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ABELARD PAIVA DE ABREU, UMA VIDA DEDICADO AO FUTEBOL

por Marcos Vinicius Cabral

Abelard (segundo da esquerda à direita) começou a escrever sua linda história no Maracanã sendo gandula

O Maracanã, que completou 75 anos no dia 16 de junho, foi palco da decisão do Campeonato Brasileiro de 1980, recebendo craques como Zico, Reinaldo, Raul, Toninho Cerezo, Junior, Palhinha, Carpegiani, Éder, Adílio e Andrade, num jogo eletrizante, que terminou com a vitória do Flamengo e a conquista de seu primeiro campeonato nacional.

Junto desses craques, adentrou o gramado, pela primeira vez em sua vida, Abelard Paiva de Abreu. Abelard não jogou, mas cumpriu com maestria sua nobre função de gandula do clássico e desde então, nunca mais ficou muito distante do tapete verde.

Funcionário da Superintendência de Desportos do Estado do Rio de Janeiro (Suderj), Abelard recebeu esse nome, escrito com “d” mudo, de seu pai, também ele um antigo funcionário da Suderj, que pretendeu com isso homenagear Abelard França, dirigente da Federação Carioca e ex-presidente do Maracanã, falecido em 1973.

– É difícil ver um nome como o meu. Não conheço nenhum. Acho que sou único! – gaba-se.

Abelard, apesar da pouca idade, era compenetrado em seu trabalho, mas não escondia a alegria e o orgulho de ser rubro negro:

– Comecei muito pequenininho a ser gandula no Maracanã. Tinha oito, nove anos e, mesmo sendo uma criança, era uma emoção muito grande. Lembro que toda vez que eu entrava em campo com os outros gandulas, a gente ia até o meio-campo saudar a torcida. Eu tremia, ficava super nervoso e me sentia importante quando os torcedores nas arquibancadas batiam palmas para a gente. Havia naquele simples gesto, um pertencimento que para nós, simples crianças, era muito importante. A sensação que, pelo menos eu tinha, era de termos sido escolhidos para assistir jogos memoráveis como vários craques por perto. Eu dava bola para Leandro, Junior, Tita, Adílio, Zico… sabe o que é isso? Até hoje, passados tantos e tantos anos, lembro dos times entrando em campo, cada um em um túnel, o grito das torcidas e a chuva de papel picado. Ficávamos deslumbrados com aquilo. Até hoje lembro daquele primeiro título em cima do Atlético Mineiro. – recordou.

Passados 45 anos, Abelard não comparece mais à beira do gramado como gandula, nem nas arquibancadas como torcedor. Dá plantão no 22° andar da Suderj, na Avenida Presidente Vargas, no Centro, onde trabalha de segunda a sexta-feira, mas não se esquece do olhar maravilhado daquele menino cheio de sonhos.

Aos poucos vai juntando as lembranças que viveu no Maracanã e que o tempo, antagonista de uma história com final feliz, não foi capaz de apagar.

Ainda hoje, vira e mexe, contempla em algum lugar do passado a cabeçada de Rondinelli na final contra o Vasco, em 78; o balaço de Leandro no Fla-Flu de 85; e a falta perfeita de Petković, no ângulo de Hélton, arqueiro cruzmaltino, em 2001. Jura de pés juntos que foram as maiores alegrias vividas no estádio.

– Foram as três maiores emoções que senti aqui no estádio! – garante.

Embora o coração tenha batido mais forte pelas emoções que o Flamengo lhe proporcionou, Abelard pensa na história que construiu na Suderj e no saudoso pai Caliedônio Cândido de Abreu, que faleceu em 2021, toda vez que faz parte do quadro móvel para trabalhar nos jogos.

– Convivi mais com meu pai no Maracanã do que em casa. Na verdade, como foi o único emprego dele, ele morava praticamente no estádio e ia pouco em casa. A nossa relação de pai e filho acabou se tornando uma relação de trabalho, já que ele me apresentou a todos os funcionários e me ensinou tudo sobre o Maracanã. Por ser um sujeito tão querido, os amigos dele passaram a ter o mesmo carinho por mim. O tempo passou, Seu Caliedônio se aposentou, adoeceu e eu continuei trabalhando na Suderj. Estive fora um tempo e voltei em 98 para nunca mais sair.

Atualmente, Abelard é servidor público da Suderj e trabalha no Centro do Rio

Sobre o pai, abre o coração e faz uma confissão:

– Sinto a presença do meu pai em todos os jogos em que vou trabalhar no quadro móvel do Consórcio Fla-Flu. Seja no portão ou em outra função dentro do estádio, sempre estou com o Seu Caliedônio ao meu lado me instruindo, me aconselhando, me indicando a fazer a coisa certa. Quando chega o fim de mais um jogo, converso com meu pai em silêncio e agradeço por ter me iluminado naquela noite. Trabalhar no Maracanã não é fácil, mas com meu pai ao meu lado, acaba sendo possível.

Casado com Renata Leitão de Abreu, pai de Amanda Leitão de Abreu e morador de Itaipú, Região Oceânica de Niterói, Abelard quer apenas que as lembranças do Flamengo e do saudoso pai Caliedônio sejam mantidas para sempre no seu coração, do mesmo jeito como guarda no coração a última vez que foi gandula em uma partida de futebol no Maracanã.

– Foi no jogo contra o Santos, na decisão do Campeonato Brasileiro de 83, despedida do Zico, antes dele ir jogar na Udinese. Eu estava com 12 anos e vencemos por 3 a 0. Foi o mais marcante para mim! – finalizou.

ABRIGO NA TEMPESTADE

por Pedro Barcelos

Era apenas um jovem sem grandes ilusões, infelizmente, mas com grandes ambições inalcançáveis, felizmente. De repente, uma estrela solitária ilumina os caminhos: “pode vir”, disse, “te darei abrigo na tempestade”.

A oferta não foi muito tentadora, visto o panorama atual da situação. A segunda divisão do campeonato nacional não era a oferta mais vantajosa naquele momento. Perdido, preferiu arriscar e aceitar. A situação piorou e mais uma vez a estrela veio: “continue aqui”, disse com confiança, “te darei abrigo na tempestade”.

Depois de dobrar a aposta, ele entendeu o propósito. Com a alma vendida, não tinha muito mais o que oferecer para si mesmo e seguiu. Entendeu, em parte, que aquele fardo seria carregado para sempre. Mais perdido que nunca, em meio aos contornos cotidianos, aceitou a derrota. A estrela solitária, mais uma vez falou: “não saia daqui, te darei abrigo na tempestade”.

Caíram juntos de novo. Caíram juntos pela terceira vez. “Posso desistir e viver outra vida”, pensou, mas a dívida já estava firmada, autenticada em cartório e sem prazo de validade. Achou que o fim estava próximo, sem visão de horizonte ou previsão de futuro. Tudo iria acabar afinal, mas a estrela apareceu: “não parta”, falou calmamente, “te darei abrigo na tempestade”.

Do nada, tudo virou, vingou. Os caminhos se abriram. Era a hora, a hora da estrela solitária. Tudo indicava que venceriam. Jogando em casa com três gols a mais, “esse título está garantido”. Piscaram e perderam para eles mesmos. Ele pensou que de todas as possibilidades, firmou compromisso justamente com a estrela mais azarada de todas. Resiliente, perguntou: “posso ficar aqui? Preciso de abrigo na tempestade”.

A estrela olhou com desconfiança, mas, sem esperar a confirmação, ele continuou. Não foi uma negociação tranquila, mas o futuro reserva confortos que o presente não prevê. Campeões da Libertadores. Campeões do Brasileirão. “O que mais eu poderia querer?”, pensou. A estrela respondeu: “Calma, a tempestade ainda não chegou”.

Conta paga, caminho livre para outras aventuras. “Este mundo não basta, outros caminhos precisam ser traçados”. De um lugar morto, Igor Jesus ressuscita o futebol, o esporte. “Não precisa agradecer, estamos aqui para isso”, pensaram.

Ganharam o universo, mas perderam o mundial. Perderam para eles mesmos, de novo. Ainda sem entenderem o que aconteceu, olharam para os demais que buscavam a própria salvação e falaram: “sejam bem-vindos, te daremos abrigo na tempestade”.

QUANDO A ARTE DEIXOU O CAMPO

por Ricardo Alves (Rico)

Ah, meu amigo… houve um tempo em que o futebol brasileiro não era apenas um jogo — era um bailado sobre a relva, um samba com chuteiras, um espetáculo em preto e branco que fazia o rádio tremer de emoção. Nas tardes de domingo, as famílias se reuniam ao redor do aparelho, e cada gol era celebrado como se fosse poesia recitada no coreto da praça. Era amor puro. Era arte.

Mas hoje… o buraco é muito mais embaixo. Apesar das cinco estrelas no peito e da glória que construímos ao longo das décadas, o futebol brasileiro anda como quem perdeu a cadência do coração. Desde o apogeu de 1970 no México, quando o mundo se curvou diante da genialidade de Pelé, Tostão, Gérson, Rivelino, Jairzinho e companhia, muita coisa mudou — especialmente lá fora.

Os europeus, que antes vinham assistir ao nosso espetáculo de chuteiras, entenderam que não poderiam competir com a nossa arte pela técnica. Então, com sabedoria e humildade, trataram de estudar. E estudaram. Evoluíram na força, na tática, na organização. Hoje, jogam com o coração na cabeça e os olhos no futuro.

Nós, por outro lado, esquecemos de onde viemos. Os campinhos de várzea — santuários da improvisação, da ginga, do drible encantado e mágico — foram engolidos pelo concreto das cidades grandes. Nossos meninos crescem com buracos enormes na formação. Chegam ao profissional sem saber cruzar, cabecear, chutar com a perna ruim ou entender que futebol também se joga com o cérebro.

E a nossa seleção? Ah, quanta saudade de quando a camisa amarela arrepiava a espinha. Hoje, parece vitrine de empresário. Onde estão os líderes de campo? Os que olham o adversário nos olhos e mudam o rumo do jogo pela intuição e pela coragem?

Veja o jogo de ontem. Flamengo e Bayer. Um tapa na cara da ilusão. Técnica ainda temos, mas a força e a tática dos alemães engoliram nosso talento. Marcaram alto, sufocaram. Mas… deixaram a defesa exposta. Bastava um plano B. Bastava olhar além. Bastava raciocinar. Colocar dois velocistas na frente, explorar o espaço nas costas da zaga. SIMPLES.

E por que não foi feito? Porque nem o treinador nem os jogadores leram o jogo. Estavam presos ao SCRIPT, à cartilha, à mesmice. Faltou ousadia. Faltou leitura. Faltou futebol.

E enquanto isso, no topo da pirâmide, a CBF — nossa casa, nossa matriz — mergulha em escândalos e presidentes afastados. Se a cabeça está podre, como esperar que os pés dancem como antes?

É preciso mais do que saudade. É preciso revolução. O futebol brasileiro precisa se olhar no espelho, com a coragem dos tempos de outrora e a humildade dos que querem renascer. Porque talento nós ainda temos. O que falta é o resto: amor à camisa, caráter, estudo, visão e paixão verdadeira.

Do contrário, seguiremos vivendo do passado — e chorando o presente.

AS CORES DE UMA PAIXÃO

por Marco Antonio Rocha

Pelas mãos de um tricolor, uma parte da Rua Cachambi ganhou (e ainda ganha) cores. São escudos das mais diversas divisões do futebol carioca. Caprichado em cada detalhe, o trabalho começou a ser desenhado há três anos, logo após a pandemia. Primeiro foi a calçada, depois os postes e o muro da casa do artista – que, tímido, prefere o anonimato.

“Foi uma depressão pesada que me fez começar. Encontrei na arte e no futebol uma forma de driblar a doença”, conta ele, também apaixonado por pipas: “Por isso elas estão pintadas no alto da casa, mais perto do céu”.

Neste fim de semana, quando o Museu da Pelada passava por ali, o pintor dava forma ao escudo do Sport Club Rio de Janeiro, vice-campeão do Carioca de 1919 (perdeu o título para o Palmeiras Atlético Clube). Uma pequena parte do muro ainda reserva lugar para outros emblemas, mas nem o limitado espaço que sobrou é capaz de esmaecer o desejo de seguir:

“Se algum maluco quiser ceder um muro, faço os escudos de São Paulo…”.

OBRIGADO, PROFESSOR!

por Cláudio Lovato Filho

Ruy Carlos Ostermann (São Leopoldo, 25/09/1934 – Porto Alegre, 27/06/2025)

Quando, nos anos 70, adolescente, descobri e, depois, fui gradativamente entendendo o que ele fazia, fiquei fascinado. Os textos de Ruy Carlos Ostermann. A escrita sobre futebol feita com sofisticada técnica literária e repleta de filosofia, uma mistura que viria a se tornar parte muito importante da minha vida. Não por acaso, a qualidade dos textos dele era exaltada por cronistas do peso de Armando Nogueira.

Mas Ruy Carlos Ostermann, o Professor, ícone da crônica esportiva gaúcha, mestre da escrita, também brilhou nos microfones. Seus comentários pós-jogo nas rádios Guaíba e Gaúcha até hoje ecoam na minha memória. Eram análises acuradas, contextualizadas, verbalizadas com um vocabulário rico e uma dicção tão clara e precisa que dava a impressão de vermos os itálicos e negritos que ele colocava na fala quando assim o desejava.

O Professor Ruy Carlos Ostermann nos deixou na noite desta sexta-feira, 27 de junho, aos 90 anos. Ainda na sexta, à tarde, peguei um livro dele, “A Paixão do Futebol”, e o coloquei ao lado de outro livro dele, “O Nome do Jogo”, numa daquelas rápidas arrumações, um daqueles pequenos ajustes de prateleira. Mas só mexi no livro dele. Eu estava no computador, trabalhando; bati o olho no livro, levantei, troquei o livro de lugar, e logo voltei a escrever. Gosto de pensar que talvez tenha sido um recado dele: “Vai escrever, rapaz. E reescrever. Até ficar bom de verdade”.

Um recado do Professor. Quem sabe? Sabe-se que era uma pessoa que dava atenção a todos. Por exemplo, o respeito verdadeiro à opinião dos leitores e ouvintes era uma conhecida característica do estilo dele – traço extraordinário e bonito num meio profissional (digo isto por experiência própria) em que isso é coisa difícil de encontrar, dificílima, rara.

Obrigado, Professor, por tudo. Obrigado por proporcionar tantas leituras e audições prazerosas. Obrigado por mostrar que o futebol pode e deve ser merecedor das melhores escrituras.

“Escrever sobre futebol é um ofício de respeito. Escrever bem sobre futebol é uma graça que não se recusa. O Ruy nunca pediu desculpa pelo ofício e pelo assunto. Nunca o vi ser condescendente nem com os piores momentos do futebol. E se alguma vez pareceu se desencantar com tudo e nos convidou para esquecer a partida e falar sobre Miles Davis ou um prato de peixe isso nunca durou muito tempo. O futebol sempre volta”. (Luís Fernando Veríssimo)