Escolha uma Página
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Paulo Oliveira

DNA RUBRO-NEGRO

por Paulo Oliveira


Quantos clubes de futebol brasileiros tiveram quatro irmãos defendendo suas cores em campo, sendo todos eles torcedores desse time? Essa conjunção rara ocorreu entre o final da década de 1950 e todos os anos 1960, no Esporte Clube Vitória. A família Gonçalves cedeu Kleber Bubu, Romenil, Itamar e Carlinhos e fez história no rubro-negro baiano.

Ontem, o zagueiro Kleber Bubu, 78 anos, foi sepultado no cemitério Campo Santo, no bairro da Federação, em Salvador (BA). Ele morreu de insuficiência respiratório após sofrer por 19 anos com sequelas de um acidente vascular cerebral.

Bubu iniciou a carreira com breve passagem pelo Bahia, mas logo foi para o time de seu coração. Teve três passagens pelo clube na década de 1960, tendo se tornado campeão do Torneio Início, em 1961, quando tinha 19 anos. A última atuação ocorreu em 1968

Jogou ainda pelos dois times rivais de Ribeirão Preto (SP): Comercial e Botafogo. De volta a Salvador, atuou, em final de carreira, pelo Botafogo BA e pelo Monte Líbano, extinta equipe do subúrbio ferroviário.

Dos quatro irmãos, o que mais se destacou foi o também zagueiro Romenil Arestides Gonçalves Filho, 76 anos, considerado o maior zagueiro da história do rubro-negro baiano, e o único dos Gonçalves ainda vivo. Ele começou no time reserva do Leão, enquanto o irmão Carlinhos era da equipe titular.

Adoentado, Romenil não compareceu ao enterro de Kleber Bubu, que deixa viúva, um filho – o jornalista Kleber Leal, torcedor apaixonado do Bahia – e duas filhas.

Já o centroavante Carlinhos Gonçalves iniciou a carreira na divisão de base do Vitória. Posteriormente, atuou pelo São Cristóvão (BA), América (RJ), Bonsucesso (RJ), Fluminense (RJ), Internacional (RS), Galícia (BA), Sergipe e Botafogo (BA).

Carlinhos estava consagrado quando chegou ao Bahia em 1969. Dois anos depois, fez história, marcando um gol de cabeça, mesmo com ela enfaixada após um choque com um adversário. E, em seguida, marcou o gol da virada sobre o Botafogo (BA), que deu o título estadual ao tricolor. O atacante morreu em 2005, aos 65 anos, de diabetes.

O quarto irmão, o ponta esquerda Itamar morreu em acidente de automóvel. A assessoria do Vitória informou desconhecer outro clube por onde ele tenha passado.


A ÁRBITRA DE ITAMBÉ

por Paulo Oliveira

O jogo de futebol feminino entre as equipes de Itambé e Campinarana, localidade que deu origem ao distrito de Nova Brasília, em Ribeirão do Largo, no sudoeste baiano, estava praticamente decidido. A equipe da casa vencia por 5 a 2.

De repente, as atenções se voltaram para a arquibancada, onde uma senhora de 64 anos batia com o guarda-chuva em um torcedor. Em campo, uma das jogadoras da equipe visitante chutou a bola para fora quando viu que o envolvido na confusão era seu parente. Queria parar o jogo.


A jovem árbitra Thide Lira, com apenas um ano de experiência, levou um susto ao ver a mãe, Naete, conhecida em toda cidade como dona Nai, atacando o sujeito, mas deu prosseguimento à partida. Outros torcedores intervieram e apartaram os antagonistas.

Logo que a disputa terminou com o placar de 7 a 2 para o time da casa, Thide foi até dona Nai para saber o que aconteceu. Descobriu que sua principal incentivadora não gostou de ouvir o rapaz gritar que Thide “precisava de um homem para mostrar o que a mulher tem que fazer”.

O torcedor ainda se atreveu a falar “que lugar de mulher era em casa e não em campo de futebol”. Isso mexeu com os brios de dona Nai, amante do esporte, torcedora apaixonada pelo Flamengo, que levava a filha desde os oito anos para ver jogos de futebol no estádio Osorão:

– A cena se repetiu muitas vezes até que aprenderam que quando minha mãe estava na arquibancada não podiam falar mal de mim. Se me xingassem ou criticassem, ela batia com o guarda-chuva e chamava de machista. Minha mãe me ensinou que lugar de mulher é onde ela quiser estar – conta a ex-lateral direita e única árbitra da Liga Amadora de Itambé.

BOLA ROLANDO

Thide Lira Brito cresceu jogando “babas” nas ruas, quadras e campos da cidade natal. Mudou-se para o Rio de Janeiro aos 13 anos e para Belo Horizonte aos 17. Na capital mineira, obteve vaga no programa “Meu Primeiro Emprego”, passando a trabalhar na empresa “Só Telas”, a qual mantinha um time de futebol masculino.


Com a desculpa que a disputa era violenta e a adolescente poderia se machucar, os colegas, apesar dos insistentes pedidos, não a deixavam jogar. Um dia faltou um jogador e Thide, acompanhando o jogo com o rosto colado na grade, foi convocada. Não saiu mais. Com 1,67m e 50kg, virou titular e ria quando os adversários gritavam “quebra a sequinha”.

A vida seguiu. Tide teve filha, casou, teve outra filha, mas não largou o futebol. Em 2002, voltou para Itambé e encontrou um cenário desolador: as equipes e a seleção feminina não existiam mais.

A falta de atividade esportiva colaborava para uma grande mazela: a prostituição. Um grupo de meninas ficava à beira da BR-415 (Ilhéus-Vitória da Conquista) à espera de caminhoneiros. Thide resolveu mudar aquela situação.

O primeiro passo foi encontrar apoio. Se uniu a um professor de educação física, chamado Luiz, para reativar o futebol feminino de quadra e de campo. Depois, conversou com as garotas. Como encontrou resistência, pois era a forma que elas tinham de conseguir alimentos para as famílias, procurou os pais das adolescentes. Ofereceu cesta básica e atividade física para quem deixasse de se prostituir, mesmo sem ainda ter recursos.

Com o promotor de Itambé, a conversa não avançou muito. Ele sugeriu que o projeto de Thide fosse feito através de uma instituição.

– Poucos comerciantes daqui ajudaram.. O que mais eu ouvia era que as meninas não queriam abandonar a prostituição. Parti, então, para Vitória da Conquista e consegui 80 cestas básicas. Além da família das jovens, cadastrei pessoas carentes! – recorda.

A prefeitura foi o último local a ser procurado:

– Eu não apoiava o prefeito, por isso demorei quase dois anos para falar com ele. Estava com medo de ser mal recebida. No entanto, para minha surpresa, ele foi bem receptivo. Forneceu material esportivo e bolas. Eu e o Luiz começamos então a tocar o projeto a pleno vapor! – conta.

Vinte e três meninas, inclusive as seis que antes se prostituíam, se inscreveram na equipe do Manchester de Itambé. O time também atuava como a seleção da cidade nas categorias de futsal e futebol de campo. Os bons resultados apareceram e o grupo ganhou fama, mas aí mudou o prefeito. O novo gestor retirou o apoio e o projeto, mantido por teimosia, entrou em declínio.

MUDANÇA DE RUMO


Thide acumulava as funções de coordenadora e de atleta do Manchester até machucar o joelho e fazer cirurgia.

– Parei de competir. Isso me deu uma tristeza enorme. Como é que eu ia ficar longe do que mais gosto? Tentei ser técnica, mas não deu certo. Fui convidada para ensinar handebol na AABB. Eu jogava, mas não gostava tanto do esporte. Aí surgiu o curso de arbitragem da Federação Baiana de Futebol! – relata.

O incentivo para participar da formação veio de Edmundo Gonçalves, presidente da Liga Amadora de Itambé e administrador do estádio Osorão. Nessa época, Thide Lira trabalhava na biblioteca da Universidade do Sudoeste da Bahia, em Vitória da Conquista, a 58 km de distância, cobrindo a licença de uma amiga. Nos fins de semana, Thide apitava e bandeirava jogos de várzea, organizados pelo dirigente, e ouvia elogios.

– Ela mostrava que tinha jeito para a arbitragem! – afirma Edmundo.

Um amigo carioca de um mais um empurrão. Presenteou-a com um livro sobre arbitragem, devorado rapidamente. Outra providência da aluna passou a observar atentamente a atuação dos juízes em jogos ao vivo e pela televisão.

– Em 2005 fiz o curso. Eu era a única mulher da turma que tinha 11 homens. O professor foi o Luciano, da federação baiana. Ele só deu aula teórica, mesmo assim o Edmundo confiou em mim e me escalou para bandeirar jogos na região. – diz.

Os árbitros veteranos receberam bem a nova colega. Betinho, Nelson e Marcão faziam elogios e lhe deixavam confiante. Se tudo corria bem entre os juízes, nem sempre as coisas saíam como ela esperava do vestiário para fora, principalmente, em jogos disputados em outras cidades, onde o grande adversário era o preconceito.

Quando Thide chegava para trabalhar, dirigentes, representantes das prefeituras e jogadores achavam que ela era mulher de um dos árbitros. Era comum perguntarem – sempre se dirigindo aos homens – quando o quarto juiz ia chegar. Em Itapetinga, município vizinha, escalada como árbitra principal nos jogos de várzea cansou de ouvir: “Hein professora, vamos ver a merda que a senhora vai fazer”.

PROVOCAÇÕES E NUDISMO


Na função de quarto árbitro, Thide tem que entrar nos vestiários das equipes para pegar a assinatura dos jogadores e saber a cor dos uniformes que jogariam. Em uma dessas vezes, bateu na porta, avisou que ia entrar e mesmo assim deu de cara com um jogador pelado:

– A primeira vez que isso aconteceu eu fiquei…, a prancheta tremia. Foi aqui em Itambé. O rapaz trabalhou comigo na Azaléa (fábrica de calçados), era casado. Fiquei constrangida. Tinha feito o curso da federação, mas, como disse, só tive aulas teóricas. Quando retornei tremendo para o vestiário dos árbitros, Marcão e Samarone me tranquilizaram. O Marcão me deu um conselho que sigo até hoje: “Na hora de entrar, se tiver um negão nu, faz de conta que é uma negona e pronto.” – revela.

Com o tempo, os incidentes diminuíram. Há, porém, atletas sacanas que ficam pelados de propósito para desconcertar as mulheres da arbitragem. Em Poções, a cerca de 130 km de Itambé, Thide foi chamada para trabalhar em um jogo e ajudar no treinamento de uma futura colega.

– O rapaz foi extremamente grosseiro conosco. Ele era o capitão do time e apareceu nu para assinar a súmula de propósito. Depois, olhou para mim e disse, ironicamente: “Só isso?”. Olhei para o órgão sexual dele e revidei do mesmo jeito: “Só isso?”. Os outros jogadores deram gargalhadas.

Na saída do vestiário, a árbitra teve ímpeto de pedir desculpas. Pensou melhor e concluiu que o jogador é quem deveria se desculpar.

– Quem faz isso está acostumado a diminuir a mulher que tem na família. O homem que valoriza a mulher, independente do trabalho que ela tenha, não vai querer te deixar sem graça, te expor ao ridículo! – acredita Thide, criada com sete irmãs e um irmão e mãe de Rayssa e Hanna e avó de Piettra Anthônia.

Depois do jogo, um dirigente do clube se desculpou pelo comportamento inadequado do atleta.

ESCOLTA POLICIAL


 Uma decisão na cidade de Planalto, próxima de Vitória da Conquista, também marcou a carreira da juíza de futebol. Ela e dois outros colegas foram contratados para atuar na final de um torneio, no qual o time da casa jogava pelo empate. Nos acréscimos, o árbitro principal marcou um pênalti e o título foi para o visitante.

– Veio todo mundo para dentro de campo, para cima dos juízes. Eu não, mas os outros colegas foram empurrados. Tivemos que sair escoltados pela polícia. O juiz principal não tomou nem banho, saiu de uniforme mesmo. Os policiais nos escoltaram por cerca de meia hora na estrada até ter certeza que nada aconteceria. – relembra

Em 2008, Thide voltou a morar em Belo Horizonte. Fez curso de reciclagem na federação mineira e passou a atuar nos bairros da capital mineira e em cidades da região metropolitana. Perdeu as contas das vezes que ouviu que baiana só entendia de acarajé e que foi xingada por ser mulher e nordestina.

JOGADOR APAIXONADO


Edmundo e Thide

Uma árbitra passa por momentos surpreendentes em sua carreira. Durante o campeonato de seleções do interior da Bahia, um atleta de Itapetinga, chamado Henrique, a pediu em namoro no campo. Diante da torcida, ajoelhou e disse que só iria para o vestiário se ela o aceitasse.

Thide ficou mais surpresa do que no dia em a mãe dela bateu em um torcedor:

– Pense na situação. Eu o conhecia de outros jogos. Muita gente sabia que ele faria aquilo, menos eu. Para contornar o caso, falei que depois do jogo conversaríamos. – conta a juíza, que não aceitou a proposta do atleta.

Ao retornar para Itambé pela segunda vez, em 2010, Thide começou um relacionamento. No início do namoro, Tiago sofreu um acidente: o caminhão em que estava perdeu o freio e desceu de ré do alto de uma ladeira. O motorista do veículo morreu e o namorado da árbitra ficou tetraplégico. No hospital, o rapaz pediu para que Thide cuidasse dele. A vida da ex-jogadora sofreu uma guinada e ela se afastou da arbitragem.

Depois do falecimento de Thiago, a árbitra não se sentia segura para voltar aos estádios. Mais uma vez, Edmundo Pereira, o presidente da Liga de Itambé, teve um papel importante na vida da juíza, que tinha deixado de fazer as reciclagens exigidas pela federação e se desfez dos uniformes, chuteiras e acessórios (cartões e apito).

Em 2018, Edmundo voltou a escalar Thide Lira como quarta árbitra até que ela faça a atualização e possa voltar a ser pelo menos bandeirinha. Atualmente, as funções dela são verificar a cor dos uniformes para que os times não entrem com roupas iguais e para definir o padrão a ser usado pelos árbitros; recolher as assinaturas dos atletas na súmula; fiscalizar os bancos de reservas para que não sejam ocupados por jogadores expulsos e pessoas não credenciadas e assumir a posição do bandeirinha, que vai para a linha de fundo, quando um pênalti é marcado.

– Agora que voltei vi que ser árbitra está no meu sangue. Não quero mais parar.

TORCIDA CURIOSA

A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) recomenda que quem vai apitar até mesmo jogos de várzea organizados pelas ligas deve comparecer ao local de trabalho com roupa social.

– Tem horas que pareço  executiva. – compara Thide.

A questão da troca de roupa povoa a curiosidade dos torcedores. O vestiário da arbitragem é único, com um cômodo para banho e troca de vestimenta. Os moradores de Itambé não se cansam de perguntar como Thide procede. Às vezes, ela faz mistério.


Na verdade, as mulheres usam malhas por baixo da roupa e se trocam rapidamente no banheiro. A quarta árbitra é a primeira a sair do vestiário para cumprir as obrigações que tem antes do jogo começar. O fato de dividir o vestiário com os colegas, incomoda muitos homens. Um namorado terminou com Thide porque não se conformava com a existência do vestiário único.

Os juízes também sofrem pressão por causa do times que torcem. A árbitra de Itambé é flamenguista, mas não teve como esconder a paixão por um time do município:

– Quem trabalha na arbitragem tem de ter uma ética danada. Eu tenho um time do coração. Todo árbitro do interior tem. Já trabalhei em jogo dele e não facilitei. Muita gente sabe por quem eu torço aqui porque ia ver os jogos quando me afastei da função. Só o que acontece? Em momento algum favoreço ele. Eu te levo para conversar com jogadores e dirigentes de todas as equipes para que digam se eu tive alguma atitude contrária ao que estou afirmando.

REMUNERAÇÃO

O quarto árbitro, antigamente chamado de mesário, recebe R$ 50 (ano passado era R$ 70) por jogo do campeonato municipal; os bandeiras, R$ 75, e o juiz principal, R$ 150. Quando são escalados para atuar em outras cidades, a liga local ou a federação também fica responsável pelas despesas com transporte, hospedagem e alimentação.

Thide atuou em sete jogos do campeonato municipal em 2018. Mesmo quando não está escalada, comparece ao Osorão para ajudar Edmundo e os meninos, forma carinhosa como chama os outros juízes. É uma espécie de “Severino Faz Tudo”, inclusive providencia o lanche da arbitragem – refrigerante, salgado, frutas e água à vontade.

A competição será decidida entre Santana e Paysandu, no próximo domingo (20/05). A mesma final de 2017. Thide está escalada como quarta árbitra. O ingresso dos jogos custa R$ 5. Na reta final, o número de pagantes chega a 1.900. Em uma cidade com poucas opções de lazer, a magia do futebol é a salvação.

CLAUDINHA PERIGO

por Paulo Oliveira, do site Meus Sertões


No campo de batalha, a mais valente das soldadas transforma o perigo em uma sensação maravilhosa que só quem está dentro do fogo é capaz de sentir. Faísca, chamas e explosões fazem Claudia Regina Damacena dos Santos ganhar mais coragem. Ela se joga no chão, levanta, deixa as bombas explodirem na mão. Os riscos a libertam da dureza dos dias em que não está vestida com a farda do Forte Humaitá, mostrando suas habilidades. É ela que atrai um número maior de fãs no São João da cidade de Barra, na Bahia, às margens dos rios São Francisco e Grande.

Claudinha Perigo, como é conhecida, carrega no peito duas cruzes. Uma delas, presa a um cordão, mandou pintar nas cores verde e amarela, a mesma da Agremiação Folclórica Humaitá, fundada em 1892, e que serviu para unificar a tradição de “comer fogueira” com um evento histórico, a Guerra do Paraguai, onde seus conterrâneos lutaram.


A outra cruz está dentro, perto do coração, e é vermelha. Desde que viu pela primeira vez, pintada em uma caravela em uma camisa preta e branca se apaixonou a ponto de transpô-la para sua alma. E mais tarde para o corpo, tatuando o escudo do Vasco na perna; para o vestuário e para casa, onde exibe lençóis, toalhas e o que mais lembrar o time carioca, que nunca viu jogar em um estádio e não consegue acompanhar na televisão porque o sinal de seu aparelho é fraco.

FORTES E BATALHAS

Para entender melhor a saga de Claudinha é preciso voltar no tempo. O ex-presidente, melhor seria dizer comandante, e mestre fogueteiro do Humaitá, Francisco dos Santos, o Chiota, conta que no século XVIII, Barra celebrava a fartura das colheitas acendendo fogueiras, tradição criada pelos franceses e trazidas para o Brasil pelos portugueses.

Na cidade, os produtos da roça eram amarrados em galhos de árvores, fincados no chão. Em torno deles fazia-se uma fogueira. Quando o fogo derrubava o galho, os organizadores e seus familiares, avançavam para pegar milho, batata-doce, frutas e até dinheiro que estavam presos na ramada. Esta brincadeira era chamada de “comer fogueira”.


Paulo Oliveira e Claudinha Perigo

Ocorre que alguns espertos passaram a saquear os galhos antes das fogueiras derrubá-los. Desta forma passaram a “comer fogueira no cru”. Quando as famílias resolveram se defender, colocando homens com porretes para evitar o furto das prendas, os saqueadores criaram uma estratégia para burlar a segurança: dividiram-se em dois grupos. O primeiro soltava buscapés na direção dos protetores dos galhos, enquanto o segundo pegava os produtos.

Em 1890, o major-médico Augusto César Torres, barrense que participara da Guerra do Paraguai, assim como os 29 voluntários da pátria,  80 integrantes da Guarda Nacional lotados no município e dezenas de pessoas alistadas à força, testemunhou uma disputa na fogueira da influente família Araújo e comparou o fato a uma batalha:

– Tanto fogo assim, só se viu na tomada do Forte Curuzu.

Dois anos depois foi fundado o clube que ganhou o nome da fortificação. Foi a primeira agremiação a desfilar no dia 23 de junho para celebrar o que considera um marco de resistência histórica: as batalhas que dizimaram a população paraguaia.

Em 1894, surgiu o Humaitá, e em 1905, famílias tradicionais de Barra do Rio Grande criaram o Riachuelo. A quarta agremiação, Avaí, teve vida curta. Os clubes folclóricos adotaram as cores que teriam sido usadas nos uniformes das tropas brasileiras. 

Assim como no futebol, surgiu uma imensa rivalidade por questões geográficas, familiares e por classes sociais. A disputa para ver quem tem maior poder de fogo já fez muitos feridos e, pelo menos, um morto em todos estes anos. No entanto, Barra mantém a tradição

NASCE A PERIGO


Claudinha era uma menina muito levada. Brigava muito e levava a melhor na maior parte das vezes. Ela conta que um dia estava no banheiro e a boneca de uma colega caiu no vaso sanitário. Sabendo que seria acusada de jogar o brinquedo na latrina, saiu correndo e pulou quatro cercas. Até hoje não sabe onde conseguiu impulso para a façanha. O pai da outra guria  então colocou a alcunha que permanece até hoje.

– Perigo é só apelido. É porque eu atentava muito quando era criança, mas graças a Deus em coisa errada não me meto – diz.

Ainda muito jovem passou a torcer pelo Humaitá, agremiação preferida por seus pais Alberto de Jesus dos Santos, seu Betinho, e Maria dos Anjos Damacena dos Santos, que moravam próximo do “forte”.


Durante o desfile, as agremiações são divididas em alas. Na frente, a linha de fogo. São de 40 a 120 soldados, vestidos com botas, casacas e calças de brim resistente, luvas de couro e capacetes. Eles carregam latas com, no máximo, 20 buscapés, que precisam ser reabastecidos durante o desfile. Ano passado, só o Humaitá soltou 3.200 fogos, feitos com limalha de ferro e pólvora.

Os buscapés levam entre cinco e sete segundos soltando labaredas. Ao final, explodem. Ao contrário das espadas da cidade de Cruz das Almas, que são soltas no chão por seus cavaleiros, os fogos não podem sair das mãos dos soldados, em Barra.

Após a infantaria, vem a cavalaria (o Riachuelo por se referir a uma batalha naval não tem esta fileira), a fanfarra, a ala das moças representando as heroínas da guerra, pelotões de estudantes e escoteiros e carros alegóricos que homenageiam personagens e fatos históricos. Em 2017, o centenário do Mercado Municipal será lembrado.


Quando decidiu se alistar no Humaitá, há cerca de 25 anos, Claudinha Perigo, 43, optou pela cavalaria. Até que um dia não conseguiu encontrar um cavalo para alugar e passou para a linha de fogo. O Humaitá ganhou a soldada mais valente entre os 200 praças que abrem os desfiles das três agremiações. Perigo já foi chamada para o Curuzu, mas não aceitou integrar as fileiras do rival.

Mesmo com problemas sérios nos joelhos que precisam ser operados, ela se agacha, deita no chão e se movimenta muito, sempre segurando dois buscapés que soltam lâminas de fogo. Já chegou até a colocar um deles na boca, correndo o risco de se ferir gravemente e perder os dentes. Deixou de fazer isto porque a mãe ameaçou tirá-la da tropa. Embora jure só ter feito uma vez, a irmã Marivânia diz que ela se arriscou de novo, recentemente.

SALGADINHOS SEM ZOAÇÃO

Longe das selfies nos dias de desfile e de convites para mostrar suas habilidades em datas como o Dia do Trabalho, Claudia vende salgadinhos, doces e sucos na porta do centenário Colégio Santa Eufrásia.


É fácil de ser reconhecida por ostentar dezenas de tatuagens, piercings, cordões e paixões. Não permite que zoem quando o assunto é o Humaitá e o Vasco, cujo escudo carrega tatuado na batata da perna. Também traz no corpo – barriga e mãos – as marcas de cinco queimaduras obtidas na linha de fogo.

Seu sonho é ver um jogo em São Januário e fazer uma exibição com os fogos no estádio que serviu de palco para seus três maiores ídolos. Na ordem: Pedrinho, Romário e Edmundo. Pela equipe cruzmaltina deixa de lado a paciência que cultivou nos últimos anos e, às vezes, discute.

– Por causa do Vasco já me aborreci porque o povo começa a me perturbar. Eu fico de boa, não gosto de zoar ninguém, mas sou danada. Não me provoque!

Em seguida, emenda como um chute certeiro:

– Sou vascaína ganhando ou perdendo; com o time na segunda, na terceira ou na quarta divisão!

Há 15 anos carrega o escudo e está juntando dinheiro para fazer uma Cruz de Malta, embora a mãe diga que não há mais espaço no corpo de Claudinha para tatuagens.

Sua explicação para não torcer por times baianos é bem simples:

– Bahia e Vitória não fazem meu tipo.

O arsenal vascaíno inclui quatro camisas, duas toalhas de banho, lençol, copo e outras pequenas lembranças. Se a família a fez gostar do Humaitá, ela fez os pais, irmã, cunhado e sobrinho se transformarem em cruzmaltinos.

“Sou fanática, Ave Maria. Quando o Vasco perdeu para o Palmeiras, fiquei retada. Quatro a zero não pode, moço. Só fui trabalhar porque não tinha jeito”.

Trabalho para Cláudia significa preparar coxinhas, rissoles, pães de queijo, bolo de chocolate, tortas e sucos durante a madrugada. Ir dormir às 3 horas da manhã e sair, pedalando sua bicicleta, às 6h30.

No caminho até o colégio para diversas vezes a fim de atender clientes. Essa batalha diária tem menos graça do que as que são travadas nas ruas de Barra e nos estádios.

SOMBRAS DO PASSADO

por Paulo Oliveira

Encontrei umas fotos antigas que fiz em 1993, quando trabalhava no Jornal O Dia, antes do Brasil decidir com o Uruguai quem ia para a Copa do Mundo de 1994, nos Estados Unidos. Estava publicando elas no Facebook, mas, pensando melhor, nada mais justo do que ser publicado no Museu da Pelada.


Juan Alberto Schiaffino

Schiaffino marcou o primeiro dos dois gols da memorável final da Copa de 50. O ex-jogador mostra uma bandeja que comprou no Brasil, após o jogo. Lembrança que o craque uruguaio guardou até o fim da vida. Vale destacar que o ex-jogador tinha dupla nacionalidade e jogou também pela seleção italiana.


Obdulio Varela

Obdulio Varela, el último capitán. Tive o prazer de conhecer o capitão uruguaio da seleção de 50. Sua história e presença de espírito me marcaram. Cheguei a comprar o livro “Obdulio, desde el alma”, biografia escrita por Antonio Pippo.

Obdulio gostava de beber, se divertir e não ligava para dinheiro. Não pode ser comparado com Garrincha, porém. Estilos e posições diferentes em campo.

Em casa, Obdulio contava com o apoio e a fibra de sua mulher, Catalina, que não cansava de denunciar as armações feitas pelos dirigentes. Foi ela que meteu a mão na massa, junto com parentes e alguns peões, para construir a casa onde a família morava, após pagar aluguel durante muitos anos.

Fiz várias fotos de Obdulio com a família, mas só encontrei esta nos meus arquivos. Obdulio me comoveu ao contar que depois do jogo se separou dos companheiros e foi andar pela zona sul do Rio, se não me engano pelo bairro do Flamengo.

Ele relatou que ia passando pela rua e era parabenizado pelos brasileiros. Disse ainda que terminou a noite, bebendo com brasileiros num bar, triste por ter feito o povo sofrer. Para o biógrafo Pippo declarou que teria feito um gol contra se tivesse que jogar a mesma partida de novo.

Dias depois, após o Brasil derrotar o Uruguai pelas eliminatórias da Copa, tive a mesma sensação de Obdulio. Saí para comemorar com um jornalista da Folha de São Paulo, após passar minhas matérias. Os uruguaios, ao ouvirem nosso sotaque e palavras, nos paravam na rua e davam parabéns pelo desempenho da seleção brasileira e de Romário. Passei a ter um carinho muito grande pelos uruguaios.

Conheci Obdulio em 1993, na véspera dele completar 76 anos. Ele morreu pobre – trabalhava num cassino -, aos 78 anos, em 1995.

Para Obdulio, uma homenagem através dos versos de Jorge Luis Borges:

“El que acaricia un animal dormido El que justifica o quiere justificar un mal que le han hecho. El que prefiere que los otros tengan razón. Esas personas, que se ignoran, están salvando al mundo”.


Tomei conhecimento que havia um mausoléu para os jogadores uruguaios campeões de 1950, no Cemitério de Buceo. Fui até lá e registrei que nem mesmo os ex-campeões eram respeitados. Algumas placas com os nomes dos jogadores tinham sido arrancadas da campa e não havia sinal de flores ou de visitantes. Os heróis mortos estavam esquecidos

A TÁTICA DO BÚFALO

por Paulo Oliveira


Mauro Gordo é sempre o primeiro a chegar, vestido com sua roupa de gala: o tênis kichute, amarrado como sapatilhas de bailarina; um surrado short preto; e a camisa do Flamengo, cujas cores, adquiridas em dezenas de lavagens, passaram a ser rosa e cinza. Às costas, nenhum número, pois pode se transformar em qualquer jogador que tenha pisado no solo sagrado do Maracanã com o místico manto rubro-negro. Seus dois pares de meiões não combinam com nada – um é verde; o outro, laranja. Não raras vezes utiliza uma meia de cada cor.

Diariamente, Mauro repete o mesmo ritual: a mãe prepara uma mamadeira de café com leite, que ele sorve em poucos goles. Na hora da ave-maria, pega a bola dente-de-leite, confere os nós dos cadarços, faz o sinal da cruz e parte em direção ao seu território. Será assim até os seus 20 anos, quando perceber que a maioria dos colegas deixou o bairro, o centro velho do Rio.

Nada tira sua concentração enquanto atravessa as ruas Costa Ferreira e Senador Pompeu, nas imediações da Central do Brasil. Fisionomia fechada, a bola debaixo do braço, imagina belas jogadas e como serão os gols que pretende marcar.

Ao chegar no Largo dos Estivadores, verifica a posição dos gelos-baianos do estacionamento que vira campo de futebol todas as noites e nos finais de semana. Em seguida, abre um largo sorriso e deixa a bola correr. Tem cerca de uma hora, antes da turma chegar, para treinar.

Treino básico: embaixadinhas. Sob a luz fraca dos velhos postes do bairro, tenta bater seu recorde. Uma, duas…, a bola foge do controle. De novo e de novo, várias vezes, não consegue passar de três embaixadas com a perna esquerda.

A outra, cega, não serve para nada.

O treino termina quando surgem os primeiros amigos: Banana, Manteiga, Dido, Paulo, Albino, David… Mauro cumprimenta um a um, torcendo para que pouca gente apareça. Paraibinha, Mauro Preto, 32, Sérgio…

– Vam’bora, vam’bora, vamos tirar o time – tenta apressar os outros, sem sucesso.

O sofrimento aumenta a medida que chega mais gente: Lula, Marcos Bu, Celso, Durão, Chope, Jason, Xinha. Já são mais jogadores do que o campo comporta – seis na linha e um no gol de cada lado.

Longa é a agonia do mais assíduo jogador do Larguinho, onde funcionava um mercado de escravos no passado. Ele vê a chance de atuar no primeiro racha se apagar.

– Quem quer tirar o time comigo? – insiste.

Quando Banana e Albino, os artilheiros do Águia Dourada, começam a escolha, Mauro Gordo, resignado, puxa de dentro da camisa, preso ao pescoço, um apito de plástico, pronto para virar o juiz. Para quem se acostumou a ser o último selecionado, não é tão ruim apitar e ganhar o direito de comandar o time de fora.

A luz fraca somada à miopia impede a boa atuação do árbitro. Ele é logo expulso. Cabisbaixo, deixa o campo e senta-se na soleira da serraria do seu Jorge, mudo. Porém, as primeiras gotas de chuva, mudam seu humor.

O primeiro jogo termina dez minutos depois – é isso ou quem fizer dois gols primeiro.

Mauro entra com disposição, pega a bola, coloca onde imagina ser o meio do campo. Em seguida, corre para a “banheira”, desprezando a regra do impedimento, sem validade mesmo nas peladas. Os primeiros passes caem teimosamente na perna direita, obrigando-o a fazer uma manobra complicada, que consiste em girar no eixo do próprio corpo, deslocando 90 quilos, na tentativa da perna boa entrar em ação. Por mais que se esforce, demora muito e é desarmado.

Sem jeito, olha para o chão, se prepara para pedir desculpas aos companheiros, mas não dá tempo. Percebe pela algazarra dos adversários que o seu time acaba de levar o primeiro gol.

A chuva aperta, a sarjeta começa a encher. A água já iguala a parte da calçada com a do asfalto, a poeira da rua se transforma em lama. Hora de Mauro colocar em ação a arma secreta. Ele recua até o meio-campo, espera o passe. Domina com o pé esquerdo, baixa a cabeça e, como um búfalo, invade a parte enlameada. É o único a enfrentar o lamaçal sem se preocupar com uma queda, enquanto os inimigos o cercam à distância.

O tiro disparado com violência passa entre os chinelos usados como traves. Gol com direito a comemoração diante de uma torcida imaginária. Mauro age como se fosse um Zico, um Adílio, um Júnior; como se fosse os três ao mesmo tempo.

A mesma tática é usada com sucesso pela segunda vez, dando a vitória para a sua equipe. Mauro sai triunfante. Para ele, a batalha acabou.

Quando o jogo acaba, puxa do bolso do short uma caderneta e um cotó de lápis. Vai para debaixo da cabine do zelador do estacionamento e registra os tentos assinalados ao lado da data da partida. É o controle da artilharia, a prova que marcou mais de cem gols no Larguinho.

Ao voltar para casa, a irmã tenta convencê-lo a tomar um banho antes de dormir, mas o artilheiro está cansado. O corpo desaba no sofá da sala e o centroavante dorme, embriagado com o cheiro da lama.