes, como sempre acontece quando o movimento está encorpado, quando o processo é comandado pelos caras certos, os que têm a tal da “ascendência sobre o grupo”, calam o bico, fingem que não é com eles, se fazem de mortos e consentem com tudo.

O presidente é um covarde que quer me demitir faz tempo. Só estou aqui até agora porque o diretor de futebol, responsável pela minha vinda para o clube, conseguiu segurar as pontas. Esse diretor, que é um sujeito decente (sou suspeito para falar, claro), também acontece de ser um tremendo conhecedor do futebol, coisa que esse canalha desse presidente não é nem nunca vai ser. O diretor sabe que o time é limitado, sabe que o fato de estarmos hoje na décima quarta colocação na tabela é um pequeno milagre, porque já era para estarmos matematicamente rebaixados nessa altura do campeonato, com o time que nós temos. Mas não adianta, não tem jeito. Esse presidente quer me usar como bode expiatório, quer jogar para a torcida. Um filho-da-puta.

É a primeira vez que passo por isso. Depois de 15 anos como técnico, oito clubes, cinco estados, enfim chegou a hora. E por quê?, eu meu pergunto. Errei onde? Não sei. Nunca fui de dar tapinha nas costas de jogador, nem de assar churrasco para eles. Mas também sempre deixei claro que não gosto de bajulação, nunca menti para jogador, nunca critiquei ninguém em público. Quando um deles perde a posição, eu mesmo chamo o cara para uma conversa olho-no-olho e informo a minha decisão. O jogador é o primeiro a ficar sabendo, e fica sabendo por mim, o treinador. Assumo os meus erros, não jogo a culpa pelos maus resultados em ninguém, sempre fui assim, quem me conhece sabe que tudo isso é verdade.

Então é isso. Um jogador vaidoso, que viu na perda da posição um insulto pessoal, uma tentativa de humilhação, partiu para o revide. Em momento nenhum fez autocrítica. O Richard não estava jogando nada havia pelo menos um ano. Porra nenhuma. Está acima do peso, é uma caricatura do centroavante de tempos atrás, hoje não consegue nem segurar a bola lá frente quando o time precisa ganhar tempo e fôlego num jogo difícil. 

E tem o covarde que os conselheiros desse clube tradicional e de bela história elegeram para a Presidência. Esse tipo de tumor só é extirpado quando o clube é rebaixado, quando a torcida vive um momento de completa vergonha e a instituição é achincalhada por todos. Aí o cara esse vira persona non grata, fica proscrito, a foto dele nem vai para a galeria de ex-presidentes. 

Mas o que mais me magoa mesmo, no fim das contas, é o envolvimento do Neozinho nessa sacanagem contra mim. O que será que o Richard botou na cabeça dele? Puta que pariu.

Você veja. A pessoa tenta levar a vida da melhor forma, da maneira mais correta possível, trabalha direito, se aprimora, não se afasta da ética em momento nenhum, é justo com quem está embaixo, respeitoso com quem está em cima, e então aparece um mau-caráter para complicar a sua vida. 

Olha aí o telefone tocando. Para mim? Quem é? O diretor de futebol? Atendo, claro. Sujeito muito decente, me trouxe para cá, segurou as pontas até onde deu. Boa gente, é do ramo. Passo aí já – é o que eu digo quando ele pergunta se eu podia dar uma chegada na sala dele. Lógico que eu já sei qual vai ser o assunto da conversa. E como ele é um sujeito direito, e como sempre me tratou com respeito e até com admiração, eu vou facilitar a coisa para ele, vou chegar dizendo logo que já sei do que se trata, que ele não precisa se preocupar, que eu já estava preparado, que foi um prazer ter trabalhado com ele etc e tal. E, depois disso, talvez me aposentar seja a única coisa sensata que me reste fazer. 

Mas talvez não seja nada disso. Pode ser que eu chegue lá e ele me diga que convenceu o presidente a afastar o Richard e o Neozinho do grupo e me manter no cargo. Vou caminhando do vestiário à sala da Diretoria de Futebol pensando nisso. E uma nesga de esperança se abre no meu peito. É porque, além de solitário, todo técnico de futebol, no fundo, é um otimista, mas isso não foi o meu padrinho Ivan Miguel quem disse.