A MULHER COM O TERÇO NA MÃO
por Cláudio Lovato Filho

A mulher segura o terço debruçada na mureta da arquibancada.
É uma senhora.
Nossa, senhora!
Quanta fé!
Fé: crença incondicional, adesão absoluta.
Está nos dicionários, mas isso é o de menos; importa o que está no coração.
A mulher e suas mãos postas, com o terço entre elas.
A mulher, o terço e (é claro) a camisa do time.
Quanta paixão!
Paixão: sentimento intenso capaz de ofuscar a razão.
Definição lexicográfica que nem de raspão dá conta de explicar o que vai no coração.
Ah, minha senhora!
Ela assiste ao jogo sozinha; ao menos não há ninguém em torno dela.
Teria filhos? Teria netos? Não se sabe.
Talvez o pai tenha sido um torcedor fanático, um torcedor daquele tipo: torcedor de quatro costados.
Talvez o velho a tenha ensinado, talvez simplesmente tenha lhe transmitido pelo sangue (sem discursos, sem imposições); ao natural.
Talvez ela frequente estádios (o estádio, o seu estádio, o templo!) desde muito jovem, ainda criança.
Talvez ela tenha na mente a escalação completa de todos os times que conquistaram títulos para o clube do coração – e não foram poucos, os títulos!
E lá está ela: querendo que o jogo termine logo, porque a vitória é apertada, e, como toda vitória apertada, essa de hoje também não é amiga do cronômetro.
Acaba o jogo, ela abaixa a cabeça, e depois a ergue às alturas, para além, muito além das torres dos refletores, e as mãos de pele fina seguram o terço, e ela ajeita o cabelo e olha para o campo, de onde os jogadores, seus guerreiros, estão agora começando a sair, e ela então grita, aliviada, mas com a adrenalina ainda alta:
“Eita ferro! Ganhamos, meu Deus do céu!”
UMA MÁQUINA DE SONHOS
por Zé Roberto Padilha

O relógio do Mineirão marcava 44 minutos do segundo tempo. E o corner era a nosso favor. O placar mostrava Cruzeiro 1×1 Fluminense, em jogo pelo Campeonato Brasileiro de 1975. Paulo Cesar Caju, nosso camisa 8, foi batê-lo e ao notar mais homens de azul na grande área do que tricolores, gritou para eu encostar e tocar a bola.
Ali, na linha de fundo, junto à bandeirinha, para fazer o tempo passar. Até se esgotar. O empate fora de casa, a duas rodadas do fim do campeonato, já nos classificava. Esgotado por correr os 89 minutos naquele gramado fofo, da bendita grama esmeralda, recusei o convite e me plantei na intermediária.
A pressão do Cruzeiro era insuportável e certamente viria o contra-ataque após o corner. Não tínhamos um centroavante alto, Manfrini era pequeno e nem o Edinho, nosso melhor cabeceador, ousou se meter na grande área. Mas PC, que igualmente cansado, parecia nem ter forças para alçar a bola para lá, continuava berrando:
– Encosta aqui, ô juvenil!
Mesmo começando minha carreira e diante das ordens de uma velha raposa, felpuda e tricampeã mundial, resisti. E devolvi, lá de longe, da risca do meio campo:
– Joga essa po… pro abafa!
Contrariado, PC bateu o corner direto e a bola fez uma curva incrível e enganou o goleiro Raul, que caiu enroscado com ela dentro do gol. Um gol inesquecível, olímpico, garantira de vez nossa presença nas semifinais ao lado do Inter, Corinthians e do próprio Cruzeiro.
Dia seguinte, os méritos da nossa má criação foram transferidos para um tal Sobrenatural de Almeida, um personagem místico, criado por Nelson Rodrigues, tricolor e teatrólogo, que aparecia nas mais inusitadas conquistas
Pouco importava, era um garoto de Três Rios, torcedor do Fluminense, que dera um jeito de vestir sua bandeira. Fazer testes no infantil até jogar com a camisa histórica honrada por Lula, Gilson Nunes e Escurinho. E defender uma máquina de jogar futebol.
Félix, Roberto, Nielsen, Toninho, Zé Maria, Silveira, Assis, Abel, Edinho e Marco Antônio; Zé Mário, Carlos Alberto Pintinho, Cleber, Paulo César e Rivelino. Gil, Herivelton, Manfrini, Mário Sérgio….
E quando o juiz ia encerrar a partida, acordei. Que droga! Deveria ser mais um sonho de um candidato a jogador de futebol que despertara para a realidade de um funcionário público da Prefeitura de Três Rios.
Mal humorado, mal dei um bom dia aos meus filhos e um beijo na patroa, tomei correndo o meu café e saía batido quando observei um pôster da Revista Placar pendurado na sala.
E, quanta alegria, descobri minha foto entre eles, o Campeão Carioca de 1975. Fora mesmo um sonho sonhado.
Um sonho realizado de ter tido a honra de ser, de fato e na ponta esquerda, o motorzinho de uma Máquina de Futebol que deixou sua arte registrada na nossa história.
GOLEIRO DO TRI
por Elso Venâncio

Félix foi um dos heróis do tricampeonato mundial da Seleção Brasileira, em 1970, no México. Na época, os goleiros não tinham uma preparação adequada e eram muito criticados. Barbosa, Castilho, Gilmar, Manga, Leão, Taffarel, Marcos, Júlio César, Dida e outros como Félix, que atuaram na mais difícil e desafiadora posição do futebol, merecem ter o seu valor reconhecido.
Com apenas 15 anos, Félix Miélli Venerando já era profissional pelo Juventus da Mooca. Contratado pela Portuguesa de Desportos em 1955, ficou no Canindé por 15 anos e teve quatro convocações para a Seleção Brasileira. Para tirá-lo da Portuguesa, o Fluminense abriu os cofres, pagando 150 milhões de cruzados em julho de 1968. Antes, contratou Samarone, então com 18 anos, da Portuguesa Santista, desembolsando 80 milhões. O Santos tinha adquirido junto ao Fluminense o jovem lateral Carlos Alberto Torres, por 200 milhões, numa transação que foi a maior do futebol brasileiro.
Félix estava com 31 anos quando conquistou o seu primeiro título carioca, em 1969, sob comando do técnico Telê Santana. Na final, seu Fluminense derrotou o Flamengo por 3 a 2, com Flávio Minuano marcando o gol decisivo. Um time vencedor se formava nas Laranjeiras. Não à toa, foi campeão brasileiro em 1970, no campeonato mais difícil da história, com os tricampeões mundiais jogando no país. Era um time tricolor histórico, com Félix; Oliveira, Galhardo, Assis e Marco Antônio; Denilson e Didi; Cafuringa, Samarone, Flávio Minuano (Mickey) e Lula. Mostrando sua força, o clube ainda conquistou o Campeonato Carioca em 1971, 1973, 1975 e 1976, e a Taça Guanabara em 1969, 1971 e 1975; além de importantes torneios internacionais, como o de Paris e o Ramón de Carranza.
Ídolo do Fluminense, Félix tinha o apelido de “Papel”, por ser magro e ágil, voando para fazer grandes defesas. Tinha 1,76m de altura, o que dificultava as suas saídas nas bolas altas. Porém, compensava a baixa estatura com coragem e eficiência embaixo do gol. Pelo Brasil, foi uma das feras de João Saldanha na campanha das Eliminatórias para a Copa de 70, sendo mantido por Zagallo, que substituiu Saldanha faltando menos de três meses para o Mundial.
O esquadrão comandado por Pelé encantou o mundo, vencendo todos os seis jogos disputados. Diante dos ingleses, na época os campeões do mundo, Félix se destacou com defesas arrojadas. Ele e a Seleção Brasileira foram coroados na finalíssima, com vitória por 4 a 1 sobre a Itália, gols de Pelé; Gérson, Jairzinho e Carlos Alberto. Mais de 100 mil mexicanos presenciaram a história sendo escrita no Estádio Azteca.
Eternizado como um dos grandes do futebol brasileiro, Félix faleceu em agosto de 2012, com 74 anos, em São Paulo, vítima de embolia pulmonar.
UMA CAMISA CÚMPLICE DE TÍTULOS
por Zé Roberto Padilha

Uma coisa é você ser torcedor de um clube que, vira e mexe, mereça ou não, se torna campeão. Um time que tem cumplicidade com os títulos.
Outra é você conseguir um lugar no seu time, e assistir, de perto, no banco de reservas, ele alcançar a mais improvável das conquistas, que foi o de campeão carioca de 1971.
O Botafogo, então assíduo fornecedor de craques para a seleção brasileira, um ano após Brito, Roberto Miranda, Jairzinho, Gerson e Paulo Cesar Caju alcançarem o tricampeonato, disparou na liderança do estadual carioca.
Abriram um mundo de pontos à frente do segundo colocado e o jornalista Raul Quadros, do Placar, convenceu PC a posar com a faixa de campeão com rodadas de antecedência. E ele o fez.
Só esqueceram da soberba, que é própria. Não do Botafogo, mas do ser humano. E do Fluminense, o então distante segundo colocado, e sua camisa sobrenaturalmente poderosa. E o Botafogo foi se perdendo nas últimas rodadas. Com todo respeito, até o Bonsucesso lhe concedeu insucessos.
E fomos para a última rodada com o Botafogo ainda em vantagem por jogar pelo empate. E aos 38 do segundo tempo, Ubirajara Motta, goleiro alvinegro, foi abalroado dentro da pequena área por Marco Antônio (foto) após a cobrança de um corner. Só o árbitro não viu.
A bola sobrou para nosso ponta esquerda, o Lula, que a colocou no fundo das redes. Não tinha VAR e o juiz foi perseguido até o túmulo pela torcida alvinegra.
Quando pego essa faixa, Campeão da Guanabara 1971, em meio às minhas recordações, não penso que ela foi imerecida. Estava no banco e tinha jogado toda a Taça Guanabara e meu time não tinha nada a ver com a soberba. Nem com a falha do juiz.
Era apenas uma outra prova, naquela ocasião, já como jogador, da intimidade com que o Fluminense historicamente tem com suas conquistas.
CHOREMOS POR NEYMAR
por Marcos Fábio Katudjian
Nos últimos dias, surgiu uma polêmica acerca de Neymar. Mais uma.
O narrador chorou ao falar dele. O comentarista rebateu, disse que aquilo era absurdo, ridículo. Se pegaram nas redes sociais. Pilantra pra cá, bebê chorão pra lá.
E, no meio, Neymar.
E a pergunta: quem é Neymar?
Para muitos, um sujeito que não levou a profissão a sério. Mas, para outros que o tiveram perto de si – como Muricy, técnico durão, sem meias palavras –, ele é um dos melhores profissionais com quem já trabalharam.
Difícil saber quem está certo ou errado. O fato é que o “menino Ney” envelheceu. Com 33 anos, está bem próximo da aposentadoria. A questão é saber se ela já não deveria ter acontecido.
Minha opinião? Seu talento é o maior dentre todos os seus contemporâneos. Sim, maior que Lionel e Cristiano. Seu talento é similar ao do maior jogador brasileiro de todos os tempos, Garrincha. (Sim, porque Pelé não se compara com nada.)
Algo que não é só minha opinião, mas um consenso: ele foi muito aquém do que poderia.
Se há algo que justifica o choro do narrador – e o nosso – é isso. Neymar nos desperta algo mais profundo e talvez inconsciente: o fato de ser um símbolo perfeito para o Brasil. O país do futuro, que simplesmente não chegou lá. Nem perto.
Talvez mais doloroso ainda seja perceber que nossos próprios sonhos particulares irrealizados, projetados em Neymar, refletem bem a vida como ela é.
Então é isso. O Brasil tem o craque que merece. E está tudo certo.
Mas, mesmo assim, é triste.
É triste, mas não é o fim. Ainda há futuro. Pequeno, muito menor agora, mas há futuro.
Ainda há vida.
E, se há vida, há esperança – que é a última que morre.
E o choro, quem sabe, talvez seja a emoção necessária para a redenção tardia.