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OS IRMÃOS DA BOLA

24 / janeiro / 2018

Por Marcos Vinicius Cabral

A música “Assim Sem Você”, composta por Abdullah e Cacá Moraes, se tornou um dos grandes hits da dupla gonçalense Claudinho e Buchecha, que por força do destino, chegou ao fim em virtude do acidente automobilístico que vitimou Buchecha, na noite de 13 de julho de 2002, na Rodovia Presidente Dutra, em São Paulo.

A dupla de músicos que conhecia como poucos as riquezas nascidas do outro lado da poça, certamente teria incluído na letra da bela canção os nomes de Flávio e William, a dupla de boleiros que mais esteve em evidência e fez história em Niterói, nos anos 80
.
Nascido no Barreto, em Niterói, Flávio Henrique Cordeiro de Oliveira iniciou a paixão pelo futebol ainda pequeno, e quando chegava o Natal, colocava na janela de seu quarto uma meia com seu pedido em um pedaço de papel mal escrito:


Flávio exibe seu troféu

“Papai Noel, fui um garoto obediente, passei de ano e, por causa disso, te peço uma bola de futebol de presente”, dizia o bilhete que era repetido todos os finais de ano.

A adoração ao bom velhinho se estendeu nas idas ao Maracanã e despertou no garoto, então com 10 anos, um sentimento que nutre até hoje pelo clube das Laranjeiras:

– A paixão pelo Fluminense foi crescendo com meus pais levando eu e minha irmã para assistirmos a chegada do Papai Noel de helicóptero e mais tarde aos jogos do Fluzão – diz hoje o tricolor com 46 anos.

E como torcedor do clube das três cores que traduzem tradição, escolheu Rivelino – um dos maiores jogadores do futebol brasileiro – para ídolo:

– O cara era tão bom que arrumaram um lugar para ele jogar na seleção de 70 – confidencia sempre aos amigos mais chegados nas resenhas de futebol regadas a muita cerveja e tira-gosto.

Se o criador do elástico – drible até hoje imortalizado pelo bigodudo camisa 10 tricolor – seria outra paixão avassaladora na vida do garoto ruivo de olhos esverdeados, seus pais, seu Joseir e dona Alcely, jamais ousariam imaginar que o filho se transformaria em um habilidoso meia niteroiense.


O artilheiro William

Não muito distante dali, William Neves, nascido no Cubango, também em Niterói, dava seus primeiros chutes em uma bola na rua Visconde do Uruguai, centro da cidade onde morava: 

– Lembro que aos domingos fechávamos a rua para jogar futebol. Nossos pais, sentados com suas cadeiras de praia nas calçadas eram para nós a torcida! – diz lembrando que recebia abraços de seu Evani e dona Tânia nas invasões ao “campo asfáltico” para comemorar cada gol marcado.

Com apenas 7 anos de idade, ia com a família toda ao Maracanã não para ver o bom velhinho, mas para ver os jogos do Vasco, clube de coração.

– A paixão pela instituição Vasco da Gama começou desde cedo quando convivíamos com Roberto Dinamite e outros grandes ídolos, já que meu pai era sócio benemérito do clube – diz o apaixonado cruzmaltino hoje com 47 anos.

Mas o início de ambos seria em lugares completamente diferentes.

Enquanto William com 10 anos disputava o campeonato mirim de futsal em Niterói, defendendo as cores tricolores do Fluminensinho da Fuscaldeza, Flávio treinava com Jair Marinho – considerado o maior garimpador de talentos da região – no Combinado Cinco de Julho, no Barreto.


Mas se a bola os tornaria amigos inseparáveis, não foi através dela, e sim dos livros, que iniciariam a amizade em 1982, no Colégio Estadual Henrique Lage, na 5ª série, na sala 501.

Com o passar dos anos, começaram a escrever seus nomes com letras maiúsculas por onde jogariam, solidificando com isso a relação amigável, quando viraram vizinhos no Barreto.

Dali por diante, seus nomes começariam a ser notados pelos moradores, amigos, parentes e os que passaram a acreditar que aquela dupla poderia “vingar” no futebol.

Em 1985, com 14 anos, Flávio era destaque do Fluminense nos treinos nas Laranjeiras, mas em virtude do horário das aulas do colégio, teve que parar e voltar meses depois.


Como prova de que voltaria, recebeu uma carteirinha (foto) que lhe permitia livre acesso as dependências do clube.

Voltou mas teve que ser reavaliado em Xerém, numa peneira com mais de mil garotos.

Desse número exorbitante de meninos que sonhavam em ser jogador de futebol, passou com sobras com mais quatro, sendo um deles um certo Edmundo, que acabou indo para o Botafogo e anos mais tarde se tornaria um dos maiores jogadores da história do Vasco.

Já William, viveria de 1984 a 1987 em São Januário, marcando gols e conquistando respeito até o dia em que foi mandado embora por Isaías Tinoco, que era o supervisor das categorias de base.

– Tudo não passou de uma brincadeira de mau gosto dos outros jogadores, que me trancaram no banheiro e como o treino estava prestes a começar, tive que arrombar a porta! – lembra, ciente do erro.

Como toda ação gera uma reação, o supervisor vascaíno ameaçou dispensar todos os jogadores caso não aparecesse quem havia feito aquilo.

– Acho que assumi meu erro, mas não podia ficar sem treinar. Além do mais, não poderia deixar que inocentes fossem desligados do clube por minha causa! – ressalta o ex-camisa 9 dos juvenis.

Se Fluminense e Vasco não souberam valorizar duas jóias raras como Flávio e William, eles seguiram na estrada da vida sem olhar no retrovisor a mágoa que ficou no passado, nos clubes de seus corações.

A vida passava celeremente e nos campos do bucólico bairro do Barreto, de 1986 a 1987, ganharam todos os festivais assim como torneios que disputaram.

Tornaram-se a sensação do 1º campeonato do Ceclat (já extinto), jogando pelo Pouca Rola Futebol Clube, onde imortalizaram as camisas 9 e 10.

Não seria, de forma alguma, a primeira e tampouco a última vez que jogariam juntos, enfrentando arquirrivais como Viradouro, Flor do Campo, Unidos do Barreto, Grêmio, Pirata e todas, sem exceção, consideradas grandes equipes.

Um terceiro lugar para uma equipe estreante, modesta e recheada de garotos, valeu mais que um título, naquela competição em 1988.

O sucesso da “Dupla Infernal” dentro das quatro linhas, acabou rendendo para cada uma moção de aplausos concedido pela Câmara Municipal de Niterói, datada em 11 de setembro de 1988 e assinada por Roulien Pinto Camillo, então Secretário Municipal de Esporte e Lazer.   

No ano seguinte, enquanto Flávio continuava encantando a todos com seu futebol vistoso no terreno de terra batida dos campos niteroienses e buscando um lugar ao sol em algum clube do Rio, William se aventurava destemidamente pela região serrana do Estado.

Para o centroavante da camisa 9, O difícil não foi ficar longe da família e dos amigos para obter a aprovação nos testes em 1990, foi ouvir de um dos Diretores que mesmo aprovado no Friburguense Atlético Clube, o clube dispensaria toda categoria juniores por estar encerrando suas atividades.

– Lembro-me até hoje daquele menino alto, magro e com uma qualidade técnica impressionante. Eu estava começando minha carreira no Friburguense, onde o indiquei para treinar. Uma pena não ter sido profissional! – lamenta o amigo e ex-jogador Pires, que fez muito sucesso no Fluminense no início da década de 90.

Apesar do golpe desferido pelo destino, regressou ao Barreto para vestir a camisa 9 que sempre foi sua e ajudou o Pouca Rola na conquista do título, que seria inédito na sua curta mas marcante história.

Na disputa do 5º campeonato do Ceclat,  com uma equipe mais técnica e com contratações que proporcionavam aos torcedores a certeza da conquista daquele caneco, sucumbiram para um Grêmio desacreditado em pleno Combinado Cinco de Julho.

Como todo grande time tem suas vulnerabilidades, o Pouca Rola não seria exceção.

Resultado: em um contra-ataque fulminante, o habilidoso e endiabrado Guina fez o gol que classificou a equipe para a final.

– Aquele time foi um dos melhores que joguei. Mesmo sem ter vencido nenhum campeonato e ter durado apenas 5 anos, até hoje é lembrado por todos no bairro! – relembra o camisa 8 Lito.


E completa:

– Flavinho e William foram, sem sombra de dúvidas, os maiores com quem tive o privilégio de jogar. Os caras eram foras de série. Só lhes faltou um título pelo Pouca Rola”.

Se os deuses do futebol castigam grandes jogadores com algumas derrotas, Flávio e William souberam absorver como uma ostra as toxinas dos insucessos do mundo da bola.

E foi na Ilha da Conçeição, em Niterói, que depuraram essa falta de títulos no Barreto em vitórias no campo do Azul e Branco.

Não baixaram a cabeça e vestiram a camisa do Embalo Futebol Clube e foram tricampeões nas temporadas 91/92/93.

Ainda nesse período, Flávio já era jogador profissional, depois de passagens por Mesquita, São Cristóvão, Bangu e acabou sendo federado pelo Canto do Rio Foot-Ball Club, onde o canhotinha Gérson deu seus primeiros lançamentos no futebol.

Como o clube niteroiense era patrocinado pela Prefeitura da cidade, chegou uma época que a parceria foi desfeita e seus jogadores receberam passe livre.

Em virtude desse acontecimento, um empresário levaria Flávio para jogar em Portugal mas o craque da camisa 10, que driblava os adversários com extrema facilidade, foi marcado em cima por um adversário inimaginável: uma hepatite! 

Se recuperou mas teve logo depois uma grave contusão no ligamento do tornozelo esquerdo ocasionada pelos carniceiros implacáveis.

Abandonou o futebol, mas o futebol não o abandonou.

E seu companheiro William, amuado com as artimanhas do destino, trocava os pés pelas mãos e iniciava sua carreira como compositor de samba-enredo.


Equipe do Tá Mole Mas é Meu

A química entre os dois era tanta que ainda deu tempo de, anos mais tarde e já com alguns fios de cabelo branco à mostra, conquistarem o título do primeiro campeonato de veteranos jogando pelo Tá Mole Mas é Meu.

Hoje, a bola com que tanto conviveram e os transformaram em lendas em Niterói é coisa do passado.

Mas não para nós que adoramos contar história de quem realmente tem algumas para nos contar.

 O Museu da Pelada promoveu o encontro desses dois monstros das peladas daqui, do outro lado da poça como os cariocas chamam.

E foi na quadra da escola de samba Tá Mole Mas é Meu, no bairro do Fonseca, onde William – presidente e  funcionário municipal -, ao lado de Flávio – supervisor de manutenção de uma empresa marítima -, me recebeu para reviver causos que só esse esporte maravilhoso chamado futebol pode proporcionar.

E, sobretudo, foi uma viagem insólita em uma tarde inesquecível onde resgatei histórias desses dois grandes jogadores e amigos que a bola me deu.

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