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ENTREVISTA COM SÉRGIO NORONHA

por Mário Moreira


“Quanto mais friamente você vê o futebol, mais bonito ele fica”

Na segunda metade dos anos 70, Sérgio Noronha formava com Luciano do Valle a dupla titular das transmissões esportivas da Rede Globo. Um nos comentários, o outro na narração. Juntos, transmitiram, por exemplo, a Copa do Mundo de 78, na Argentina. Por razões óbvias, vem dessa época a grande popularidade do comentarista, que, no entanto, já vinha de uma carreira de destaque em veículos como O Cruzeiro, onde começou, Jornal do Brasil, Correio da Manhã e Última Hora.

Noronha foi o principal comentarista da Globo até 79, mas retornaria à emissora em outros períodos. Também fez parte, durante vários anos, da antológica mesa-redonda dominical na TVE, ao lado de Luiz Mendes, Achilles Chirol e outros craques do microfone.

Em maio de 1989, quando o entrevistei para minha monografia final no curso de Jornalismo na PUC-RJ, que versava sobre comentário esportivo, Noronha trabalhava na Rádio Globo, após passagem pela Tupi. E foi na sede da emissora, na rua do Russel, na Glória, que fui encontrá-lo para a entrevista, a primeira de uma série com quatro importantes comentaristas (duas delas, com João Saldanha e Achilles Chirol, já foram publicadas aqui no Museu da Pelada). Por ter sido a primeira, foi talvez a mais difícil para mim, jovem e tímido estudante, mas também a que ajudou a balizar todas as outras.

Em quase 40 minutos de conversa, Noronha deu uma verdadeira aula de jornalismo. E mesmo hoje, quase 30 anos depois, muitos dos temas continuam atualíssimos: a desorganização do futebol brasileiro, a escassez de público nos estádios, o preço dos ingressos (então cotados em cruzados…).

O mais importante, porém, são as considerações que ele faz sobre o papel do comentarista esportivo. “Entender de futebol todo mundo entende”, afirmou então. “O problema talvez seja a capacidade de verbalizar, de se explicar. Aí… muita gente não tem.”

Na entrevista, Noronha rejeita a tese rodriguiana de que é impossível apreciar o futebol de maneira desapaixonada. “Tanto mais friamente você vê, melhor é. Ele fica mais bonito, fica muito mais bonito (…) Quando você não está envolvido, você vê muito melhor o jogo. É muito mais agradável do que quando está envolvido.”

Hoje doente e afastado do jornalismo, Noronha completou 85 anos no último dia 28 de dezembro. É em sua homenagem que o Museu da Pelada publica abaixo esta inédita entrevista:

Eu queria que você primeiro contasse como começou no jornalismo esportivo.

Bom, eu comecei no jornalismo esportivo no Jornal do Brasil, fugindo de uma mudança no jornal… Entrou pra dirigir o jornal uma pessoa que a princípio eu não gostava, de quem acabei me tornando grande amigo – eu era copidesque do jornal, tirei dois meses de férias e na volta, para não trabalhar com essa pessoa, pedi pra trabalhar no Esporte. Aí fui ser copy do Esporte.

Porque no Esporte não tinha…

Não, porque tava um pouco longe dele. Eu não queria trabalhar diretamente com ele. Depois acabei me tornando grande amigo dessa pessoa.

E quando é que você começou a trabalhar como comentarista de esporte?

Comentarista? Setenta e… 75.

75? Onde?

TV Globo.

E quando foi que você sentiu que tinha condição e capacidade pra falar sobre futebol? Você já tinha essa ideia há muito tempo?

Já, eu fiquei como copy do Esporte muito tempo. O copy do Esporte tinha três copidesques: eram o Marcos de Castro, Armando Nogueira e eu. O Armando era copy e fazia uma coluna. Aí, quando o Armando tirava folga, eu fazia a coluna para ele. Escrevia a coluna para ele no Jornal do Brasil. E aí… Fiquei no Esporte durante bastante tempo. Depois voltei para Geral, fui ser secretário no jornal, mas fiquei no Esporte durante muito tempo, e fazendo coluna também.

E aí nessa época você já…. Você sempre achou que entendia de futebol pra falar sobre o assunto?

Eu acho que entender de futebol todo mundo entende.

Todo mundo entende? O que é entender de futebol?

Eu acho que todo mundo entende de futebol. Se você pegar um torcedor do Flamengo para ele ver um jogo Fluminense x Vasco, ele comenta o jogo direitinho pra você. Só não pode é torcedor do Flamengo ir ver jogo do Flamengo. Senão ele vê pênalti que não houve, pênalti contra ele ele diz que não foi… O jogo de domingo foi exemplo: houve um pênalti claro contra o Fluminense, todo mundo do Fluminense disse que não tinha sido pênalti, aí depois, vendo o videotape, ficou claro, aí eles reconheceram que tinha sido pênalti. Eu acho que o torcedor só não consegue ver o jogo bem quando o time dele tá envolvido; quando não é o time dele, ele vê muito bem. O problema talvez seja a capacidade de verbalizar, de se explicar. Aí… muita gente não tem.

Você acha que a essência do esporte mais ou menos todo mundo consegue analisar bem…

Consegue. O problema é verbalizar, primeiro explicar o que você viu, o que nem sempre é fácil, nem sempre as pessoas têm o vocabulário para isso, ou não conseguem organizar a sua cabeça e tal… Mas ver jogo de futebol todo mundo vê bem. É um jogo simples.

Você disse que o torcedor vê com uma certa parcialidade uma partida…

Claro.

Mas, por outro lado, os comentaristas também normalmente são torcedores, já foram torcedores de arquibancada, etc. Como é que é isso? Como é que você procura deixar de lado o seu lado torcedor…

Se você…

Você é vascaíno, né?

Eu não. Eu não torço mais por time nenhum não. Não tenho o menor interesse em torcer por time nenhum.

Você era vascaíno?

Não. Eu fui… Eu fiquei muito dividido uma época entre Vasco e Botafogo, mas não…

Na época de adolescência, você não….

Eu nunca tive uma definição muito forte, não. Agora, o comentarista sabe o seguinte: se ele vestir a camisa, ele cai no descrédito. Se ele começar a ser parcial o tempo inteiro, ele vai cair no descrédito. E não é bom para ele. Então ele prefere…. ele é levado a assumir uma linha independente.

Bom, mas tem certos comentaristas que assumem esse lado torcedor…

Assumem, mas comentam de forma isenta.

Você acha?

Eu acho. Eu acho. A maioria comenta de forma isenta.

Nelson Rodrigues era um que dizia, por exemplo,…

Mas isso não era um comentarista!…

Não, não… Ele dizia que não acreditava em neutralidade, que o futebol era um esporte essencialmente passional e que nesse sentido ele não via como….

Mas o Nelson Rodrigues não é exatamente a minha Bíblia, viu?

Bom… Não estou dizendo que seja a minha, estou dizendo a opinião dele. O que é que você acha?

É uma opinião que ele tem o direito de externar e que eu discordo. Eu discordo. Você pode ver esporte friamente. Aliás,…

É possível essa neutralidade?

Tanto mais friamente você vê, melhor é. Ele fica mais bonito, fica muito mais bonito para você vê-lo friamente, fica muito mais…Você vê coisas que não vê quando tá envolvido, apaixonado. Detalhes, posturas, a própria arbitragem do jogo… Quando você não está envolvido, você vê muito melhor o jogo. É muito mais agradável do que quando está envolvido. Eu… não gosto do envolvimento.

E qual deve ser o papel do comentarista esportivo no sentido de modificar o próprio esporte, da evolução do esporte? Tem esse lado também?

Não, eu não acredito que o comentarista tenha força para isso, ele não pode modificar nada. O que ele pode é exercer um trabalho de certa vigilância, né? Por exemplo, contra a violência, contra os arranjos, contras as más arbitragens e tal. Agora, ele não tem força pra mudar nada. Ele não tem força. Não acredito nisso.

Nem, vamos dizer, a crítica, uma certa unanimidade, por exemplo, em termos de seleção brasileira, no sentido de forçar ou fazer pressões pra convocação desse ou daquele jogador, ou de…?

Eu acho até que isso existe. Se o técnico for fraco, ele cede, né? Se ele for babaca, ele cede; se ele não for, ele não cede. O problema aí é do técnico. Pressão você sofre em todo lugar. Pressão você sofre na sua casa – de repente, o seu pai quer que você seja advogado, você não quer ser. Se você for babaca, você vai ser advogado, mesmo não querendo ser. Aí é um problema da personalidade do sujeito, pô. O cara faz aquilo… Eu uma vez disse pruma moça: “Ah, eu tava doido pra ligar pra você e não liguei, não sei por quê…”. Ela disse “Não estava. Se você estivesse querendo ligar pra mim, você ligava pra mim. Porque a gente faz exatamente aquilo que quer fazer. Quando você quer fazer uma coisa, você faz.” E é verdade!

Então o papel do comentarista se restringe a analisar o que viu…

O PODER do comentarista. O papel ele pode fazer o que quiser. Ele pode ser um comentarista capaz de achar que pode mudar o mundo. Não sei, pode ser até que ele… de repente seja capaz. Eu não vi até agora. O papel do comentarista é uma coisa muito individual, eu não posso traçar um perfil de como é que se deve comportar um comentarista. Eu tenho um comportamento, outros têm outro. O meu comportamento é um, que eu acho que é o que melhor se adéqua à minha maneira de ser. Outros comentaristas não, são mais… sei lá, participantes ou… Eu sou uma pessoa um pouquinho mais distante.

Como é que você se mantém atualizado com o futebol? Você tem essa preocupação também para comentar, estar em dia com a…?

Olha, eu leio todos os jornais, ouço a maioria dos programas esportivos…

E notícias do exterior? Costuma ler revistas?….

Não, só quando eu estou envolvido quando tem uma Copa do Mundo. Porque raramente eu tenho que falar sobre o exterior. Quando eu estava na TV Globo sim, aí eu tinha que fazer jogos de seleções estrangeiras, falar de times estrangeiros. Agora, na Rádio Globo não, o rádio faz muita coisa regional, né? O rádio é muito regional.

Qual é a grande diferença em comentar futebol para rádio, para televisão e escrever sobre isso em jornal?

São três veículos diferentes, três linguagens diferentes, três enfoques diferentes. É inteiramente diferente uma coisa da outra. Inteiramente diferente. Porque na televisão você está comentando sobre uma imagem que o telespectador está vendo, quer dizer, você corre o risco de ser óbvio.

Pois é, o que tirar daí? Como é que você sai dessa cilada?

Olha, eu não sei como é que se sai, agora, se os outros não sabem, o problema é deles…

Como é que você tenta sair?

Não, eu não tento, eu saio, eu sei como sair. Eu sei como sair. É extrair da imagem um comentário. Eu acho que a maioria dos comentaristas de televisão ainda não entendeu isso – por isso é que eles parecem muito óbvios. Porque na realidade, você tem que comentar a partir da imagem, e não a partir do global que você está vendo. O jogo que você está vendo no campo é um, o da televisão é outro. Você tem que partir daquele jogo da televisão, senão você dança. O rádio é uma fábula que você cria para um sujeito que não está vendo. Então o locutor de rádio é diferente, o comentarista de rádio é diferente. Você está contando uma história para pessoa que não está vendo uma história, um fato. Então você faz uma história em cima de um fato. É diferente. E no jornal, você escreve para o dia seguinte…

Pois é, e aí?

…depois que tudo passou, a paixão baixou…

O torcedor já viu, já ouviu e tal…

É… E é por isso que eu não aceito o jornal no dia seguinte se não diz se foi pênalti ou se não foi pênalti. A obrigação de um cara que comenta um jogo para um jornal é dizer se foi pênalti ou se não foi pênalti. Porque ele teve tempo de ver, de analisar, de pensar… O cara do rádio não, é em cima do lance. “Foi pênalti?”. “Bom, pareceu que foi….” Jornal, não: discute, vê na televisão de noite, na Redação… Eu acho que o jornal é em cima… Eu acho até que o jornal deveria partir sempre da suíte do jogo, e não do jogo em si. Acho que o jogo em si se esgotou, porque veja bem: você ouviu o rádio ou viu televisão. De noite, você viu mesa-redonda e os programas esportivos. O que é que o jornal vai fazer no dia seguinte? Repetir a mesma coisa? Acho que o jornal… Nesse ponto, a cobertura do jornal está fraca. Eu acho. O jornal ainda não descobriu que o enfoque dele é diferente.


Helio Arnaldo, Sergio Noronha, Silvio Luiz e Luciano do Valle, entre outros

Quando você faz um comentário no rádio, você está falando com um público muito diversificado, com pessoas das mais diferentes classes sociais e níveis intelectuais. Como é que você faz pra…

Ser simples. Ser absolutamente simples. Não ser muito popularesco, nem falar uma porção de gíria, uma porção de bobagem, nem também falar difícil. Ser absolutamente simples. Pensar exatamente isso: eu estou explicando uma história que foi contada por outro sujeito, eu estou explicando essa história que foi contada pelo narrador para uma pessoa que não viu. Então eu tenho que ser o mais simples possível, eu tenho que tentar até fazer com que ele visualize as coisas. Então isso é simples, isso não tem nenhum mistério não. Tem que ser simples, só isso. Se tentar enrolar, tentar ser muito complicado, ninguém te entende.

Agora, partindo sempre do pressuposto de que o torcedor entende a mecânica do jogo…

Ah, entende.

…pra poder visualizar o que você está falando.

Entende, entende, entende. A exceção é só em Copa do Mundo, mas essa exceção fica pra televisão. O rádio não incorpora isso não.

Pelo fato de não conhecerem os times e os jogadores?

Não, é porque na Copa do Mundo o público é um público atípico, né? Numa Copa do Mundo, você consegue na televisão meter 60 milhões de espectadores, 60 a 80 milhões. É gente pra burro, né? É evidente que esse não é o público normal do futebol. Então você tem que ter cuidado com o cara novo que não entende de futebol e você tem que explicar pra ele como é que é.

No jornalismo esportivo existe um certo número de frases feitas que se popularizaram, tipo “Há coisas que só acontecem ao Botafogo”, “O Fluminense é time de chegada”, “O América nada, nada e morre na praia”… Essas coisas são normalmente verdades? E elas influenciam pra que aquilo se repita? Ou você não…

Olha, não, isso é… É apenas… As pessoas têm uma certa marcação com o futebol, acusando de falta de imaginação. Isso é o jargão da profissão. Não tem o jargão médico? “Doente terminal.” “Paciente…” Como é que é?… Sei lá… “Atípico.” É o jargão de médico! Economia não tá cheia de jargão? “Mercado flutuante.” O jargão do futebol é a mesma coisa. É o jargão da profissão. Você usa certos… É como política: “Os partidos estão divididos”. É a mesma coisa. Apenas é o jargão que o futebol usa, tal como se usa na política, na economia, na medicina, na engenharia. A polícia não chama de “elemento”? “O elemento estava na rua tal…” Ninguém mais usa “elemento”, alguém usa “elemento”? Não. Só a polícia.

E “comboio”, né?

É, essas coisas. Isso é…

“Viatura”.

É, exatamente, “viatura”, coisa que vem do Exército, por exemplo. Acho que é só o jargão da profissão, da função. Não tem nada demais não.

Essas frases que eu citei fazem parte?

Fazem, do jargão, do dia a dia do futebol, como tem… Você não tem o jargão do surfista? Você pega dois surfistas conversando, “Não, porque o tubo, porque não sei quê…”. Então. Você não entende nada, mas é o jargão deles, a linguagem deles.

Uma outra questão: o futebol é, pra maioria da população, uma forma de lazer. O cara vai a um estádio de futebol como poderia ir ao cinema ou à praia. Agora, o comentarista esportivo é um cara que mais ou menos tenta racionalizar isso aí, interpretar e dar uma lógica na coisa. Isso chega a ser uma contradição, ou você não entende assim?

Você acha que devia ser um lazer também pro comentarista?

Não, não acho, mas do ponto de vista do público… Quer dizer, por que o público tem a necessidade de ter uma pessoa pra interpretar aquilo pra ele?

A necessidade que o público tem de ser informado. Existe comentarista – aí eu vou voltar – econômico… não é? Tem notícia econômica, entra um cara pra explicar notícia econômica. Existe o político… Não existe? Existe o esportivo!

Certo, mas a política e a economia…

O que que tem?

…não são parte da lazer da vida das pessoas. O futebol…

Sim, mas a informação não precisa ser lazer ou não. A informação é uma coisa que… O sujeito quer ter conhecimento das coisas. É uma atitude normal do indivíduo. O indivíduo quer saber coisas, ele quer saber coisas melhores. Até porque ele parte do pressuposto de que o comentarista e o repórter vão estar mais informados do que ele. Ele passou a semana inteira trabalhando, enquanto que eu passei a semana inteira interessado no treino do Vasco, do Fluminense.

Acompanhou…

Claro, então eu tenho subsídios que ele não tem. É como o economista. Você passa o dia inteiro trabalhando lá na sua obra. Aí de noite tem: “A taxa do over subiu”. “Porra, que merda é essa de taxa do over?”. Aí vem um cara: “A taxa do over é isso assim, assim, assim”. Mesma coisa: é chegar pra você: “Impedimento”. “Estava impedido porque saiu da posição, porque não sei quê, o fulano tava lá atrás…” É a mesma coisa. O comentarista é… A função dele é igual na política, na economia, em tudo, quer dizer: é a necessidade que você tem de ter informação.

Mas você disse agora há pouco que o público em geral entende o futebol, né?

Sim, ele entende do que tá vendo ali, mas os subsídios de tudo aquilo ele não tem. Ele não sabe quem se machucou, se havia se machucado anteriormente… A não ser o cara viciado, que lê jornal, que acompanha e tal, o cara não sabe.

Então o comentarista completa isso?

Completa, completa. Até pra ele discordar às vezes.

Pois é, exatamente…

Até pra discordar.

Às vezes o sujeito liga a televisão e diz “Esses caras não entendem nada, tá tudo errado”.

Claro, até pra discordar. Até pra discordar, pra discutir. Programa de entrevista tem muito isso, o sujeito liga numa entrevista pra discordar do entrevistado ou do entrevistador. Isso é normal, é normal. Isso é normal.

Quais os requisitos necessários para ser um bom comentarista de futebol?

Quais os requisitos necessários pra ser um bom profissional de informação? Primeiro: ser muito bem informado – quer dizer, qualquer sujeito que queira ser jornalista, ou radialista, ou lá o que seja, ele TEM que ser bem informado. Não é? Isso não tem… Tem que ler jornal todo dia – eu fico espantado quando vejo meninos que estão estudando aí e não leem jornal. Tem que ler jornal todo dia! Eu leio todos os jornais todo dia. Todo dia eu leio todos os jornais, ouço a maioria dos programas esportivos, quando posso. Segundo: ter uma noção da colocação da sua profissão dentro da sociedade. Saber o que significa ser um jornalista. Não é igual a ser médico, não é igual a ser engenheiro, não é igual a ser bancário, não é igual a ser pedreiro. Não é melhor do que nada disso não!, mas não é igual. Você tem que saber que não é igual. Tem características que são diferentes. É uma profissão que não tem folga, é uma profissão em que você é full-time. Você não pode, no seu dia de folga, passar diante de um prédio pegando fogo e não ligar pro seu jornal. “Olha, eu tô aqui na rua tal, tem um prédio pegando fogo.” E você começa a trabalhar ali, embora seja o seu dia de folga. Ter a noção de que é uma profissão desagradável, você não está ali pra fazer amigos, até pra fazer inimigos. Enfim… É… ter noção exatamente disso, do que que significa, socialmente, a sua profissão. E ser muito bem informado.

Mas no caso específico do comentarista esportivo…

O comentarista é apenas uma coisa a mais!, o comentarista não é um… importante. O comentarista é a segunda ou terceira pessoa em importância num jogo de futebol. O mais importante é o narrador. O comentarista tem que ter isso… Essas informações e mais, o máximo possível de distância do espetáculo – pra poder observar o espetáculo à distância. Se você sentar no Maracanã, botar a camisa do Flamengo pra comentar um jogo, pô… morreu. Claro, pô, no terceiro jogo ninguém acredita mais em você. Aliás, tem gente perdendo crédito por causa disso. Então é isso é que é preciso, quer dizer: distância, conhecimento, informação e distanciamento. E aí… capacidade de verbalizar. Ou você tem um bom vocabulário, ou então… E aí é que fracassa a maioria dos ex-jogadores de futebol: eles não têm vocabulário. Eles sabem ver um jogo às vezes, mas não sabem verbalizar o que viram.

Mas muitos se tornam técnicos de futebol.

Técnico é uma coisa, comentarista é outra.

Sim, mas pra explicar aos jogadores…

A linguagem é outra, inteiramente diferente. São profissões diferentes, funções diferentes. Se a linguagem do jornal é uma, a da televisão é uma, a do rádio é outra, imagina a linguagem do técnico: é muito mais diferente.

Ele lida com jogadores…

Claro, é outra coisa. É outra coisa. É inteiramente diferente. As pessoas confundem, não é a mesma coisa. Se me dessem um time pra treinar, eu não saberia treinar um time de futebol. Eu não sei treinar um time de futebol, eu sei analisar um jogo de futebol. Treinar um time de futebol eu não sei.

Como é que você tá vendo este momento do jornalismo esportivo brasileiro? Você acha que tá bem, você acha que pode melhorar em alguma coisa…

Não, eu acho que o país todo tá muito mal, né? Muito mal. E aí tem reflexo imediato em tudo. Acho que o futebol, por exemplo, tá sofrendo um reflexo muito grande da falta de dinheiro… Acabaram de aumentar a arquibancada pra cinco cruzados… Não é caro, agora, ninguém tem dinheiro! Eu conto sempre a história de um amigo meu que foi jantar num restaurante, comeu bem, tomou vinho, não sei o quê, aí quando veio a conta ele disse: “Pô, é muito caro”. O maître disse “Não, não é caro não, você é que ganha pouco”. Não é caro!

Sim, mas você tem que adequar ao público, né?

Qual o público do futebol?, eu não sei mais qual é!

É muito pequeno, de qualquer maneira.

Não.

Que vai ao futebol, pelo menos.

Primeiro porque o futebol brasileiro é uma coisa tão mal organizada, tão esculachada, tão esculhambada, tão primariamente dirigida por todos os dirigentes, sem exceção, que ele nem sabe exatamente qual o público que ele quer. O futebol não sabe se ele quer a classe A, a classe B ou a classe C. O futebol não fez uma pesquisa pra saber por que é que as pessoas não estão indo mais ao estádio – ninguém sabe, aí ficam sacando: é a violência, é não sei o quê, é o jogo ruim, é o jogador… Tudo saque! Não tem nenhuma pesquisa que diga isso. Não tem nenhuma pesquisa que diga. Clube de futebol não sabe nada, dirigente de futebol não sabe nada, são todos primários, são todos muito maus dirigentes, MUITO maus dirigentes… Às vezes o cara é bom pro clube dele, mas é péssimo pro futebol em geral… São muito passionais, não têm visão global da coisa, não têm visão geral do esporte em si. Então, não adianta chegar e “Ah, eu consegui um negócio do cacete pro Flamengo”, e aí arrebentei com o Fluminense e o Vasco. E daí? Daqui a seis meses, tá precisando do Fluminense e do Vasco. É besteira, é… Sabe? O futebol é muito mal dirigido! Você não pode ter um estádio como o Maracanã, cobrando a arquibancada a cinco cruzados, o mesmo preço pra toda a extensão daquela arquibancada. Você vai aos estádios europeus, os estádios italianos, tem cinco divisões de preços diferentes.

Só em arquibancada?

Só em arquibancada. Você não pode, no meio do Maracanã, sentado no meio, pagar o mesmo preço de quem tá atrás do gol. Outra coisa: não existe mais, em lugar civilizado, em país civilizado, estádio – do porte do Maracanã – com aquele degrau de cimento. Tudo já tem uma cadeirinha e tal. Eu acho que o futebol joga fora o público A achando que o público dele é C, e não é. Porque o público C vai de geral. O público C não tem dinheiro pra ir mais na arquibancada. Não tem dinheiro pra ir… Aliás, não tem dinheiro pra porra nenhuma! A realidade é essa. Então o futebol tá namorando o público C achando que “tá muito caro pro salário mínimo”. O salário mínimo não tem impacto pra nada, pô! Vai ter o que o salário mínimo no Brasil? A posição minha não é elitista não, ela é a realista. Eu acho que deveria ter lugar pro salário mínimo. Só que o país tá tão esculhambado  – discute-se um salário mínimo de 120 cruzados, como se fosse algum problema muito grande – que de repente você bota a cinco cruzados… Hoje cinco cruzados são 6% de um salário minimo a 80 cruzados. Então não pode ir mesmo. Seis por cento do salário bruto dele representa uma entrada de futebol, ele não vai poder ir. Então, se você passou pra cinco cruzados, você perdeu esse público todo. Agora, o futebol não tem noção disso, não analisa isso, não pensa nisso. “Ah, aumentaram pra cinco cruzados.” Se perguntar por que aumentaram pra cinco cruzados, não sabem dizer a você por quê.

Eu ouvi dizer uma história de que é porque queriam quatro, mais aí inventaram que não iam ter troco…

Você acha que alguma coisa pode ser dirigida assim? Não pode, né? Então, é muito mal dirigido, no geral… Eu… E é um dos motivos que me levaram a não ter o menor envolvimento passional com futebol. Eu não acredito em dirigente de futebol. E digo a eles isso cara a cara, eles sabem disso.

Pra terminar: quem você acha que vai ganhar o segundo turno (do Campeonato Carioca)?

Não tenho a menor ideia.

Não…

Não. Tem quatro candidatos!…

Não descarta ninguém?

Não. Amanhã deve ter um jogo do Vasco, difícil, contra o Americano em Campos… Outra coisa que eu não faço é adivinhação. (risos)

Não, eu não pedi pra você dizer quem vai ganhar, eu pedi pra você…

Acho que esse é um negócio também que mata muito o comentarista esportivo.

Ele fazer futurologia?

Ah… Porque o público cobra.

Mas quem você acha que tem mais chance, ou tá tudo igual?

Tudo igual.

Rigorosamente?

Tem uns times bons, outros times muito mal… Tem times que são bons no papel, como o do Vasco, e ruins no campo… Tem um time que é uma incógnita, que é o Botafogo, você não sabe se ele joga bem hoje, joga mal amanhã… É difícil, é difícil. Se fosse fácil, não era tão bom, né? (O Botafogo acabou ganhando o segundo turno e foi campeão carioca, após 21 anos, na decisão com o Flamengo.)

E o Brasil na Copa do Mundo, tem chance?

Tem, claro que tem.

Boas?

Claro, pô! Claro que tem, muito boas chances. É só ter organização.

Mesmo sendo na Europa (na Itália), ou isso não…

Menor problema, o Brasil já foi campeão na Europa.

Uma vez.

Bom…

É, foi o único também, em compensação.

Foi campeão na Europa, foi campeão no México… Não tem nenhum problema.

Time nós temos?

Claro quem tem. O time, o futebol, tem. Não tem nenhum problema não. Pode ser campeão. (O Brasil perdeu da Argentina nas oitavas-de-final e terminou a Copa em nono lugar.)

A desorganização atrapalha bastante…

Claro. Claro. Falta de calendário, falta de organização… Agora mesmo tá aí, uma esculhambação, um negócio dum jogo da seleção brasileira que é no dia seguinte ao Campeonato Carioca. Só que o jogo da seleção tá marcado há um ano! A Federação Carioca de Futebol é que marcou essa porra dessa rodada intermediária em cima do outro jogo..

E tá dando uma confusão danada…

Claro, porque tá entregue na mão de incompetentes, desonestos… Por causa disso. Aí você realmente não pode se interessar pelo futebol de maneira passional. Esse jogo da seleção brasileira, o aniversário da CBF, se não me engano, tá marcado há seis meses! Aí a Federação de Futebol do Rio de Janeiro marca um jogo pro dia anterior. Ela achava o quê? Que os clubes cariocas não iam ceder jogadores pra seleção?

Que nenhum clube carioca ia ceder…

Pomba, peraí! Peraí! Aí você vê como é desorganizado o futebol, como os caras são – como eu disse antes – incompetentes, mal intencionados e burros. Isso é uma prova! Esse jogo, essa discussão toda em torno de cede ou não cede jogador… É que a CBF tá tratando com luvas de pelica, porque, na realidade, a culpa é da federação. Ela não podia ter marcado uma rodada anterior a um jogo da seleção no dia seguinte. Só isso.

O PERDÃO QUE EU PEÇO

por Claudio Lovato


Gabriel García Márquez escreveu certa vez: “Quem não tiver Deus que tenha superstições”.

Puxa vida, mestre querido, não dava para ter dado uma aliviada nessa?

Não dá para ter as duas coisas, não?

Que Deus me perdoe, mas faço minhas coisinhas quando meu time entra em campo.

E também quando as coisas no jogo estão complicadas.

E principalmente para que as coisas não se compliquem demais.

E para que se resolvam quando complicarem. 

Não posso revelar que coisinhas são essas, porque o segredo é parte fundamental nesse negócio. Todo mundo sabe disso.

Gabo, mestre Gabo, por que tratar esse assunto de forma tão, digamos assim, excludente? Hein? Hein?

O João, que certamente está aí contigo, no lugar maravilhoso em que vocês merecem descansar (descansar coisa nenhuma), disse um dia: “Se superstição ganhasse jogo, o Campeonato Baiano terminaria empatado”.

O João sabia das coisas, assim como você.

Vocês bancavam os céticos, mas viviam nos emocionando com o que falavam e escreviam.

E a gente querendo posar de bacana, tentando dar pinta de que estava entendendo tudo o que vocês estavam falando e escrevendo.

Tudo isso me vem à cabeça agora porque a minha senhora disse hoje:


– Esta tua camiseta do Grêmio não dá mais pra usar! Tá até rasgada debaixo do braço!

E eu, mais que rapidamente, peguei a camiseta da mão dela e a guardei em lugar seguro e só por mim conhecido.

Essa referida camiseta… Desculpem, não posso falar mais.

Que Deus me perdoe.

Que Gabo releve.

Que João não me condene.

Essa camiseta me dá sorte.

Essa camiseta nos dá sorte.

Que assim continue.

Que assim sempre seja.

Sempre será.

Amém.  

GESTÃO DE CONFLITOS

por Idel Halfen


O mercado esportivo, principalmente nos países mais maduros, tem apresentado um crescimento extremamente relevante, fato que leva à busca incessante por oportunidades de negócios, entre as quais se incluem as possibilidades para a exposição da marca.

Apesar de não considerar a exposição como o único, tampouco o maior, benefício para uma marca que investe no esporte, não podemos ignorar que a grande maioria das empresas ainda busca esse tipo de contrapartida como indicador de retorno, fato que tem levado a uma busca incessante pela criação de novas propriedades.

É certo que muitas dessas “novas plataformas” fogem totalmente do contexto, mas isso, no meu modo de ver, nem é o mais grave, até porque a frequência de aparições faz com que as pessoas acabem se acostumando. O que considero mais preocupante são as situações que implicam em desagradáveis conflitos de interesses, sem que tenha havido previamente um estudo que ajudasse a regulamentares esses crescentes casos.


No futebol é absolutamente normal ver o Cristiano Ronaldo –  patrocinado pela Nike – usar sem maiores consequências os uniformes do Real Madrid que tem o patrocínio da Adidas, ainda que calce a chuteira da marca norte-americana, visto o item ser de livre escolha por interferir na performance. O inverso acontece com o Messi, patrocinado pela Adidas, mas que utiliza os uniformes do Barcelona que é suprido pela Nike.

Na contramão desse mar relativamente sereno no futebol, vemos na NBA um cenário mais beligerante, onde alguns jogadores tentam ocultar a logo da atual patrocinadora da liga – a Nike – que aparece nas peças e outros como o ala-armador Klay Thompson do Golden State Warriors que em todas as coletivas de imprensa retira da mesa a garrafa de Gatorade que “adorna” o móvel. As inúmeras retiradas do produto renderam uma alta popularidade ao ato. 

Essa atitude tem sua motivação o fato de o jogador possuir o patrocínio de um concorrente da Gatorade, o Body Armor, que já foi tema do blog – http://halfen-mktsport.blogspot.com.br/2014/09/bodyarmor-de-frente-com-os-gigantes.html.

Analisando especificamente esse caso, somos tentados a concluir que a obrigação de se ostentar uma garrafa de isotônico sobre uma mesa de entrevista pós-jogo foge do contexto do evento, mesmo porque o atleta nem aparece consumindo o produto.

Tal iniciativa me parece ser mais um daqueles casos que para se forçar a exibição do patrocinador são “criadas” propriedades que pouco agregam à marca, visto a dificuldade de serem ativadas, e criam constrangimentos aos atletas que com elas não possuem vínculos.


Nesse caso, no entanto, a frequência com que vem se repetindo pode estar sendo interessante para todos, exceto a NBA que fica exposta a uma situação desagradável. A BodyArmor tem seu nome divulgado, mesmo sem ter o produto exibido, a Gatorade, por sua vez, passou a ser percebida por muitos que nem reparavam a existência da garrafa na mesa de entrevistas, enquanto que o jogador chama a atenção da indústria para a necessidade da imposição de limites e respeito à imagem dos atletas nos contratos de patrocínios.

Por mais que possa parecer simples, a elaboração de um contrato dessa natureza requer o conhecimento de todas as propriedades envolvidas e possíveis de serem negociadas entre as partes, sob o risco dos conflitos chegarem num patamar que inviabilize o crescimento do setor.

OS IRMÃOS DA BOLA

Por Marcos Vinicius Cabral

A música “Assim Sem Você”, composta por Abdullah e Cacá Moraes, se tornou um dos grandes hits da dupla gonçalense Claudinho e Buchecha, que por força do destino, chegou ao fim em virtude do acidente automobilístico que vitimou Buchecha, na noite de 13 de julho de 2002, na Rodovia Presidente Dutra, em São Paulo.

A dupla de músicos que conhecia como poucos as riquezas nascidas do outro lado da poça, certamente teria incluído na letra da bela canção os nomes de Flávio e William, a dupla de boleiros que mais esteve em evidência e fez história em Niterói, nos anos 80
.
Nascido no Barreto, em Niterói, Flávio Henrique Cordeiro de Oliveira iniciou a paixão pelo futebol ainda pequeno, e quando chegava o Natal, colocava na janela de seu quarto uma meia com seu pedido em um pedaço de papel mal escrito:


Flávio exibe seu troféu

“Papai Noel, fui um garoto obediente, passei de ano e, por causa disso, te peço uma bola de futebol de presente”, dizia o bilhete que era repetido todos os finais de ano.

A adoração ao bom velhinho se estendeu nas idas ao Maracanã e despertou no garoto, então com 10 anos, um sentimento que nutre até hoje pelo clube das Laranjeiras:

– A paixão pelo Fluminense foi crescendo com meus pais levando eu e minha irmã para assistirmos a chegada do Papai Noel de helicóptero e mais tarde aos jogos do Fluzão – diz hoje o tricolor com 46 anos.

E como torcedor do clube das três cores que traduzem tradição, escolheu Rivelino – um dos maiores jogadores do futebol brasileiro – para ídolo:

– O cara era tão bom que arrumaram um lugar para ele jogar na seleção de 70 – confidencia sempre aos amigos mais chegados nas resenhas de futebol regadas a muita cerveja e tira-gosto.

Se o criador do elástico – drible até hoje imortalizado pelo bigodudo camisa 10 tricolor – seria outra paixão avassaladora na vida do garoto ruivo de olhos esverdeados, seus pais, seu Joseir e dona Alcely, jamais ousariam imaginar que o filho se transformaria em um habilidoso meia niteroiense.


O artilheiro William

Não muito distante dali, William Neves, nascido no Cubango, também em Niterói, dava seus primeiros chutes em uma bola na rua Visconde do Uruguai, centro da cidade onde morava: 

– Lembro que aos domingos fechávamos a rua para jogar futebol. Nossos pais, sentados com suas cadeiras de praia nas calçadas eram para nós a torcida! – diz lembrando que recebia abraços de seu Evani e dona Tânia nas invasões ao “campo asfáltico” para comemorar cada gol marcado.

Com apenas 7 anos de idade, ia com a família toda ao Maracanã não para ver o bom velhinho, mas para ver os jogos do Vasco, clube de coração.

– A paixão pela instituição Vasco da Gama começou desde cedo quando convivíamos com Roberto Dinamite e outros grandes ídolos, já que meu pai era sócio benemérito do clube – diz o apaixonado cruzmaltino hoje com 47 anos.

Mas o início de ambos seria em lugares completamente diferentes.

Enquanto William com 10 anos disputava o campeonato mirim de futsal em Niterói, defendendo as cores tricolores do Fluminensinho da Fuscaldeza, Flávio treinava com Jair Marinho – considerado o maior garimpador de talentos da região – no Combinado Cinco de Julho, no Barreto.


Mas se a bola os tornaria amigos inseparáveis, não foi através dela, e sim dos livros, que iniciariam a amizade em 1982, no Colégio Estadual Henrique Lage, na 5ª série, na sala 501.

Com o passar dos anos, começaram a escrever seus nomes com letras maiúsculas por onde jogariam, solidificando com isso a relação amigável, quando viraram vizinhos no Barreto.

Dali por diante, seus nomes começariam a ser notados pelos moradores, amigos, parentes e os que passaram a acreditar que aquela dupla poderia “vingar” no futebol.

Em 1985, com 14 anos, Flávio era destaque do Fluminense nos treinos nas Laranjeiras, mas em virtude do horário das aulas do colégio, teve que parar e voltar meses depois.


Como prova de que voltaria, recebeu uma carteirinha (foto) que lhe permitia livre acesso as dependências do clube.

Voltou mas teve que ser reavaliado em Xerém, numa peneira com mais de mil garotos.

Desse número exorbitante de meninos que sonhavam em ser jogador de futebol, passou com sobras com mais quatro, sendo um deles um certo Edmundo, que acabou indo para o Botafogo e anos mais tarde se tornaria um dos maiores jogadores da história do Vasco.

Já William, viveria de 1984 a 1987 em São Januário, marcando gols e conquistando respeito até o dia em que foi mandado embora por Isaías Tinoco, que era o supervisor das categorias de base.

– Tudo não passou de uma brincadeira de mau gosto dos outros jogadores, que me trancaram no banheiro e como o treino estava prestes a começar, tive que arrombar a porta! – lembra, ciente do erro.

Como toda ação gera uma reação, o supervisor vascaíno ameaçou dispensar todos os jogadores caso não aparecesse quem havia feito aquilo.

– Acho que assumi meu erro, mas não podia ficar sem treinar. Além do mais, não poderia deixar que inocentes fossem desligados do clube por minha causa! – ressalta o ex-camisa 9 dos juvenis.

Se Fluminense e Vasco não souberam valorizar duas jóias raras como Flávio e William, eles seguiram na estrada da vida sem olhar no retrovisor a mágoa que ficou no passado, nos clubes de seus corações.

A vida passava celeremente e nos campos do bucólico bairro do Barreto, de 1986 a 1987, ganharam todos os festivais assim como torneios que disputaram.

Tornaram-se a sensação do 1º campeonato do Ceclat (já extinto), jogando pelo Pouca Rola Futebol Clube, onde imortalizaram as camisas 9 e 10.

Não seria, de forma alguma, a primeira e tampouco a última vez que jogariam juntos, enfrentando arquirrivais como Viradouro, Flor do Campo, Unidos do Barreto, Grêmio, Pirata e todas, sem exceção, consideradas grandes equipes.

Um terceiro lugar para uma equipe estreante, modesta e recheada de garotos, valeu mais que um título, naquela competição em 1988.

O sucesso da “Dupla Infernal” dentro das quatro linhas, acabou rendendo para cada uma moção de aplausos concedido pela Câmara Municipal de Niterói, datada em 11 de setembro de 1988 e assinada por Roulien Pinto Camillo, então Secretário Municipal de Esporte e Lazer.   

No ano seguinte, enquanto Flávio continuava encantando a todos com seu futebol vistoso no terreno de terra batida dos campos niteroienses e buscando um lugar ao sol em algum clube do Rio, William se aventurava destemidamente pela região serrana do Estado.

Para o centroavante da camisa 9, O difícil não foi ficar longe da família e dos amigos para obter a aprovação nos testes em 1990, foi ouvir de um dos Diretores que mesmo aprovado no Friburguense Atlético Clube, o clube dispensaria toda categoria juniores por estar encerrando suas atividades.

– Lembro-me até hoje daquele menino alto, magro e com uma qualidade técnica impressionante. Eu estava começando minha carreira no Friburguense, onde o indiquei para treinar. Uma pena não ter sido profissional! – lamenta o amigo e ex-jogador Pires, que fez muito sucesso no Fluminense no início da década de 90.

Apesar do golpe desferido pelo destino, regressou ao Barreto para vestir a camisa 9 que sempre foi sua e ajudou o Pouca Rola na conquista do título, que seria inédito na sua curta mas marcante história.

Na disputa do 5º campeonato do Ceclat,  com uma equipe mais técnica e com contratações que proporcionavam aos torcedores a certeza da conquista daquele caneco, sucumbiram para um Grêmio desacreditado em pleno Combinado Cinco de Julho.

Como todo grande time tem suas vulnerabilidades, o Pouca Rola não seria exceção.

Resultado: em um contra-ataque fulminante, o habilidoso e endiabrado Guina fez o gol que classificou a equipe para a final.

– Aquele time foi um dos melhores que joguei. Mesmo sem ter vencido nenhum campeonato e ter durado apenas 5 anos, até hoje é lembrado por todos no bairro! – relembra o camisa 8 Lito.


E completa:

– Flavinho e William foram, sem sombra de dúvidas, os maiores com quem tive o privilégio de jogar. Os caras eram foras de série. Só lhes faltou um título pelo Pouca Rola”.

Se os deuses do futebol castigam grandes jogadores com algumas derrotas, Flávio e William souberam absorver como uma ostra as toxinas dos insucessos do mundo da bola.

E foi na Ilha da Conçeição, em Niterói, que depuraram essa falta de títulos no Barreto em vitórias no campo do Azul e Branco.

Não baixaram a cabeça e vestiram a camisa do Embalo Futebol Clube e foram tricampeões nas temporadas 91/92/93.

Ainda nesse período, Flávio já era jogador profissional, depois de passagens por Mesquita, São Cristóvão, Bangu e acabou sendo federado pelo Canto do Rio Foot-Ball Club, onde o canhotinha Gérson deu seus primeiros lançamentos no futebol.

Como o clube niteroiense era patrocinado pela Prefeitura da cidade, chegou uma época que a parceria foi desfeita e seus jogadores receberam passe livre.

Em virtude desse acontecimento, um empresário levaria Flávio para jogar em Portugal mas o craque da camisa 10, que driblava os adversários com extrema facilidade, foi marcado em cima por um adversário inimaginável: uma hepatite! 

Se recuperou mas teve logo depois uma grave contusão no ligamento do tornozelo esquerdo ocasionada pelos carniceiros implacáveis.

Abandonou o futebol, mas o futebol não o abandonou.

E seu companheiro William, amuado com as artimanhas do destino, trocava os pés pelas mãos e iniciava sua carreira como compositor de samba-enredo.


Equipe do Tá Mole Mas é Meu

A química entre os dois era tanta que ainda deu tempo de, anos mais tarde e já com alguns fios de cabelo branco à mostra, conquistarem o título do primeiro campeonato de veteranos jogando pelo Tá Mole Mas é Meu.

Hoje, a bola com que tanto conviveram e os transformaram em lendas em Niterói é coisa do passado.

Mas não para nós que adoramos contar história de quem realmente tem algumas para nos contar.

 O Museu da Pelada promoveu o encontro desses dois monstros das peladas daqui, do outro lado da poça como os cariocas chamam.

E foi na quadra da escola de samba Tá Mole Mas é Meu, no bairro do Fonseca, onde William – presidente e  funcionário municipal -, ao lado de Flávio – supervisor de manutenção de uma empresa marítima -, me recebeu para reviver causos que só esse esporte maravilhoso chamado futebol pode proporcionar.

E, sobretudo, foi uma viagem insólita em uma tarde inesquecível onde resgatei histórias desses dois grandes jogadores e amigos que a bola me deu.

A CARTA DA BOLA PARA RONALDINHO

por Rafytuz Santos


Caro Gaúcho,

Aqui vai uma confissão de quem vive o futebol como ninguém…

Por tempos eu fui tratada de qualquer forma, anos e anos sendo chutada por jogadores pernas de pau ou até mesmo acima da média em Copas do Mundo, Libertadores, Brasileirões, Liga dos Campeões… anos se passavam e eu sempre era tratada sem o mínimo respeito, com o único objetivo de marcar o gol.

Mas em 1997 isso mudou! Um menino franzino, rápido e sorridente me fez feliz, como eu não era desde as épocas “Pelésticas”! Me dominava com maestria, me passava pelos vão das pernas mais envergonhadas, me fatiava por cima dos mais inúmeros penteados, me jogava por baixo das mais amontoadas formações de barreiras, me balançava nos seus encantadores elásticos…

Como esquecer os momentos com você? Quando sambou comigo na Inglaterra (e eu nunca tinha feito isso hahaha). Quando me fez viajar pelos céus na cobrança de falta na Copa do Mundo de 2002. Quando te vi sendo aplaudido pelo rival… E até quando ia me chutar, você olhava para o outro lado, para não me ver sofrer! Com você eu me sentia uma varinha mágica nas mãos de um bruxo!

Ronaldinho Gaúcho, meu filho! Ninguém me tratou como você, e sentirei saudades das suas bruxarias.

Hoje por você eu paro de rolar… E jamais rolarei como você fazia.