por Cassyus André

Decidir sobre a elegibilidade de um atleta para o próximo jogo, especialmente após uma lesão grave como a do ligamento cruzado anterior (LCA), exige mais do que analisar uma semana ruim de treinos — principalmente quando esse atleta participou de cerca de 30% dos minutos jogados pelo clube desde seu retorno.
Basear essa decisão em uma semana ruim de treinos ou em impressões superficiais é ignorar o contexto, depreciar um ativo do clube e desrespeitar o processo. É contrariar o que a ciência do esporte e a experiência prática já comprovaram sobre reabilitação e reintegração funcional.
As métricas de GPS são úteis, mas não captam fatores essenciais como prontidão neurocognitiva, confiança, tomada de decisão sob pressão e resiliência emocional. Reduzir esse processo complexo a números e gráficos rasos expõe uma cultura de treino amadora, desprovida de critério, que revela um erro sistêmico.
Esse erro compromete não só a comissão técnica, mas todo o departamento de futebol do Flamengo.
Num clube que busca excelência, decisões desconectadas da realidade do atleta e pautadas por impressões superficiais não são falhas isoladas. São sintomas de um sistema mal conduzido e despreparado para o nível que o Flamengo exige.
Por isso, me dirijo a você, Filipe Luís, que está iniciando sua carreira como técnico: não cometa o erro de esquecer seus 20 anos dentro de campo como jogador profissional.
Sua vivência como atleta deve guiar suas decisões, honrando o vestiário, o processo de reabilitação e o respeito ao jogador.
O vestiário é sagrado. O treino é espaço de construção, escuta, correção e confiança. Transformá-lo em espetáculo público é um erro grave. Liderança não se constrói com manchetes e exposições, mas no silêncio dos bastidores.
Quem rompe esse pacto de lealdade enfraquece a função que escolheu exercer. No futebol de verdade, liderança se prova no silêncio, não no barulho das entrevistas.
Entre expor um jogador e se expor, você, Filipe Luís, preferiu expor o jogador. Mas quem aponta o dedo em vez de assumir a pressão, as críticas e o peso da liderança ainda não entendeu na plenitude a complexidade, a renúncia e a responsabilidade que envolvem liderar no alto rendimento.
Desejo sinceramente que você se torne um dos maiores técnicos do mundo. Mas com apenas seis meses de carreira, ninguém, nem mesmo eu que torço muito por você, tem hoje elementos concretos para garantir que você chegará lá.
Não esqueci os dois meses de 2024 em que, para mim, você não era apenas um técnico começando, mas um deles, um sonhador que compartilhou seus sonhos com alguns jogadores. Naquele momento, a mobilização precisava ser de irmão para irmão, de amigos para amigo. Você não era só um treinador em início de carreira. Era um amigo que precisava deles para começar vitorioso, e eles fizeram por você o que só amigos fazem.
Além disso, o jogo em si é parte do tratamento. A exposição controlada ao ambiente real favorece a readaptação funcional, psicológica e biomecânica. Negar esse processo trava a evolução, gera insegurança e atrasa a confiança pós-lesão.
Sinceramente, não sei se você tem essa consciência, mas sua robusta e competente comissão técnica, composta por psicólogos, médicos, preparadores físicos, fisioterapeutas, fisiologistas e nutricionistas, tem certeza de que o GPS não mede tempo de reação, qualidade da tomada de decisão, nível de atenção sob pressão, coordenação motora fina em situações imprevisíveis, respostas neurocognitivas ao jogo real, conexão entre percepção e ação em contextos caóticos e prontidão emocional.
Reduzir essa complexidade a métricas externas é negligenciar o que realmente constrói um retorno competitivo.
Filipe Luís, quando tiver dúvida sobre para onde direcionar seu olhar, que seja sempre para aquele menino que joga com sonhos — nunca para o “profissional perfeito” que não existe.
Pergunte ao Baggio, que perdeu o pênalti na final da Copa de 94, ou ao Romário, que converteu o dele. Pergunte a eles quem bateu aquele pênalti: o jogador consagrado e milionário ou o menino cheio de medos e sonhos?
Sua carreira como jogador e seus comportamentos apontam um grande potencial. Torço para que você construa uma trajetória brilhante, guiado pela coragem, firmeza, profissionalismo, humanidade e sensibilidade.
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