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GARRINCHA ERA FOLHA AO VENTO

1 / novembro / 2023

por Marcos Vinicius Cabral

Entre os Anos Dourados de 1950 e os Anos de Chumbo de 1960, restava o futebol para o povo brasileiro transferir a alegria que o país, politicamente incorreto, havia lhe tirado. Garrincha, nascido na cidade de Magé, na Baixada Fluminense e, registrado Manoel Francisco dos Santos em 28 de outubro de 1933, era a personificação da alegria que devolveria o sorriso ausente no rosto das pessoas.

No hiato entre os anos 1950 e 1960, em que a ansiedade vivia camuflada de esperança pelo plano desenvolvimentista deixado por Getúlio Vargas (1882-1954), Juscelino Kubitschek (1902-1976), então presidente da República à época, reconstruiu um Brasil que levou 41 meses para Brasília se pôr de pé. Bem menos do que os 24 anos que o Brasil levou para conquistar o primeiro título na Copa do Mundo da Suécia, em 1958, que Garrincha, com o número 11 às costas, ao lado do jovem (futuro rei) Pelé, então com 17 anos; de Didi, o Príncipe Etíope; de Nilton Santos, a Enciclopédia do Futebol; e Zagallo (recordista de Copas do Mundo conquistadas), ajudou a vencer em gramados suecos pondo, para alegria geral da nação verde e amarelo, ponto final ao complexo vira-latas.

Quatro anos depois, no Estádio Nacional de Santiago, no Chile, Garrincha, dono absoluto da camisa 7, brincando mais uma vez e sem Pelé, contundido contra a Tchecoslováquia na fase de grupos, trouxe novamente a alegria para o povo sofrido com a conquista do bicampeonato na Copa de 1962. Eleito melhor jogador da competição, o ponteiro da Seleção Brasileira jogou a final contra a mesma Tchecoslováquia com 38 graus de febre. Se há patriotismo maior ou equivalente, os quatro cantos do mundo no futebol, desconhecem.

Contudo, antes dos feitos, Garrincha – que celebraria aniversário no sábado passado, 28 de outubro – venceu as guerras pessoais e sobreviveu. E até hoje, 40 anos depois de desaparecer desta ambiência física, no Dia de Finados celebrado nesta quinta-feira (2) que emerge no calendário, ele vive! Mas a vivência deste jogador, a vividez dos feitos que produziu nos campos e a emoção provocada no coração dos torcedores, alvinegros ou não, da Seleção Brasileira ou de outra nacionalidade, seja de A a Z, além do jeito idiossincrásico de levar a carreira de atleta profissional a sério, o alçaram ao lugar mais alto de uma prateleira que constam nomes de monstros sagrados do futebol mundial.

Perpetuado na história e eternizado no coração daqueles torcedores que eram fãs que, no afã de encontrar alegria em um domingo amuado, bastava ir ao Maracanã para a tristeza ser ‘chutada para escanteio’. Isso porque, bastava Garrincha receber a bola que a torcida se levantava da arquibancada forjando no semblante áspero do cidadão sofrido um sentimento díspare que envolvia ansiedade e certeza, beleza e jogada sobrenatural. Pronto. O ingresso estava pago!

Entretanto, certo é que o demoníaco Anjo das Pernas Tortas merece um asterisco nesta prateleira em que só os bons permanecem nela. Sendo desta forma, torna-se improvável que, amantes deste esporte apaixonante que conta com 22 jogadores correndo atrás de uma bola de futebol, como o missivo que escreve e o leitor que lê este texto, venham deixar o mitológico camisa 7 do Botafogo e Seleção Brasileira cair no ostracismo.

Não! Jamais! Nunca! Sob hipótese alguma! Entretanto, inúmeros foram os defeitos conatos que Manoel Francisco dos Santos trouxe consigo quando veio ao mundo: desequilíbrio da pelve, estrabismo, joelho direito com valgo (desvio da articulação que torna os pés mais afastados), e seis centímetros de diferença de comprimento de uma perna para outra.

Diante de tantos problemas físicos para um corpo de atleta profissional, muito antes de notabilizar-se pela habilidade e pelos dribles desconcertantes nos marcadores chamados por ele de ‘Joões’ no território inóspito do futebol, Garrincha, o mais célebre ponta-direita e o melhor driblador que os ‘olhos’ do mundo viram, já driblava na vida a infância difícil, a fome, e a falta de oportunidades.

Era 1952. Garrincha – apelido dado por uma das irmãs em razão do garoto gostar de caçar a ave de mesmo nome – teve que superar o olhar de soslaio dos dirigentes de Flamengo e Vasco que o rejeitaram sem dó e piedade em razão das pernas tortas. Desolado, acabou levado para o Botafogo e enquanto se aprontava para treinar pela primeira vez, ouviu Gentil Cardoso (1906-1970), técnico à época do alvinegro, pensar alto: “Aqui aparece de tudo, até aleijado!”.

Pois é. O aleijado entortou Nilton Santos no primeiro treino, teve a contratação pedida pelo próprio lateral, fez parte da ‘Selefogo’ com Didi, Quarentinha, Amarildo e Zagallo e, conquistou títulos guardados até hoje no coração do torcedor alvinegro.

Mas Magé foi o início da trajetória futebolística e o fim de uma carreira altiva de quem alcançou a estrela – principalmente a solitária – mas nunca tirou os pés do chão da simplicidade em pessoa que foi. No Esporte Clube de Pau Grande onde, aliás, o lendário Garrincha nasceu para o futebol, a pessoa Manoel Francisco dos Santos morreu para o mundo naquele 20 de janeiro de 1983. Desde então, jaz no Cemitério de Raiz da Serra, quiçá, recebendo visitas, orações, flores e apetrechos fúnebres que lembrem a data.

Mas no Dia de Finados, Garrincha permanece vivo na retina de quem teve a oportunidade de vê-lo em campo desconstruindo mitos e dando notoriedade aos sucessivos ‘Joões’ que ajudou a construir. O futebol do camisa 7 se transformou em poemas versados por Vinícius de Moraes (1913-1980) e Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Foi documentário de Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988) e biografia de Ruy Castro. Mas acima de tudo, o ponta-direita foi craque no esporte mais popular do mundo. Foi gente. Ou melhor, foi multidão. Garrincha era folha levada ao vento.

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1 Comentário

  1. Jorge Fernando Faria

    Ótima reportagem

    Responder

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