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Marcelo Meira

MANÉ GARRINCHA, O DIABO DA COPA

por Marcelo Meira


No início andou de clube em clube, esperava na cerca. Queria uma oportunidade e agora havia saído lá das lonjuras de Pau Grande, Magé, RJ, para o estádio do Botafogo na zona sul carioca. Vinha de longe. Estigmatizavam suas pernas retorcidas e não lhe davam chance. Era quase noite e o teste já ia acabar. Acontecia ali uma peneira de jovens jogadores que tentavam a obtenção de um contrato para desembestar na vida. De repente disseram: entra aí.

O técnico era Gentil Cardoso e o seu marcador Nilton Santos, considerado, depois, pela crônica esportiva, o melhor beque do mundo ou a enciclopédia do futebol, dele ninguém se recordando ter sido driblado alguma vez. Ao pegar logo de início na bola, assumindo a ponta direita, as pernas tortas de Mané Garrincha gingaram e deixaram aquele que foi eleito pela FIFA como o maior lateral esquerdo de todos os tempos, de chuteiras para o alto. Espanto generalizado. Ninguém jamais havia visto isso. Diz a lenda que Nilton se levantou e bradou: contratem esse homem, ele tem que jogar do nosso lado! E foi o que aconteceu. Garrincha a partir dali iria disparar pelos campos de futebol do mundo inteiro.

Mané driblava e driblava, para lá e para cá, com quatro ou cinco marcadores em sua frente caindo uns por cima dos outros, sem soltar a bola ou perdê-la e a multidão nos estádios gargalhando em delírio uníssono fosse da sua galera ou do adversário. Certa vez em um Flamengo x Botafogo, no Maracanã à noite, a maior torcida do Brasil, na época a rubro-negra, ficou de pé aplaudindo o craque que havia driblado a sua própria defesa inteira antes de marcar o gol. Era o reconhecimento público incontestável até pelo principal rival do Botafogo, o Flamengo, coisa nunca dantes vista nas praças futebolísticas cariocas ou brasileiras.


Nelson Rodrigues um dos maiores cronistas desportivos em todos os tempos e que teve as mais contundentes tiradas asseverou que “toda unanimidade é burra”. Esquecia-se, se pudermos considerar válido o seu conceito, aquele mestre do jornalismo que Garrincha sempre idolatrado por ele era a única unanimidade inteligente do planeta terra. Ovacionado por todos os torcedores do mundo afora e aclamado em todos os campos de futebol por onde passou, deixou seu rastro indelével para todas as gerações futuras não contempladas ao vivo com os espetáculos que proporcionava. Mané independia de raça, clube, país, religião e tudo o mais. Era, foi e sempre será um mito a pairar na consciência futebolística mundial.

Conta-nos Mario Filho, em sua obra “O Negro no Futebol Brasileiro,” que numa excursão na Itália, preparatória para a Copa do Mundo de 1958 na Suécia, “Garrincha havia sido barrado depois de um gol que marcou contra a Fiorentina, o qual era o último de uma vitória de quatro a zero. Driblara toda a defesa italiana, inclusive o goleiro, o gol estava vazio, mas esperou que o beque voltasse para tirá-lo de debaixo dos três paus com outro drible. O beque saiu do gol, quando viu Garrincha entrando, de bola e tudo, quis voltar e bateu com a cara na trave.”

Era o dia 29 de Maio de 1958, vésperas da Copa. “Vicente Feola o técnico disse: nunca mais me entra no escrete. Carlos Nascimento, chefe da delegação brasileira, fez eco e gritou logo: irresponsável! Foi preciso que antes do jogo contra a Russia, Bellini, o capitão, Nilton Santos e Didi fossem a Feola para dizer:


– Seu Feola, viemos aqui para ganhar o campeonato do mundo. Sem Garrincha não vai dar pé.

E aí o Brasil arrancou em direção ao primeiro campeonato mundial que conquistou. Garrincha saiu de lá cognominado o Diabo da Copa.

Na competição de 1962 Garrincha foi Pelé e Garrincha ao mesmo tempo. Goleou de falta, de cabeça, de perna esquerda e driblando geral… um furacão. O Brasil venceu, era o bi-campeonato mundial. Pelé era o Rei e não pôde mais jogar o certame por uma contusão na virilha ocorrida logo no segundo jogo. Mas Garrincha estava ali, e como disse Mario Filho era “o Rei dos Reis”.

Foi conhecido como o diabo, demônio da Copa, a alegria do povo e na colocação de Vinicius de Moraes “o anjo de pernas tortas”, o qual escreveu e lhe dedicou um poema com esse título. Era um milagre que, inocentemente, zombava de todos os jogadores contrários que lhe apareciam pela frente. Não fazia questão, antes dos jogos internacionais em que participou, de saber o nome de seus marcadores, por isso em razão da difícil pronúncia para ele apelidou de “João” a todos quantos fintava incessantemente. O medo de ser o João da vez era espalhado. A firula ia sempre para a direita, na lateral do campo, quatro ou cinco lhe marcando, num espaço mínimo e mesmo assim eram ultrapassados.


As gargalhadas ecoavam nas plateias, estrondosas como sempre. Muitos jogadores após o drible mortal e caídos no gramado se levantavam para o agredir em face da desonra que consideravam ter lhes sido imposta, mas escutando o coro dos espectadores paravam, com vergonha de fazer qualquer coisa, por conta da gaiatice monumental proveniente das arquibancadas e cercanias. Nada mais lhes restava senão tentar e tentar novamente sem sucesso. Garrincha não revidava quando sofria falta e muitas vezes, ainda cambaleando no percurso do lance recuperava a jogada e com o pique mais rápido já visto no futebol assumia a lei da vantagem, partindo célere em direção ao gol para terror dos adversários.

Esse era o seu destino, jogar driblando por instinto e correr atrás da bola para executar o cruzamento ou marcar o golaço de placa. Havia, um lateral esquerdo do Vasco da Gama, Coronel, que sempre lhe agarrava pela camisa e a rasgava arrastado por Mané em seu tiro indefensável. Um outro, Altair, que jogava no Fluminense, mestre do carrinho, que era lícito, ao executar o bote para tentar barrar a passagem daquele semideus, deslizava pela grama e dificilmente conseguia acertá-lo. Mas foi Jordan lateral esquerdo do Flamengo a quem ele, numa manifestação de gratidão, atribuiu o título de seu melhor marcador apesar de que nunca tenha conseguido efetividade para interrupção de sua trajetória fulminante. Isso era perfeitamente explicável pois Jordan além de ser seu compadre jogava na bola e nunca lhe machucava.


Então foi assim que Garrincha construiu ou ajudou a construir atacantes que enriqueceram e se consagraram tal e qual Vavá, artilheiro da Copa de 62, pegando rebotes e lançamentos feitos por Mané e também Amarildo, Paulo Valentim, Quarentinha, todos do Botafogo e da seleção canarinho, bem como muitos outros. O povo soube reconhecer o seu ídolo com o seu melhor aplauso. Morreu pobre e doente o único jogador imarcável. O futebol por aqui decaiu, difícil conquistar uma Copa Mundial neste outro tempo, uma longa entressafra de craques. Querem surrupiar o direito previdenciário no Parlamento, fraudaram a carne e a política. Agora obedecendo o script nacional até o túmulo do Garrincha. É que seus restos mortais, verificou-se em maio de 2017, desapareceram do cemitério em Magé, RJ, onde ele foi sepultado, sem que houvesse ocorrido exumação. Valha-nos Deus e Nossa Senhora da Conceição Aparecida, padroeira do Brasil!