AGORA COMO É QUE EU FICO
por Marcos Eduardo Neves
Despertei com a notícia da morte de Moraes Moreira. Foi encontrado caído no chão sem vida pela empregada que havia chegado para trabalhar e percebeu o gás aberto. Moraes tomava medicamentos para pressão. A grande imprensa fala em infarto fulminante, mas fonte segura me avisou que ele era muito distraído – e era mesmo, isso eu pude constatar!
ACABOU CHORARE para o BRASIL PANDEIRO nesta segunda-feira. BESTA É TU, se não conheces direito a obra de Moraes. O MISTÉRIO DO PLANETA era um dos gênios imortais da MPB. Com ele A MENINA DANÇA, seja ela loira, morena, índia ou PRETA PRETINHA. Os meninos também. Não à toa, PELAS CAPITAIS só se fala disso. LÁ VEM O BRASIL DESCENDO A LADEIRA com mil homenagens a quem, COM QUALQUER DOIS MIL RÉIS, alegrava a plateia sem fazer esforço.
POMBO CORREIO me passou que o mestre do cordel contemporâneo esqueceu a COISA ACESA e a moça da VASSOURINHA ELÉTRICA bateu de frente com a tragédia ao chegar. Não importa. Gosto dele desde que calçava o CHINELO DO MEU AVÔ e a seu lado tive duas passagens mágicas, SINTONIA profunda em ambas. Primeiro, numa entrevista. Depois, no lançamento de um livro meu, faz um ano e meio. Tenho SANTA FÉ que ele agora CHAME GENTE para cumprimentá-lo no Além. Divertidas as próximas baladas no céu.
Aqui na Terra, ficam as SAUDADES DO GALINHO, saudades minhas, saudades nossas desse rubro-negro que soube levar a vida como novo baiano e autêntico carioca. Solto um GRITO DE GUERRA: Agora, como é que eu fico nas tardes de domingo sem a LENDA DO PÉGASO para aplaudir? O CAMINHÃO DA ALEGRIA freou. PAROU POR QUÊ, POR QUE PAROU? Só Deus há de saber. E ISSO AQUI O QUE É? Ainda estou sem resposta.
Eis aqui o meu respeitoso e apaixonado POEMA DO ADEUS.
Ari Gomes + Ricardo Leoni
LENDAS DA FOTOGRAFIA
entrevista: Sergio Pugliese | texto: Mauro Ferreira | vídeo e edição: Daniel Planel
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Na religião dos lambe-lambes esportivos, Ari Gomes é Jesus Cristo. Não foi crucificado, nem morto e jamais sepultado. Sobrevive, câmera em punho, aos 74 anos, ainda na ativa, sempre atrás da foto perfeita, sempre atrás daquilo que o olho comum não enxerga.
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A primeira vitória de Ayrton Senna, o recorde de João do Pulo, cinco Copas do Mundo, quatro Olimpíadas… Pelé. Ao longo dos anos, Ari acumulou afetos; pelo trabalho e pelo jeitão carinhoso, fanfarrão, gozado. Carioquice explicada pelo nascimento de parteira no morro da Formiga, na Tijuca. Filho de fotógrafo consagrado (Ângelo Gomes), contrariou o pai e não fez a faculdade de medicina.
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Viajou o mundo. Armazenou uma infinidade de histórias e várias e várias malas de conhecimento. Faz questão de lembrar – com ênfase, diga-se – que sua bagagem vem do convívio com três ícones do jornalismo esportivo: Oldemário Touguinhó, Sandro Moreyra e João Saldanha.Com eles aprendeu manhas e malandragens. E a fotografar com os dois olhos abertos.
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Ao lado de Ricardo Leoni – parceiro, vizinho e também fotógrafo -, brinca de fotografar. Ambos cobrem jogos e competições da Liga Petropolitana de Desportos (LPD). Ela serve como um óleo antiferrugem. Leoni abre um livro de elogios ao amigo. Lembra, quando em O GLOBO, que era impossível vencer a foto matadora do JB na sua edição de segunda-feira. E ela era quase sempre assinada por Ari. Diz não ter conhecido fotógrafo igual e ressalta que a alta qualidade profissional do amigo jamais foi usada para se achar mais que qualquer outro companheiro.
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Ricardo Leoni é o mestre da luz e da cor, afirma Ari Gomes. A rebatida vem mais pesada: Ari Gomes é o mestre dos mestres, assegura Leoni. Bola pra cá, bola pra lá, não há vencido ou vencedor. A opinião dos colegas – amigos e inimigos -, leva Ari Gomes ao Olimpo. Todos são unânimes em afirmar que o galã de olhos azuis hipnotizantes é o melhor dos fotógrafos esportivos.
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Ari sente falta de a foto surgir no papel, de levar o filme para revelar na câmera escura. De escolher os hotéis pelos banheiros, das redações, das festas com os atletas. Ari sente falta da primeira página de segunda. Ari sente falta do elogio. E com razão.
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Mas Ari, na religião dos lambe-lambes esportivos, você é Jesus Cristo. Não foi crucificado, nem morto e jamais será sepultado.
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MEU TIO LEO, MEUS BOTÕES, MEU ANTIGO LEBLON E JADIR
por André Felipe de Lima
Meus dois primeiros times de botões foram do Vasco e do Fluminense. Na época, os que mais se destacavam no futebol do Rio. Sobretudo o tricolor e sua máquina devastadora, com Carlos Alberto Torres, Paulo Cezar Caju, Rivelino, Gil, Doval… time indigesto. O meu Vasco tinha Mazzaropi, Marco Antônio, Roberto Dinamite, Zanata, Zé Mário… timaço também, ora essa. Quem deu a mim os dois times de botões foi meu querido e saudoso tio Leônidas, irmão do meu pai.
Cresci ouvindo do tio Leo a paixão que tinha pelo Flamengo. Talvez fosse essa paixão que o fez presentear-me dias depois com um time de botões do Flamengo. Como rubro-negro ferrenho, ele não daria um mole desses. Meu tio sempre tentou (em vão, frise-se) me convencer de que torcer pelo Flamengo era o melhor a fazer e coisa e tal. Não caí na esparrela do titio, obviamente. Mas nunca esqueci o amor que ele sentia em especial pelo Flamengo tricampeão carioca de 1953, 54 e 55. Nunca me esqueci da linha média daquele esquadrão porque o tio Leo sempre que falava de Flamengo citava-a: Jadir, Dequinha e Jordan. Os três também foram “botões” e ídolos do meu tio.
O destino — veja você — nos dá uns nós estranhos. Jordan acabaria entrevistado por mim décadas depois. Foi sua última entrevista. Morreria dois anos após nosso papo, completamente esquecido, em um leito de hospital público e com as duas pernas amputadas por causa da maldita diabete, que também passou a me perturbar um pouco na virada dos quarenta. Dequinha, o grande volante daquele Flamengo do segundo “tri”, disputou todas as partidas dos três títulos. Feito que deveria estar em algum “Guinness da vida”.
Meu filho mais velho, hoje um homem com seu respeitável um quarto de século de vida, tinha somente oito anos e jogava botão comigo. Do nada, simplesmente do nada, virou-se para mim e perguntou quem foi o Dequinha. Foi ali que comecei a juntar tudo sobre a história dos ídolos do futebol. O que hoje leem do que escrevo sobre eles brotou ali, naquela pergunta do meu filho. E o Jadir? Bem, o Jadir, hoje, dia 9 de abril de 2020, faria 90 anos. Jadir Egídio de Souza, um dos ídolos do meu tio Leônidas. E pensar que o Jadir morava na rua Ataulfo de Paiva, no Leblon, onde também morei até meus nove anos de idade. Éramos (quase) vizinhos. Talvez nem meu tio e nem meu pai soubessem disso. Talvez eu tenha cruzado com o Jadir no caminho até a padaria do seu Carlos ou a banca de jornal, na esquina da rua Rainha Guilhermina com a Ataulfo, sem me dar conta de que ali estava o Jadir, um ídolo do Flamengo. Ou mesmo tenha esbarrado no Jadir, no bar Jobi, se identificá-lo.
A portaria do prédio em que morei ficava ao lado do saudoso botequim, que hoje se tornou elitizado. Chato. Ia lá para comprar cerveja e cigarro para o meu pai. Jadir deve ter passado por mim várias vezes naquele Leblon intimista e com uma carinha espontaneamente informal que hoje já não ostenta mais. Ficou artificialmente “fashion”. O Leblon do Jadir era o meu Leblon também. O Leblon do Caneco 70, da Pizzaria Guanabara, da La Mole, do Pancake Bar (o antigo, claro), do Gordon, da carrocinha da Geneal na praia, do biscoito Globo e do mate e caju do figuraça Vicente. Um Leblon que não visito mais porque o passado o levou.
ACHADOS
por Claudio Lovato Filho
Nestes tempos de isolamento social, ele tem feito um verdadeiro trabalho de arqueologia em velhas caixas de sapato, pastas de papelão e sacos de lixo transformados em arquivos.
Certo dia encontrou seu time de botões, que ele acreditava que se extraviara na última mudança de endereço. Os botões foram presente de um velho amigo, um irmão a quem ele jamais tivera a coragem de informar a (suposta)perda.
Naquele mesmo dia, em um dos sacos azuis de lixo, ele reencontrou o button de um dos clubes mais tradicionais da Inglaterra, lembrança de um jogo que assistiu no velho Wembley, em meados dos anos 90. Lembrou-se então da viagem a trabalho e da sorte que teve ao ser presenteado por um colega de empresa com um ingresso destinado a clientes e parceiros da companhia. O button estava dentro da revista produzida especialmente para o jogo.
Em outro dia, no fim da tarde, pôs as mãos e os olhos, depois de muito tempo, nos ingressos para os jogos que assistiu na Bombonera (Boca x Rosário Central), no Centenário (Peñarol x Nacional), no velho Alvalade (Sporting x Metz) e no Brígido Iriarte (Caracas x Deportivo Táchira).
Foi em um sábado de manhã, entretanto, que ele encontrou uma foto que o fez interromper, naquele dia e nos outros dias que se seguiram, as buscas que vinha empreendendo.
A foto, guardada em umas daquelas pastas com elástico, mostrava um jovem, um garoto de 19 anos recém-completados, o rosto cheio de espinhas, o cabelo comprido, o sorriso de quem achava que havia compreendido todos os mistérios do mundo, ao lado de um senhor calvo, de óculos, barriga proeminente, pele bronzeada e o sorriso aberto e contagiante de quem estava pouco se lixando para os mistérios do mundo.
Ali estavam, naquela foto em papel que já havia adotado a forma de canoa, ele e o avô, sob um céu muito azul, nas arquibancadas superiores do estádio que era então o maior do mundo.
O avô que era apaixonado por futebol e pela vida, o avô que caminhava no calçadão da praia todo santo dia e, de 20 em 20 metros, encontrava um amigo, o avô que se foi aos 74 anos, levado por uma doença contra a qual todos os tratamentos e medicamentos pouco puderam fazer. O avô que nunca perdeu a alegria e a vontade de viver.
Naquele dia, ele recolocou a foto na pasta e então pensou,mais uma vez, que lidamos com forças muito superiores aos nossos desejos e às nossas certezas, que o “acaso” e o “aleatório” são apenas formas distintas de nomear essas forças e que a única resposta que cabe nisso tudo, a resposta que devemos dar para nós mesmos, é de que é preciso prosseguir, seguir, continuar indo em frente, tentando levar conosco apenas aquilo que dá sentido a essaininterrupta caminhada da qual somos partícipes e protagonistas, o supremo privilégio que nos foi concedido.
O DIVINO ADEMIR DA GUIA: O ‘FILÓSOFO’ DO IRMÃO DUDU
por André Felipe de Lima
Por incrível que pareça o maior jogador da história do Palmeiras vestiu a camisa canarinho em apenas 11 ocasiões, e sem marcar um gol sequer.
Era grande a expectativa para a convocação de Ademir da Guia para a Copa de 1970. Quando Zagalo assumiu o lugar de João Saldanha no comando do escrete brasileiro, as chances de o ídolo palmeirense ir ao mundial ficaram ainda mais reduzidas. A imprensa, sobretudo a paulista, questionava: Qual, afinal, a diferença de Ademir para Rivelino, Gérson ou Dirceu Lopes? A resposta? Difícil encontrá-la.
Um mês antes de a Copa começar, Ademir, em entrevista ao repórter Michel Laurence, tentava encontrar uma justificativa para a visível indiferença a que os técnicos da seleção o submetiam. “A convocação de um jogador para a seleção é mais uma questão de política. Por exemplo: o futebol carioca está mal e, no entanto, muitos de seus jogadores foram convocados. Eu teria mais oportunidade se o técnico da seleção fosse de São Paulo. O jogador que não estiver nos planos do técnico dificilmente é chamado. Saldanha só saía do Rio para observar Gérson ou Rivelino. Ele não ligava para os outros. O ruim é que na minha posição estão os maiores jogadores do Brasil. Um deles é Gérson, que hoje toca muito a bola para os lados. Isto é, faz exatamente o jogo que me fez tão criticado. Eu não posso dizer que seria útil à seleção Brasileira. Ninguém pode dizer isso antes de jogar. Eu só estive lá em 65 e agora é tarde para voltar. Na outra Copa estarei muito velho.”
Confiante no talento de Ademir e de sua importância para o sucesso na Copa de 74, o técnico Osvaldo Brandão declarou que o craque poderia fazer o mesmo papel de Tostão na seleção de 70, jogando com a camisa nove e correndo em todos os lugares do campo. O certo é que Ademir acreditava nunca ser lembrado: “Não vão me convocar e muito menos fazer de mim um centroavante.”
Quatro anos após a vitoriosa campanha do “tri”, “velho” ou não, Ademir da Guia acabaria convocado por Zagalo para a Copa a ser realizada na Alemanha. Seria o reserva de Rivelino. No jogo contra a Polônia, na disputa pelo terceiro lugar da competição, iniciaria a partida como titular. Mesmo assim muitos afirmariam sempre que só foi escalado porque o zagueiro Luís Pereira [ex-Palmeiras] estava suspenso por ter sido expulso no jogo anterior, contra a Holanda, e que Paulo Cezar Caju [ex-Botafogo] estava machucado. No segundo tempo do jogo contra a Polônia, Ademir não retornou ao campo. Quem despontou no túnel foi Mirandinha [ex-São Paulo].
Domingos da Guia afirmara que a Copa de 74 revelaria Ademir como um novo Didi para a seleção brasileira, especialmente por conta da capacidade de o meia lançar bolas de longa distância, igualmente ao craque do “bi” mundial, em 58 e 62: “Nos 40 lançamentos que realiza por partida, acerta 39 e coloca seus companheiros na frente do goleiro”. Domingos estava, contudo, magoado com Gerson, que comentara com a imprensa que Ademir teria dificuldade para se adaptar ao esquema de Zagalo: “Gerson afirmou que Ademir não era jogador para a seleção. Eu o perdoo, porque quem fala demais sempre comete injustiças. Tenho pena do Gerson por causa de suas declarações infelizes. Meu filho, que é grande amigo dele, não merecia aquelas considerações. Gerson costuma esquecer facilmente os que lhe dedicam carinho e afeto.”
Ademir sempre declarou à imprensa nunca ter sentido mágoa de Zagalo ou de qualquer dirigente da seleção brasileira. Alguns creditam o ostracismo na seleção a uma perseguição velada. Ademir teria se atrasado, em 1968, para um voo que levaria a seleção a um jogo no exterior. O então chefe da delegação da antiga CBD [Confederação Brasileira de Desportos], Paulo Machado de Carvalho, teria se irritado com o atraso de Ademir. A história nunca foi confirmada.
Em 1977, quando estava prestes a abandonar os gramados, Domingos preferia levá-lo para o Vasco a vê-lo no banco de reservas e chegou a recomendar a Dudu, técnico do time, a não barrar Ademir. O craque, embora fosse um esmerado profissional e cuidadoso com a saúde, sofria há tempos de crises respiratórias. Chegou a submeter-se a duas cirurgias no nariz — suspeita de sinusite — para contornar o problema, de nada adiantou. Depois que abandonou o futebol profissional, ficou seis anos sem entrar em um gramado. Nem mesmo para uma descontraída pelada. Mas a quem lhe criticasse a resposta seria no gramado.
Em abril de 1977, o Palmeiras derrotou a Portuguesa de Desportos pelo placar de 3 a 2. Ademir marcou dois gols e deu o passe para o de Jorge Mendonça. O pai, eufórico, dizia aos jornalistas: “Vim para São Paulo porque soube que o Ademir estava parando. Trouxe até uma proposta do Vasco da Gama para que ele encerre a carreira no Rio de Janeiro; mas, depois do que vi, como não sou imbecil, nem vou falar com os homens do Palmeiras. O time não é mais o mesmo de dois, três anos atrás. Mas o Ademir é.”
Nem mesmo propostas ditas milionárias o afastaram do Palmeiras, como a feita pelo empresário Juan Figger querendo levá-lo para o Monterrey [México] e o Dallas [Estados Unidos]. Ademir balançou: “Não vou mentir. A proposta inicial [a do Monterrey] me pareceu muito boa e chegou a me fazer pensar com euforia”. Mas o Divino decidiu preservar a família e não se arriscou na “aventura”.
Após o fatídico ano de 1977, Ademir recebeu um convite para dirigir o time infantil do Palmeiras. As palavras do velho Moacir Bueno [ex-Bangu], ditas a ele, na época em que começava a carreira na categoria infantil do Bangu, devem ter ecoado na memória do craque naquela ocasião. Mas o status de maior estrela da história do Palmeiras não lhe garantiu uma vida financeira estável. Trabalhou em vários empregos. Alguns nada tinham a ver com futebol, como o de auxiliar de juiz classista.
Apesar de aquele jogo contra o Corinthians, em 1977, ter sido o último da carreira do Divino, faltava a Ademir uma festa de despedida, o que só aconteceu em no dia 22 de janeiro de 1984, em um jogo realizado no estádio do Canindé, da Portuguesa, entre os amigos do Palmeiras e um combinado paulista, que contou até com a escalação de Rivelino.
O combinado derrotou o time de Ademir por 2 a 1, que jogou apenas 36 minutos e recebeu do Sindicato dos Atletas Profissionais a renda do jogo. Cerca de 12 milhões de cruzeiros e 10 milhões doados por Pelé. Naquele ano, já estava separado da chilena Ximena, mãe de Mirna e Namir, dois dos filhos de Ademir e vivia da renda dos imóveis que mantinha em São Paulo e no Rio de Janeiro e da venda de calções da fábrica de um amigo. “Eu achava que a idade ideal para parar de jogar seria 35 anos. Quando cheguei aos 35, passei a achar que melhor seria parar aos 36. Se tivesse chegado aos 36, ia pensar em parar aos 37…”
Ergueram no Parque Antártica uma estátua para Ademir da Guia no dia 1º de setembro de 1986. No campo da literatura, alguns jornalistas, poetas e escritores se lembraram de Ademir. O maestro e escritor Kleber Mazziero de Souza é um deles. Mazziero publicou, em 2001, uma rica biografia sobre o craque intitulada “Divino: A vida e a arte de Ademir da Guia”.
Ao ler a obra de Mazziero, constata-se que a vida do genial jogador é mesmo coisa de cinema. Não deu outra. Do cineasta Penna Filho, nasceu, em janeiro de 2006, o documentário de longa-metragem “Um craque chamado Divino”, com imagens do saudoso Canal 100, da Cinemateca Brasileira e das emissoras de televisão Bandeirantes e Cultura.
A vida de Ademir não pode ser dissociada da trajetória de sua família. Foi assim com seus avós paternos e com o seu pai, o incomparável Domingos da Guia. Uma das marcas mais singulares dos Da Guia foi o zelo familiar. Ademir manteve essa tradição, procurando sempre conciliar a atribulada carreira nos gramados com a vida em casa. E não foi fácil.
Feriados, por exemplo, eram raros. Quando disponíveis, priorizava-se o convívio exclusivamente familiar em sua confortável casa na Vila Madalena.
Em abril de 1977 aconteceu uma dessas escassas oportunidades. Ademir desfrutou alguns dias de folga com os filhos Mirna, então com oito anos, e Namir, com sete, e Ximena. Saíram à noite para comer uma pizza e curtirem o domingo de Páscoa juntos… mas sem Namir, que fora levado por um amigo de Ademir ao Parque Antarctica ver o Palmeiras jogar, sem o pai em campo. O garoto voltou para casa decepcionado com o empate do Verdão com o Palmeiras em 0 a 0. “Paiê! Não gostei do time sem você.”
Assim sempre foi Ademir, relevante em casa e não menos imprescindível em campo.
CASAMENTO OU CONCENTRAÇÃO
Em 1967, o Palmeiras jogaria, no Maracanã, o terceiro e decisivo jogo da final da Taça Brasil, que classificaria o campeão para a Taça Libertadores da América. O primeiro jogo, em Recife, terminou 3 a 1 para o Verdão. No segundo, em São Paulo, o inesperado: vitória de 2 a 1 do Náutico.
Ademir da Guia foi barrado do jogo por Mário Travaglini, que reprovou a ida do jogador ao Chile para buscar a noiva Ximena, que conheceu em Santiago de Chile, durante uma excursão do Palmeiras. Ademir, que adiara o matrimônio duas vezes, se casaria no dia seguinte ao confronto entre os times paulista e pernambucano. Mesmo assim, faltando 15 minutos para o término do jogo, Ademir entrou em campo e marcou o gol do Alviverde. No tira-teima do Maracanã, o Divino jogou desde o início, fez um gol e o Palmeiras saiu de campo campeão, com o placar de 2 a 0, sendo de César “Maluco” Lemos, o segundo tento.
Valeu o esforço de Ademir pelo casamento. No dia 23 de janeiro de 1969, nasceu Mirna, e, no ano seguinte, a 16 de fevereiro, Namir, o casal de filhos do primeiro casamento, com Ximena.
Muitos anos depois, Ademir casou-se novamente, em 1984, com Sueli Botelho Chimelo. De seu segundo matrimônio nasceu Ademirzinho, o filho caçula, que despontou nas divisões de base do Palmeiras e almejou o mesmo sucesso do avô e do pai no futebol.
Apesar do gosto pela terra natal, o Rio de Janeiro, Ademir mora até hoje no bairro de Perdizes, zona oeste da capital paulista. Chegou a ter cinco empregos, um deles o de vendedor de uma fábrica de um amigo, em Araraquara, e a treinar garotos no São Caetano e no Esporte Clube Sírio, por volta de 1989.
Poderia arriscar-se como técnico de futebol, mas o Divino optou pela política. Antes, porém, foi convidado para comandar a escolinha de futebol mantida pela Secretaria estadual de Esportes e Turismo de São Paulo, em 1991.
Em 2004, foi eleito vereador de São Paulo, mas, no ano seguinte, passou por um constrangimento fartamente repercutido pela imprensa.
Em setembro de 2005, Ademir foi acusado de reter parte do salário de funcionários de seu gabinete. O episódio, negado com veemência por Ademir, provocou seu afastamento do PCdoB, partido com o qual se elegeu em 2004 e para o qual foi levado por Aldo Rebello, palmeirense convicto, que anos mais tarde seria ministro dos Esportes do governo de Dilma Rousseff. Após o imbróglio de 2005, Ademir ingressou no PR para tentar se reeleger em 2008. Não conseguiu. Em 2010, insistiu, mas como deputado estadual, e novamente perdeu nas urnas.
Em 2012, tentou reingressar na política, candidatando-se a um cargo de vereador pela capital paulista. Conseguiu apenas 14.345 votos. Muito pouco para quem um dia arrastou multidões aos estádios de futebol, tornando-se, até hoje, uma unanimidade quando o assunto em pauta é sobre ídolos do Palmeiras.
Evidentemente que sua trajetória na política não se compara a das quatro linhas do gramado de futebol. Uma situação não pode servir de parâmetro para a outra.
Foi dentro do gramado que o Divino levantou muitas taças e entrou para a história do futebol brasileiro como um de seus maiores ídolos. Foram cinco campeonatos paulistas [1963, 66, 72, 74 e 76]; dois brasileiros [1972 e 73]; dois torneios Roberto Gomes Pedrosa [1967 e 69]; uma Taça Brasil [1967]; um torneio Laudo Natel [1972]; o torneio Mar del Plata de 1972; três vezes o troféu Ramon de Carranza [1969, 74 e 75]; um torneio Rio-São Paulo [1965] e o torneio IV Centenário da Cidade do Rio de Janeiro, em 1965.
Dentre todas as reverências já feitas ao gênio Ademir da Guia, a mais simbólica foi escrita pelo poeta João Cabral de Melo Neto:
“Ademir impõe com seu jogo
o ritmo do chumbo [e o peso],
da lesma, da câmara lenta,
do homem dentro do pesadelo.
Ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro,
impondo-lhe o que ele deseja,
mandando nele, apodrecendo-o
Ritmo morno, de andar na areia,
de água doente de alagados,
entorpecendo e então atando
o mais irrequieto adversário.”
Bravo, Divino! Bravo pela humildade que ostentou dentro e fora dos gramados. Bravo por — parafraseando o poeta Carlos Drummond de Andrade — rechaçar o “moderno” para transforma-se em “eterno”. Bravo, sim, por colocar o luxo em segundo plano. Não lhe saltava aos olhos carrões, seu sonho, disse uma vez a ex-esposa Ximena, era ter um simples fusca. “Há quem pague 400 mil cruzeiros por um Mercedes. Eu acho que é jogar dinheiro fora”, declarou o craque, que chegou a ter um Aero Willys 68 e um esporte SP-2, carro este que Ademir ganhou após um concurso entre os torcedores que o elegeram o craque palmeirense mais querido. Mas o Divino acabou mesmo, em 1989, mantendo um carro Gol 82.
Companheiro dentro de campo, Leivinha, que muitos gols marcou graças aos passes precisos do Divino, definiu-o bem: “Ele [Ademir] não é um jogador frio, nem um indiferente. É apenas um homem que guarda para si mesmo todas as emoções que sente.”
E assim, em suas irradiantes simplicidade e tranquilidade, construiu-se o maior ídolo de toda a história do Palmeiras: Ademir da Guia, o fleumático, o inabalável, o calmo, ou, simplesmente, o “filósofo” do time, como o chamava o grande amigo Dudu.
Eis o Divino, que ao completar 70 anos, em abril de 2012, declarou ao saudoso e querido repórter Geneton Moraes Neto preferir a glória em vida a uma lembrança fosca no futuro: “Quero ser lembrado hoje, gosto muito do presente”.
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