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Aterro do Flamengo

Ê, SAUDADE!!!!

por Sergio Pugliese


Da beira do campo 3, do Aterro do Flamengo, o pernambucano João Barbosa da Silva, de 76 anos, desabafou:

– O futebol está em crise…

Nosso atento fotógrafo, radar ambulante, Guilherme Careca Meireles, ouviu e freou, afinal a declaração partira de um dos maiores especialistas no assunto da cidade, João da Laranja, o vendedor mais antigo do parque.

– Por que tanto pessimismo, João? – questionou o lambe-lambe.

– Já assisti a grandes jogos aqui! O nível vem caindo muito – lamentou o tricolor, que há 45 anos vende laranjas e bebidas, no trecho entre os campos 3 e 5.

– Não tem visto nada de especial? – insistiu Guilherme Careca Meireles.

– Hoje tem uma garotada que corre muito e é tudo meio mecânico – respondeu.

O papo virou resenha e João da Laranja nos convidou para sentar. Perguntou se tínhamos visto o Embalo do Catete jogar. Naquela época, décadas de 60 e 70, os campeonatos do Aterro, organizados pelo Jornal dos Sports, atraíam milhares de torcedores. Todos queriam ver os chutes certeiros de Luisinho, bicampeão pelo Embalo, a técnica apuradíssima de Zé Brito, o lateral rechonchudo, campeão em 1972, e os dribles arrepiantes de Jacaré, do Xavier, da Tijuca, outro grande campeão.


– Não é exagero, mas as pessoas deixavam de ir ao Maracanã para assistir os jogos aqui – recordou João, que naquele tempo chegava a vender 500 laranjas por dia.

João chegou ao Rio com 26 anos e trabalhou como servente de pedreiro, mas logo passou a vender laranjas no Aterro. Morador da comunidade do Santo Amaro, no Flamengo, também encantava-se com o futebol do Ordem e Progresso, de Filé & Cia, um dos representantes do bairro, nos torneios.

– O que acha que mudou de lá para cá? – questionou o fotógrafo bom de bola.

– O campo era de terra. Esse sintético é um horror. Arriscavam-se mais dribles, os caras jogavam mais bola, sei lá…

Alguns desses caras eram Hugo Aloy, Xanduca e Roni, do Capri, Tonico, do Xavier, Joaquim e Cícero, do Naval, Álvaro Canhoto, do Milionários, e o goleiro Dinoel, do Pedra Negra. Segundo ele, o 10 do Baba do Quiabo também infernizava. Também lembrou do divertido time Morrone (Movimento dos Oito Rapazes que Vivem Rindo Onde Ninguém se Entende), do trio Hamilton Iague, Marcelo e Wilson Fragoso, o Onça. Levaram a maior goleada do Aterro, 47 x 0 do Embalo. Luisinho deitou e rolou!


– Sinto saudade, mas vai melhorar – apostou.

Enquanto isso, vai jogando seu dominó com os amigos, os também nostálgicos Shell, grande árbitro, Oscar, campeão pelas Drogarias Max, e o conterrâneo Zé Faria. Já não vende mais laranjas, só bebidas. Aproveita nossa equipe para reivindicar mais segurança e banheiros para o local. De repente, uma gritaria. Pênalti! Ele levanta-se para ver a cobrança. Na lua!!! Ele riu e comentou com os parceiros:

– O Luisinho jamais perderia.

Crônica publicada originalmente na coluna “A Pelada Como Ela É”, do Jornal O Globo, em 13 de junho de 2015.

A SEGUNDA PELE

por Sergio Pugliese


A professora vascaína do Externato Coração Eucarístico, no Flamengo, curiosa em saber os times de coração de seus pimpolhos iniciou uma enquete: “Vascão!!!”, gritou o risonho, “Fred!!!”, animou-se o tricolor bochechudo, “Mengoooo!!!”, caprichou o comprido, “Loco Abreu!!!”, acenou o botafoguense, “Ajax!!!!”, bateu no peito Diego Parente, de 4 anos. A “tia” enrugou a testa e pediu mais detalhes.

– É o melhor time do mundo – resumiu. 

A pueril marrinha era apenas reflexo da assumida marrona do paizão Victor Parente, de 41 anos, pioneiro do Ajax do Aterro, time fundado em 1988 por amigos do Colégio Santa Úrsula em homenagem ao esquadrão holandês. De cara, ganharam o Campeonato do Aterro, na fase pós Jornal dos Sports. Participaram de 106 torneios, ganharam 50, jogaram 1.500 vezes, venceram 1.085, empataram 179 e “foram prejudicados” em 236. Marcaram 7.815 gols e sofreram 4.204.

– Quase todos irregulares – afirmou o goleiraço Fábio Guimarães, o Mamão, há 20 anos defendendo as cores do azul e vermelho. 


Acir retoca a tatuagem de Mamão. No fundo, os irmãos Alex e Victor ao lado de Simão exibindo o seu escudo tatuado no braço.

O arquivo ambulante do grupo é Alex Parente, de 33 anos, irmão de Victor. Ele também tem sido o responsável pela renovação do time, mas quem continua fazendo comida boa é a rapaziada da panela velha. O vascaíno Victor é o artilheiro e marcou 1.428 gols nesses 24 anos de estrada, “quase todos merecedores de estátua”. Não, eles não são marrentos! A frase “O melhor time do mundo”, estampada no verso da camisa, é apenas uma lição de humildade. Eles não têm qualquer culpa por não encontrarem adversários a altura e não perderem há 18 meses!! Só após muita insistência revelaram cinco grandes rivais: Ellite, do talentoso PH, Ark, dos geniais irmãos Duda e Lelê, Geração 2000, de Dudu, Leo, Aureliano Bigode e Reyes de Sá Viana do Castelo, hoje camisa 13 da equipe A Pelada Como Ela É, Bussanha, do Roberto, e Juventude do Aterro, do craque Fábio. Sobre esse último, a lembrança da memorável final, em junho de 2011, às 22h, no campo 4, pela final do Campeonato da Liga do Aterro: 4×4 e vitória de 3×1 nos pênaltis.

– Foi um dia especial em nossa história – comentou Luiz Sabino, o Simão, autor de um dos gols e outro panela velha do grupo, há 21 anos no Ajax. 


Os outros foram marcados por Rafael, Luís Perna e Antônio Jr. Nos pênaltis, Perna, mais um, Batista e Rodrigo He Man liquidaram a fatura. A comemoração na barraca do Gaúcho, no próprio campo, varou a madrugada, mas para Simão partida marcante mesmo foi contra o Dínamo. O primeiro tempo terminou 4×0 para os rivais. No início do segundo fizeram outro, mas o jogo terminou 6×5 para o Ajax, com cinco gols de quem? Claro, do próprio! Como costuma dizer Seu Walter, craque dos saudosos Vasquinho de Olaria e Cruzeiro do Sul, de Petrópolis, “quem não tem dinheiro, conta história”. Ricardo Gaspar, Marcelinho, Vitinho, Claytinho, Batista Lambreta, Eduardo Parada, Diego Camargo, Luís Augusto, Miguel, Breno e Marcos Marreco se divertem! E tem mais, hein!

– Disputamos um campeonato em que a fase final foi no Maracanã e ganhamos quatro jogos lá – contou, orgulhoso, Alex, observado pela mulher Michelle, grávida.

Melhor pular a parte em que o craque aproveitou uma soneca da amada e foi jogar bola em plena lua de mel. Bem, o que importa é que ela está grávida! Ah, também teve o jogão contra a banda Iron Maiden, em 2001. O baixista Steve Harris marcou três, mas levou uma sacola cheia para a Inglaterra: 13 gols. Certamente pagou por excesso de bagagem. Volta e meia o Ajax também joga contra peladeiros argentinos, numa espécie de intercâmbio. Doze a zero foi o menor cartão de boas vindas. Uma história rica dessas, claro, foi gravada em DVD e exibida em sessão prive, no Artplex, de Botafogo. 

– Um espaço cult porque somos cults – explicou Victor, que gaba-se por ter convencido o radialista José Carlos de Araújo a gravar num estúdio um de seus gols.

Na site do time o número de acessos já atingiu a marca de meio milhão, mas eles não têm limites e querem muito mais. Na verdade, essa marra é amor. Um amor avassalador! Na semana passada, marcamos com eles num salão de beleza, no Flamengo. Iam retocar as tatuagens com o escudo do Ajax desenhadas por Acir. Estavam no estúdio, Alex, Victor, Mamão e Simão, mas Marco Aurélio, Daniel, Otair e Neto também rasgaram a pele com a marca dessa incontrolável paixão, que passam adiante na escolinha da Tavares Bastos, um belo trabalho social. O líder do grupo, Victor Parente, já enfrentou seis cirurgias no joelho, mas continua correndo atrás da bola, provocando os rivais com divertidos desafios. Agora, finaliza um livro, sonho antigo que pode até não superar Paulo Coelho na lista dos mais vendidos, mas contará a fantástica história de amigos de infância que cresceram obcecados por vitórias, ganharam fama no Aterro do Flamengo e hoje formam o maior time do mundo.

 

ANA MARIA PAULINO, A ‘LEILA DINIZ’ DAS PELADAS DO ATERRO

por André Felipe de Lima


Ana Maria Paulino

Mineira, natural de Belo Horizonte, onde nasceu no dia 7 de novembro de 1942, Ana Maria Paulino foi um dos principais nomes do ciclismo brasileiro na década de 1950, quando pedalava pelo antigo Ciclo Clube Monark do Rio de Janeiro presidido por José Bonifácio Paulino, seu pai, que foi ao lado do Mário Filho um dos maiores incentivadores dos populares Jogos da Primavera. Ana Maria foi também uma grande velocista do Vasco da Gama e do Fluminense. Defendeu-os em corridas e saltos e foi recordista nos 100 metros rasos, no arremesso de peso e no arco e flecha. Completa! Mas o que teria Ana Maria Paulino a ver com futebol? Por que, afinal, escrevemos sobre ela em uma página voltada para o futebol? Foi Ana, a grande atleta do passado, a primeira mulher a treinar no Brasil um time de futebol em uma conceituada competição de… pelada.

Sim, Ana Maria Paulino assumiu o comando dos times de peladeiros do Monark e, alguns anos depois, do Getúlio Futebol Clube, que competiram no famoso Campeonato Carioca de Pelada patrocinado pelo Jornal dos Sports e pelo Super Tênis Bamba 704 no final dos anos de 1960 e começo dos de 1970. Até que se prove o contrário, foi ela a primeira mulher a dirigir marmanjos peladeiros. Até 1971, quando comandava o “Getúlio”, jamais tinha ido ao estádio do Maracanã. “Mas não será por isso que não poderei dirigir um time”, rebatia, na lata, qualquer pergunta mal intencionada.

A primeira técnica de futebol era fã do Zagallo e afirmava categoricamente que o seu time jogava como Fluminense da época, campeão brasileiro de 1970. Com um ar professoral, mostrava a todos que a abordavam os caminhos táticos para vencer nas peladas do Aterro: “Nos campos do Parque do Flamengo, a armação da equipe é um dos fatores principais para se vencer o jogo. Primeiro, precisa-se ter um goleiro bem dotado fisicamente, pois não tendo impedimento, o goleiro precisa estar mais do que atento para sair em qualquer jogada. Três zagueiros plantados, dois jogadores que façam um vaivém constante no meio campo e mais três jogadores na frente. Dois deles, de preferência devem ser ponteiros, pois uma das grandes armas de um time é ter um jogador driblador que conduza a bola pelas laterais do campo e depois coloque o atacante na frente do gol”. Ana sabia das coisas.

A treinadora não era propriamente uma “Yustrich” de saias, mas não abria mão de um comportamento exemplar dos seus peladeiros no campo de barro: “Não admito palavrões, de espécie alguma. Uma vez entrei em campo para retirar meu time porque alguns jogadores cismaram de falar algumas ‘coisinhas’ para o juiz.”


A primeira vez que Ana Paulino deu pinta nas peladas do Aterro sofreu com o olhar enviesado dos machistas e sexistas infiltrados entre os peladeiros. Ela trazia a tiracolo uma mascote, um boneco do Bambi, personagem de Walt Disney. A moçada não levou muito a sério as pretensões da treinadora, mas, para a surpresa de todos, Ana dava um banho em muito “professor” de peladas do Parque do Flamengo. Com o tempo, a rapaziada acostumou-se com ela, que fazia do Monark e do Getúlio dois bons elencos peladeiros: “Um ou outro às vezes procura não me aceitar como sua orientadora, mas eu não perdoo. Tanto que três deles se afastaram e se organizaram para inscrever a sua equipe no Campeonato.”

Na época em que comandava os dois times, Ana estudava comunicação e trabalhava no Ministério da Saúde. “No Parque, eu já chorei, desmaiei, enfim, torci, dirigi e fiz tudo que qualquer outra pessoa poderia fazer”, afirmava.

Se no meio cultural a atriz Leila Diniz era exemplo de liberação feminina no final da década de 1960, nas peladas (ora, sim senhor), Ana Maria Paulino driblava com maestria o preconceito para se tornar a primeira mulher a treinar um time de peladeiros na história. Simplesmente épico! Mas fica a pergunta: por onde andará Ana? Quem souber, pode entrar em contato com esse repórter. Ana Maria Paulino faz parte da história da pelada brasileira.

CRIAS DO ATERRO

Crias do Aterro, Sebastião Lazaroni, Filé e Álvaro Canhoto relembraram os lendários campeonatos de pelada do Rio de Janeiro. Os torneios eram organizados pelo saudoso Jornal dos Sports com o intuito de arrecadar fundos e reunia boleiros de todos os cantos da cidade!

ATERRO NA VEIA

por Sergio Pugliese


Da esquerda para a direita: Jacaré, Hugo Aloy, Xanduca, Carlos Stern, Tonico, Filé, Zé Brito, Joel Santana, Luisinho, Joaquim, Roni e Sergio Pugliese. Agachados, Dinoel Santana e Álvaro Canhoto.  

O comodoro do Caiçaras, Zé Brito, chegou cedo ao clube para conferir os mínimos detalhes. Esticou a toalha, lustrou os talheres e ajeitou os guardanapos. Nada podia dar errado. Também caprichou no cardápio: moqueca de frutos do mar e congro rosa, e pudim de leite para fechar com chave de ouro! Escalou Tavares Bandeja de Ouro para a cerimônia e sentou-se, ansioso, para aguardar os convidados que há mais de 30 anos não via, todos rivais nos memoráveis campeonatos do Aterro do Flamengo, nas décadas de 60 e 70.

– Tenho que tratar bem os meus eternos patos – brincou ele, estrela do Milionários, campeão em 1972. 

Patos?? Aí, Zé Brito pegou pesado! Mas nossa equipe conhece o lateral de outros carnavais. Considerado um dos gênios do soçaite, ele mantém intactos o bom humor e os quilinhos dos áureos tempos. Sorte a dele o primeiro convidado não ter ouvido essa gracinha de “patos”, afinal o gigante Luisinho sempre intimidou só de olhar. E cara a cara com o símbolo maior do Embalo do Catete, Zé Brito mudou o discurso.

– Esse aqui dava gosto de ver jogar e o chute era certeiro!

Luisinho era o cara! Decidiu várias partidas para o bicampeão do Aterro batendo faltas e pênaltis, e sua garra enlouquecia a fanática torcida do esquadrão vermelho e branco. E justamente quando a dupla trocava ideias sobre o fanatismo dos torcedores chegou o cracaço Filé, do Ordem e Progresso, maior rival do Embalo, e logo chutou o balde.

– O Ordem tinha a maior torcida do Flamengo!

– Grande e quizumbeira – provocou Zé Brito.


As duas torcidas realmente eram gigantes e a do Embalo até virou escola de samba, mas Luisinho reconheceu a força do Morrone, adversário que não estava ali para vender seu peixe e também gravou o nome no Aterro com a maior goleada da história dos campeonatos: 47 x 0. O Morrone (Movimento dos Oito Rapazes Que Riem Onde Ninguém Se Entende) atraía uma galera imensa, apaixonada e ávida para assistir o show do trio Hamilton Iague, Marcelo e Wilson Fragoso, o Onça. 

– Naval na área! – anunciou Zé Brito.

Era Joaquim! De uma família de craques, o centroavante do Naval também está entre as lendas do soçaite, assim como Cícero, seu parceiro de equipe. Era admirado até pelos rivais e chegou a jogar no Milionários e Embalo. Cinco minutos depois chegaram Hugo Aloy e Xanduca, do Capri, de Santa Teresa, primeiros campeões do Aterro, em 1966. Teve até continência! Hugo era fenomenal e Xanduca, letal. Também do Capri, da geração seguinte, Roni, talento puro, chegou de mansinho. Assim como Joaquim, ele atuou por outros times, como Naval e Milionários.

– Cansei de deixar o Zé Brito na cara do gol – pilhou.

– Se deixou, eu fiz! No Aterro, só ganhei, só fiz bonito – tirou onda o anfitrião.

– Perdeu para mim! – alguém gritou.

Era o genial Tonico, do Xavier, campeão de 1971, anunciando a chegada. Zé Brito prefere esquecer esse dia quando perdeu a decisão para o time da Tijuca por 2 x 1, gols de Tonico e do endiabrado Jacaré, que também apareceu no almoço, com o zagueiro Carlinhos Stern, para atormentar ainda mais a memória de Zé Brito, que até pênalti perdeu nesse dia.

– Se tivesse me deixado bater o goleiro não ia nem ver…. – garantiu Álvaro Canhoto, do Milionários, mais um fora de série da turma.

– Ouvi goleiro? Me chamaram? – brincou Dinoel, campeão pelo Pedra Negra, do Méier, que chegou acompanhado de seu zagueiro Joel Santana, ele mesmo, o consagrado técnico. 


A mesa estava repleta de estrelas! Eu não tinha mais blocos para registrar tantas glórias e me beliscava para confirmar se estava mesmo ali, entre Tonico, Roni, Hugo, Zé Brito… Caramba, aqueles caras arrastavam multidões de casa para vê-los e até hoje são reverenciados em seus bairros. Participaram da época mais gloriosa do futebol de rua e destacaram-se! O Aterro era o Maracanã e o campeonato, a Copa do Mundo. Como explicar tudo numa coluna? Não dá. Quem viu, viu! Então, desisti, acenei para Tavares Bandeja de Ouro, troquei a caneta pela tulipa e mergulhei na melhor resenha de minha vida.