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Arnaldo Niskier

GOL DE LETRAS

texto: Sergio Pugliese | edição de vídeo: Daniel Planel

De repente, o puxão de orelha. Era o quarto da semana, pelo mesmo motivo. 

– Já para casa treinar caligrafia! 


(Foto: Arquivo)

O menino não era louco e obedecia. Conhecia bem o peso da mão de Odilon, um dos quatro irmãos. Ele sempre chegava de surpresa, dava o bote e com apenas dois dedos capturava a presa. Incontáveis vezes invadiu os rachas da Rua Manoel Leitão, na Tijuca, para aplicar seu radical método de ensino. Nessa época, as orelhas de Arnaldinho cresceram alguns centímetros, mas a técnica do mano surtiu efeito. E que efeito! O fominha de bola, sem abandonar os campos, se tornou o primeiro aluno do Colégio Vera Cruz e da Faculdade de Educação, do Instituto Lafayette. Aos 15 anos, começou a escrever crônicas esportivas no Última Hora e aos 17, talento reconhecido, foi contratado pela Manchete, onde ficou 37 anos. Hoje, o intelectual Arnaldo Niskier é imortal da Academia Brasileira de Letras, presidente do Centro de Integração Empresa Escola (CIEE) e autor de 60 livros educativos. 

– Nenhum deles incentivando a prática do puxão de orelha – garantiu, às gargalhadas, durante chá na ABL com a orgulhosa equipe do A Pelada Como Ela É. 

Mas Arnaldo reconhece a importância da família em sua formação e apesar das broncas todos sempre o incentivaram a tentar a sorte no futebol. Torcedor apaixonado do América, treinou no clube como ponta-esquerda do infanto-juvenil e ganhou a vaga de titular quando Zagallo, Mariozzi e Manfredo foram para o Flamengo. No início, conseguiu conciliar a paixão com os estudos e os plantões no jornal. Lembrou da primeira matéria, em 1954: Bangu, do goleiro Princesinha, 6, Madureira 1. Também era excelente nadador e ganhou 56 medalhas, mas uma otite o afastou das piscinas. Na Manchete Esportiva, o cenário mudou. O chefe Augusto Rodrigues, irmão de Nelson Rodrigues, o liberou para três treinos, mas no quarto chiou e o jovem Arnaldo optou pelo jornalismo. Só sobraram as peladas na areia da Praia da Barra da Tijuca e os campeonatos de futebol de salão pelo Clube Municipal. 

– Nossa vida era dura e eu pagava meus estudos, precisava trabalhar – contou, enquanto dividia um bolo de aipim com coco, com Reyes de Sá Viana do Castelo, intelectual dos bares e da equipe do A Pelada Como Ela É. 


(Foto: Arquivo)

Mas a história de Arnaldo ganhou corpo e seu nome virou referência na área de Educação. Orgulha-se do currículo e dos altos cargos, mas prazer mesmo foi jogar ao lado do filho Celso Niskier, o Samarone, hoje o reitor bom de bola mais jovem do Brasil. As peladas aconteciam no Teresópolis Country Clube e também participava o goleiro Antonio Nascimento, atual editor do caderno de Esportes de O Globo. Segundo Arnaldo, o uniforme de Toninho era praticamente uma armadura, cheio de parafernálias e cobria quase toda a extensão do gol, sendo impossível penetrá-lo. Arnaldo também lembrou os campeonatos intercolegiais e elegeu o gol de cabeça feito pelo Vera Cruz como o mais lindo de sua carreira. Mas foi obrigado a ouvir uma tirada infame de Reyes de Sá. 

– O gol da vida de um intelectual só podia ser de cabeça. 

Arnaldo se fez de surdo e para o cenário das fotos escolheu a imponente Biblioteca Acadêmico Lúcio de Mendonça, no prédio anexo à ABL. Ali, virou menino, quebrou regras e falou alto. Acabara de receber uma bola de nossa equipe e estava exultante, então encarou Reyes de Sá e devolveu o trocadilho. 

– Me fotografa fazendo um gol de Letras. 

Aos 76 anos, num elegante terno, puxou a bola com o bico do sapato engraxado e arriscou algumas embaixadinhas, mas ela escapou. “Você era bom nisso”, comentou baixinho para ele mesmo, como exercitasse a memória, provocasse o talento guardado desde os 65 anos quando atuou pela última vez, em Barra do Piraí, e foi aposentado por um estiramento. Concentrado, novamente rolou a redonda no assoalho e iniciou o show. Uma, duas, três, agora sim…ela subiu e aterrissou mansa na gravata de seda. Tanta empolgação assustou Luiz Antônio de Souza, há 39 anos dirigindo e zelando pelo nobre espaço abarrotado de livros raros. De sua mesa alertou sobre o perigo de uma porta de vidro das estantes ser quebrada. Não chegou a puxar a orelha do escritor, como Odilon, mas pediu modos. Mergulhado num mar de nostalgia, Arnaldo recordou suas boladas explodindo nas janelas das casas da Rua Filgueiras Lima. Era como se o tempo não tivesse passado e ele ainda fosse o mesmo menino peralta da Tijuca. Emocionado, citou Machado de Assis: “Esta a glória que fica, eleva, honra e consola” e pela primeira vez, desde que assumiu a cadeira 18, da Academia Brasileira de Letras, há 27 anos, entendeu o verdadeiro sentido da palavra imortal.

Texto publicado originalmente na coluna A Pelada Como Ela É, do Jornal O Globo, em 2 de julho de 2011.