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EU SOU UMA CAMISA

por Claudio Lovato


Eu sou uma camisa de futebol. Fui fabricada em uma pequena confecção de periferia. Fui comprada em uma loja do centro da cidade e usada por meu primeiro dono durante muitos anos. Eu me lembro como se fosse hoje da nossa primeira ida ao estádio, juntos. Mas uma nova camisa um dia chegou, um presente de aniversário, e eu acabei esquecida em uma caixa de mudança, misturada a roupas velhas e brinquedos quebrados. Numa limpa feita na casa pela mãe do primeiro dono, fui doada a uma escola pública. Foi assim que cheguei às mãos do meu segundo dono.

Eu já não era nova, mas foram bons tempos. Um dia, num dos campinhos do bairro, num jogo dos sem-camisa contra os com-camisa, meu segundo dono me pendurou numa cerca de arame e aconteceu que um enxame de abelhas invadiu o campinho e todos saíram em disparada e por causa disso conheci meu terceiro dono.

Ele me achou lá e resolveu ficar comigo, uma camiseta gasta, com o número 9 descosturando (sim, na época em que nasci os números eram costurados). Embora não demonstrasse muito orgulho em me vestir, eu sentia que meu terceiro dono gostava de mim. E era jogo todo dia, dá-lhe bola, mas um dia tudo acaba e foi num Natal que comecei a ficar esquecida pelo meu terceiro dono, porque ele ganhou uma camisa nova, uma camisa oficial licenciada, presente do pai dele, e meu lugar voltou a ser uma caixa, dessa vez uma caixa de ferro, e foi assim que passei a ser usada como revestimento de uma caixa de ferramentas do pai do meu terceiro dono.

Achei que meu destino seria virar estopa, mas então aconteceu que o pai do meu terceiro dono foi chamado por um motorista cujo carro tinha enguiçado na estrada. Ele pegou as ferramentas e foi em socorro do motorista. Lá chegando, abriu a caixa para começar a trabalhar e então o motorista me viu. Ficou curioso, a princípio; depois, desconfiado, e então perguntou ao pai do meu terceiro dono se poderia me ver de perto. Eu senti que conhecia aquele homem, a aparência, a voz – a aparência e a voz de um homem velho, de um homem velho e triste –, mas minha memória já não era lá essas coisas, sempre vivi para o momento, as pessoas é que depositam em mim suas lembranças, sou um símbolo do que viveram e isso me deixa feliz.

Quando o motorista me pegou e me virou de costas e viu o meu número 9 quase caindo, balbuciou palavras impossíveis de se entender e em seguida começou a chorar, e o pai do meu terceiro dono ficou sem saber o que dizer e o motorista perguntou quanto o pai do meu terceiro dono queria por mim e ele respondeu que o homem podia ficar comigo sem pagar nada, e o motorista então me dobrou com muito cuidado e carinho e me colocou debaixo do braço e foi embora e só quando chegamos em frente à casa é que me dei conta de que aquela era a casa do meu primeiro dono – o portão de ferro, a escada de lajotas levando até a porta de entrada, a sala, o quarto com o armário em que eu tantas vezes dormi – e não precisei de muito tempo para entender que o meu primeiro dono não morava mais ali nem em nenhum outro lugar neste mundo, e me convenci de que o armário para onde eu voltava seria o lugar do meu definitivo repouso, seja lá o que “definitivo” possa significar numa vida como a minha.  

O GOLEIRO DO CENTENÁRIO

Ser goleiro do Flamengo já é uma pressão imensurável, mas defender a meta rubro-negra no centenário do clube é uma responsabilidade e tanta! Por isso, a equipe do Museu quis saber mais sobre a história de Emerson, o camisa 1 daquela equipe que teve o ataque dos sonhos, mas não deslanchou.

Para quem não se lembra, a diretoria conseguiu reunir Sávio, Romário e Edmundo e a expectativa era gigantesca no ano em que o clube completava 100 anos!

– Os olhos do Brasil inteiro estavam voltados para cá! Apesar de não conquistar grandes resultados, foi uma grande experiência atuar naquele time! A pressão era muito grande!

Cria do Grêmio, Emerson atuou no Tricolor dos 8 aos 23 anos até ser negociado com o Flamengo em uma troca que envolveu também Paulo Nunes, Magno e o zagueiro Agnaldo. No Rubro-Negro, logo assumiu a titularidade e foi campeão da Taça Guanabara. Contudo, perdeu espaço e pouco atuou nos dois anos em que defendeu o clube.

À procura de novos desafios, rodou por América-RJ, Ituano e Bragantino até voltar ao Sul. Dessa vez, para vestir a camisa do Juventude e entrar para a história do clube.

– Vencemos a Copa do Brasil de 99 contra o Botafogo no Maracanã. É, até hoje, o maior título da história do Juventude e o último grande público do Maracanã! – orgulha-se o goleiro.

Se fazer parte da história da Juventude já não era o bastante, o arqueiro foi contratado pelo Bahia e não demorou para cair nas graças da torcida. Permaneceu no clube de 2000 a 2005 e é, até hoje, o goleiro que mais vestiu a camisa do Tricolor!

Ao ser perguntado sobre seu maior momento no Nordeste, Emerson não teve dúvidas:

– Em 2001, fui Bola de Prata e foi o último grande ano do Bahia. Fomos campeões baianos, do nordeste e terminamos em oitavo lugar no Campeonato Brasileiro!

Vale lembrar que, na época, o futebol nacional contava com grandes goleiros, como Júlio César, Rogério Ceni, Dida e Marcos! É ou não é para se orgulhar do feito?

Após pendurar as luvas, Emerson já realizou diversas atividades, mas todas elas relacionadas ao futebol:

– Minha vida é o esporte! – confessou.

Assista ao vídeo acima e confira a resenha completa!

SILVA E O SEU TALENTO NATO

por Pedro Barcelos


Foto: Alex Ribeiro

Semana passada, durante o futebol dos fumantes, na Barão do Bom Retiro, Grajaú, um daqueles momentos cruciais na vida de uma partida aconteceu. O jogo, péssimo como de costume, não valia nada. O coroa do xadrez na mesa de concreto nem ameaçou espiar os jovens atletas, visto tamanha desenvoltura com a redonda. Mas não foi sempre assim, os velhos já foram felizes. Antes, o risco de uma bolada atrapalhar seu sossego era nulo.

Fato é que no meio da batalha, Marquinhos, de colete azul, dispara: “o Silva tem um talento nato”, e, para mim, aquilo foi uma porrada. Sim, às vezes, diante de tamanho absurdo, o tempo para. São os três segundos após o soco acertar o estômago. E fiquei refletindo: “talento nato”… o que significava aquela profecia? 

Uma concepção sartriana do futebol? Ou apenas uma redução existencial e gratuita da vida do atleta? Uma visão de que sua capacidade esportiva estivesse umbilicalmente ligada ao sofrimento de parto da senhora Silva, sua estimada mãe, me assombrou. Alguém gritar “impedimento” no meio daquela partida teria sido menos acachapante para todos os presentes.

Tal frase, proliferada diariamente nos veículos midiáticos que tentam falar sobre futebol, não causa tanto impacto. Falar isto para Garrincha, Zidane e Messi não gera surpresa; eles, de fato, têm algo de sobrenatural. Mas vale lembrar que Marquinhos, parente longínquo de Nostradamus, proliferou tal sacrilégio ao Silva, jogador da pior espécie que torcemos todos os dias para que a seleção natural impeça seus descendentes de seguirem a mesma carreira…

Posto isto, minha inquietação não acabou. Parado, no meio da quadra, pensava sobre as possibilidades irreais de tal acontecimento cósmico ser possível. Qual a ligação entre os talentos natos e o dito “futebol de índio”?  Suas virtudes futebolísticas vinham do mesmo acontecimento cósmico? Silva, sem dúvida, não apresenta um futebol europeu de primeira grandeza, mas sua vida estar atrelada às suas capacidades em quadra seria um dano para toda a sociedade…

Perdido nos pensamentos, vi Silva receber a bola pela esquerda. O marcador, que ainda carregava aceso seu cigarro, não conseguiu acertar o bote e Silva saiu na cara do gol. O goleiro, com aquela certeza própria dos ignorantes, não pensou duas vezes: saiu para quebrar a perna do pobre atacante. A falta de coordenação motora do Silva é tanta que o torna um jogador imprevisível. 

Quando todos tinham como certo que assistiríamos a primeira aposentadoria do futebol dos fumantes, com direito a indenização médica, Silva chuta, marca e ainda foge da tentativa de homicídio do goleiro. Ainda no centro da quadra, afirmei para mim mesmo: “é, o Silva tem um talento nato”.

Saí da quadra, comprei uma cerveja, acendi meu cigarro e parei para admirar o término da partida. Coletes azuis 5, coletes verdes 3.  

O MENINO QUE NÃO GOZAVA

por Zé Roberto Padilha


Era uma vez um país do futebol. Nele, a maioria das crianças ganhava de presente uma bola de meia. Que virava de plástico na medida em que cresciam, depois no Natal a dente-de-leite, até alcançarem a maciez de uma toda revestida de couro. E a levavam para jogar com amigos em terrenos baldios próximo de casa. Felizes toda vida, cortavam bambus, erguiam traves e demarcavam o alvo da cobiça. Quem conseguisse colocá-la no fundo das redes que as avós costuravam, esse era o segredo, tinha até um goleiro à sua frente para dificultar, dariam um grito de gol. Do orgasmo pleno com que passaram a infância e a adolescência jogando futebol.

Neste país, um menino atrevido, de Três Corações, foi coroado Rei porque alcançou o orgasmo 1.286 vezes. O gol, neste país encantado, era o grande momento, a sublime relação de um menino, um campo e uma bola de futebol.

Mas como todo conto de fadas a estragar e a envenenar a maçã, tinha um garoto mau. Que chutava de canela, sempre esteve na reserva e jamais sentiu o prazer de colocar uma bola no fundo de uma rede. Por vingança, virou cartola. Tão ruim e determinado, alcançou a presidência da FIFA. E não sossegou enquanto não inventou uma camisinha suíça para revestir a bola. E a batizou de VAR.

Antes, para sentir o sublime prazer, bastava um olhar furtivo pro bandeirinha e sair a dar um soco no ar. Agora, com o freio de mão puxado, a espera que sua relação seja revista pelos país, avós e tias monitorando o ato em uma sala fria e calculista, nem o Gabigol goza mais quando marca.

O menino mau, que nunca gozou mas fala inglês arranhado e sabe fazer chocolate suíço, acabou com o prazer de um país de amar e jogar futebol.

LICO, A CEREJA DO BOLO DO FLAMENGO DE 1981

por Luis Filipe Chateaubriand


O incrível time do Flamengo de 1981 vinha sendo formado desde 1978, época em que o antológico gol de Rondinelli deu o título carioca ao rubro-negro.

Era, já em 1981, um time fortíssimo, encorpado, quase pronto. Só que faltava o ponta esquerda.

Júlio César, o lendário Uri Geller, havia ido jogar na Argentina, depois de levar muitas botinadas de zagueiros limitados e violentos. 

Baroninho, o ponta esquerda que veio do Palmeiras, chutava forte, mas não ajudava na marcação e não oferecia opções táticas. 

Adílio, gênio da bola, jogava bem por ali, mas preferia atuar como meia direita, onde rendia mais.

Mas eis que Paulo Cesar Carpegiani, o craque recém aposentado – primeiro, auxiliar do técnico Dino Sani, depois, o próprio técnico da equipe – descobriu a solução no próprio elenco.

Lico, que havia chegado do Joinville de Santa Catarina no ano anterior, era um meia / atacante versátil, insinuante, dinâmico, capaz de jogar em vários setores ofensivos de uma equipe.

Com sua versatilidade, ganhou a vaga na ponta esquerda, no lugar de Baroninho.

Atuava muito bem por aquele setor, mas não somente por ali. Revezava com Tita, indo para a direita e o outro, para a esquerda. Revezava com Adílio, indo para a meia e o outro, para a esquerda. E revezava até com Zico, metendo bolas para este, e recebendo bolas deste, quando, nas palavras de Armando Nogueira, o “arco e flecha” recuava.

A entrada de Lico no time deixou atordoadas as defesas adversárias, pois a movimentação dos rubro negros deixava zagueiros, laterais e volantes oponentes sem saber quem acompanhar, quem marcar.

A verdade é uma só: A entrada de Lico na formação titular arrumou o time, seja taticamente, seja em talento, seja até em consistência defensiva, pois, ao contrário de Baroninho, também ajudava na marcação.

Não é à toa, portanto, que, em livro que escreveu sobre sua vida, Zico, ao se referir a Lico, o lista entre os cinco maiores jogadores da história do Flamengo. Afinal, ele arrumou aquele time, foi a chamada cereja do bolo.

Pelo brilhante trabalho que Lico desenvolveu em 1981 e na primeira metade de 1982, não seria absurdo Lico jogar pela Seleção Brasileira a Copa do Mundo daquele ano. Telê Santana, no entanto, preferiu Éder, um ponta esquerda muito habilidoso, mas nulo taticamente, ao contrário de Lico. 

Uma coisa é certa: a amarelinha cairia bem no catarinense que moldou a última versão do melhor time de futebol que este escriba viu jogar!

Luis Filipe Chateaubriand acompanha o futebol há 40 anos e é autor da obra “O Calendário dos 256 Principais Clubes do Futebol Brasileiro”. Email: luisfilipechateaubriand@gmail.com.