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O DIVINO ADEMIR DA GUIA: ENFIM, O PALMEIRAS

por André Felipe de Lima


Chamar um jogador de bonde é, dependendo das circunstâncias, uma indelicadeza. Chamar um craque, um gênio  como Ademir da Guia de bonde é crime de lesa pátria. É pecado amoral, diria Nelson Rodrigues. E o cartola do Bangu Mauricio Cesar Buscácio cometeu este desatino, sem direito a sursis ou qualquer coisa que o valha. Depois do sucesso estrondoso de Ademir no torneio internacional de Nova Iorque conquistado pelo Bangu, em 1960, e na edição seguinte, em 1961, quando a imprensa divulgava que o Barcelona pagaria 16 mil dólares para tê-lo, o presidente do Bangu mandou redigir em ata ter “vendido um ‘bonde’ para o Palmeiras por três milhões e oitocentos mil cruzeiros”. 

Mas a rusga do cartola não era, propriamente, com Ademir e sim com o pai do jovem craque. “O presidente do Bangu, naquela época, não me olhava com muito carinho. Outros dirigentes achavam que o Ademir não se firmaria na equipe principal. Eu tinha vontade de levá-lo para outro time”, confessou Domingos da Guia a Kleber Mazziero, biógrafo do filho. Até enterro simbólico do presidente do clube de Moça Bonita a torcida banguense fez na porta da sede do Bangu. Tudo em vão. Ademir iria mesmo embora.

Domingos deu a notícia ao filho: o destino é o Palmeiras. No dia 7 de agosto de 1961, Ademir assinara o contrato com o novo clube. Receberia um salário mensal de 35 mil cruzeiros. O pai, naturalmente, emendou alguns conselhos, o principal deles de que o futebol de Ademir era “de berço” e que, portanto, deveria se cuidar no campo, durante os contratos e na vida pessoal. “Nada de farras”. Ademir, ao longo de uma das mais brilhantes carreiras de um jogador de futebol, seguiu as recomendações do pai rigorosamente à risca.

Embora a animosidade entre os Da Guia e a diretoria do Bangu fosse explícita, o próprio Ademir reconheceu a ajuda financeira que o clube carioca ofereceu: “O Bangu me premiou com 300 mil cruzeiros, em sinal de gratidão pelos anos que o defendi, e o Palmeiras me deu, a título de luvas, um milhão e quinhentos e quarenta mil cruzeiros”. Há, contudo, uma contradição quanto ao valor das luvas. O jornal O Globo, em edição do dia 8 de agosto de 1961, afirma que Ademir recebeu de luvas 540 mil cruzeiros e não os mais de um milhão de cruzeiros, como afirma o próprio jogador, segundo informou a Gazeta Esportiva.

Levaria, no entanto, um tempo até Ademir se firmar no Palmeiras. Na posição de meia-atacante havia Chinesinho e na de centromédio, Zequinha. Ademais, um incômodo problema dentário atrapalhava sua performance e retardava sua estreia. “Além de não me encontrar em perfeitas condições físicas, estou fazendo um tratamento dentário que tem prejudicado sobremaneira minha recuperação.”

Em 1961, Ademir disputou apenas um jogo amistoso, contra a Associação Esportiva Promeca, em Jundiaí, no dia 10 de dezembro. Venceu por 2 a 0 sob o comando de Rubens Minelli. Como Chinesinho fora vendido para o futebol italiano, ficaria, em tese, mais fácil para Ademir da Guia assumir a vaga de titular, mas Hélio Burini, oriundo da Itália, também disputava a posição. A ascensão foi paulatina. Mas era flagrante que deixavam-no numa “salmoura” e a imprensa paulista já questionava se teria valido a pena pagar “milhões” pelo passe de um garoto que sequer era escaldo para amistosos. “Se algum outro clube o pretender, terá que pagar caro, embora a hipótese seja remotíssima. Afinal, quem vai se interessar por um craque que, até o momento, só se exibia nas colunas dos jornais?”

No dia 8 de abril de 1962, Ademir vestiu, enfim, a camisa 10 pela primeira vez na vitória de 4 a 2 sobre o Esporte Clube Paulista, em Santa Bárbara d’Oeste. A primeira partida oficial com o Verdão aconteceu, contudo, no dia 14 de julho, no Pacaembu, contra o Taubaté em jogo válido pelo campeonato paulista. Ademir jogou com a camisa seis e o Palmeiras venceu de 5 a 1.

Ademir, cujo primeiro apelido no clube era “Formigão”, por comer muito nas concentrações, teve de atuar em várias posições naqueles primeiros momentos em que vestiu a camisa do Palmeiras. Foi de centroavante a volante. E não foi somente no time de profissionais. Jogava também no time de aspirantes, tanto que conquistou o campeonato paulista da categoria em 1963. Naquele ano, a tão esperada chance aconteceu. O técnico Geninho o escalou como titular e a resposta viria com o título de campeão paulista para o “Palestra”. Uma conquista memorável que interrompeu a saga de títulos estaduais do Santos de Pelé e Coutinho, que “graças” ao Palmeiras de Ademir não se tornou tetracampeão.

Ademir sempre manteve um relacionamento profícuo com os treinadores que passaram pelo banco do Palmeiras. O “mago” Oswaldo Brandão foi um deles. Com o novo técnico, que chegou ao clube em 1972, o elenco foi reduzido e surgiu a segunda “Academia” palmeirense depois do sensacional esquadrão da década de 1960. 

Ademir esteve nas duas “Academias”. É o maior símbolo de ambas.

GOL E TÍTULO INESQUECÍVEIS


Escolher o gol mais bonito da carreira de Ademir da Guia é tarefa das mais complicadas. Foram muitos. Mas o craque acredita ser o mais genial o que assinalou em 1964, contra a Prudentina, no Parque Antarctica. O jogo terminou 4 a 1 para o Palmeiras. “O Ademar entrou pela direita e atrasou a bola para mim, na altura da intermediária do time deles. Matei a bola no peito e resolvi entrar sozinho. Tive sorte. Driblei o primeiro zagueiro e, em seguida, o zagueiro da sobra. O goleiro Glauco saiu e eu tive de driblá-lo com uma finta seca, que me fez perder o ângulo. Não me afobei e voltei uns passos. Quando tive um ângulo melhor, chutei no alto.” 

Em clássico contra os grandes paulistas, Ademir balançou a rede diversas vezes. Contra o São Paulo, apenas Evair o supera em gols pelo Palestra, com nove tentos. Ademir marcou oito. Contra o Santos e o Corinthians, fez sete e quatro, respectivamente.

Dos títulos com a camisa do Palmeiras, o mais vivo na memória de Ademir é o conquistado em 1974 numa das partidas mais difíceis do alviverde contra o Corinthians, que aguardava o título paulista há 20 anos. O time do parque São Jorge era o favorito porque lá estava o reizinho Rivelino. Se eles tinham um “rei”, o Palmeiras tinha o “Divino”. 

Na série de reportagens “Meu jogo inesquecível”, publicada pela revista Placar , Ademir conta sobre a inesquecível partida contra o Corinthians: “O nervosismo que tomava conta dos jogadores, no entanto, denunciava: a partida era muito especial. O Corinthians não ganhava um titulo desde de 1954. Por isso, entrou em campo como se partisse para uma guerra […] Subimos os degraus que dão acesso ao gramado do Morumbi e, quando concluímos a caminhada, avistamos a multidão. Eram 120 mil torcedores, 70% dos quais torciam pelo Corinthians. Pior, todos estavam enlouquecidos para ver o alvinegro voltar e ser campeão […] uma cobrança de falta violenta do Rivelino acertou a cabeça do Dudu, na barreira. Ele caiu desmaiado e saiu de campo. Poucos minutos depois, estava de volta […] O cruzamento do Jair Gonçalves encontrou Leivinha, que subiu mais do que toda a defesa e cabeceou. A bola caiu exatamente no pé direito do Ronaldo. O chute saiu forte, indefensável, no canto esquerdo de Buttice, goleiro argentino do Corinthians. […] Uma emoção incalculável. Prova disso é que vários atletas foram ao Parque Antártica comemorar junto com a torcida mais um título para o Palmeiras. Eu preferi ficar em casa. A noite ainda assisti o videoteipe da partida. Tudo funcionava como se eu acabasse de participar de apenas mais uma, entre as muitas partidas da minha vida. A vitória contra o Corinthians, a faixa de campeão e tudo o que se passou dentro do campo, no entanto, garantiam que aquele tinha sido o melhor de todos os jogos.”

Amanhã, no quarto e penúltimo capítulo da série “O Divino Ademir da Guia” você recordará os títulos inesquecíveis do maior ídolo do Palmeiras em todos os tempos. Até lá.

O DIVINO ADEMIR DA GUIA: O CAMISA DEZ GENIAL QUE BROTOU EM BANGU

por André Felipe de Lima


Quando Ademir da Guia começou no Bangu, ele era reserva de um jogador chamado Valter. Por enxergarem semelhanças com o pai Domingos da Guia, o escalaram como zagueiro. Mas o que Ademir fazia de melhor era armar jogadas na meia cancha.  Jogou pelo infantil do Bangu em 1957 e conquistou o terceiro lugar do campeonato estadual da categoria. No ano seguinte, o vice-campeonato estadual. Seus primeiros treinadores, Moacir Bueno e Elba de Pádua Lima, o Tim, foram essenciais para moldar o craque. “Tive muita ajuda e orientação do Moacir Bueno. Ele tinha jogado com meu pai no Bangu e foi meu primeiro treinador. Depois, no juvenil, o treinador era o Elba de Pádua Lima, o Tim. Também com ele tive um aprendizado muito grande, muito rico. Ele me ensinou muita coisa.” 

No início de 1959, Domingos da Guia decidiu levar o filho para jogar em São Paulo. Pretendia um teste para o menino no Corinthians, mas o desembarcar na capital paulista, mudou de ideia e o levou para o Santos. Ademir fez o teste e foi aprovado, mas por divergências salariais, Domingos optou retornar ao Rio com o jovem e decidir se aceitaria os nove mil cruzeiros oferecidos a Ademir. O prazo expiraria no carnaval, mas antes disso, da Guia, o pai, recebeu uma proposta para treinar o infantil do Bangu e Ademir, para integrar-se ao juvenil. O salário dos dois correspondia quase a metade do que o Santos desembolsaria para ter Ademir.

Foi em 1959 — e no Bangu mesmo — que começou a ser desenhada a brilhante carreira do último remanescente da dinastia “Da Guia”. Com Ademir a frente do Bangu, os grandes clubes ficaram a ver navios. O time da zona oeste se sagraria campeão carioca de juvenis. Como prêmio pelo extraordinário feito, a diretoria integrou quatro juvenis ao time de profissionais que embarcou, em junho de 1960, para os Estados Unidos, onde o Bangu surpreenderia times como Sampdoria, Sporting de Lisboa, Rapid Viena e Estrela Vermelha, de Belgrado, sagrando-se campeão do I Torneio de Nova Iorque. Além de Ademir, viajaram Helinho, Durval — aquele mesmo, o amigo das primeiras peladas — e Zé Maria.

“Fomos para o Galeão, Super Constellation, aquele aviãozão (sic) grandão. Andamos (sic) 24 horas de avião para chegar à Nova York, aí a gente dormia, acordava, não chegava nunca [risos], o avião estava parado lá, o pessoal: ‘Ademir, pode abrir a janelinha!’ [risos] e eu ficava quietinho ali. Aí chegamos em Nova York, aquela cidade lá espetacular, a gente treinava no campo de, acho que era polo, porque não tinha campo de futebol, fizeram uma adaptação. E lá tinha o Sampdoria, tinha o Sporting, tinha time da Escócia, da Suécia, tinha vários times, e a gente não sabia falar também, a gente aprendia algumas palavrinhas, How much, Coca-Cola a gente pedia toda hora [risos]. Mas foi uma coisa sensacional, nós ficamos um mês em Nova York, na rua 42, toda hora a gente estava na rua 42, e foi uma coisa, assim, sensacional, porque a gente sair de Bangu, parar em Nova York, ver toda uma cidade espetacular, nem Gávea, nem Flamengo, nem Botafogo eu conhecia [risos]. A gente ia lá jogar contra o Fluminense, nas Laranjeiras, jogamos contra o Flamengo, na Gávea, contra o Vasco, lá em São Januário, mas não tinha assim, não conhecia direito o Rio. Ai se vê lá em Nova York, sendo campeão, e eu fui escolhido o melhor jogador do torneio, aí, na hora lá, me deram um envelope cheio de dólares, eu guardei, pensei comigo: ‘Deve ter bastante dólar!’ [risos]. Quando cheguei lá no quarto do hotel e tal, ‘o melhor jogador do torneio’, aí, quando eu fui abrir, eu vi que tinha um dólar só [risos]. Eu fiquei decepcionado, podiam ser dois mil dólares, estava pronto para comprar um monte de coisas. Mas aí fomos campeões, pegamos um jato, nove horas estávamos descendo no Galeão […] A gente levou 24 horas de Super Constellation para chegar lá, e a gente já começou a perceber que ser campeão era importante.” 

O filho do ex-zagueiro Domingos da Guia entrou no time titular profissional do Bangu e lá ficou até o Palmeiras entrar em sua vida.


Um ano antes de chegar a São Paulo, o futebol de Ademir da Guia era motivo de reportagens na imprensa paulista que especulavam a possibilidade de o jovem craque do Bangu jogar ao lado do também jovem Pelé. Sendo filho de quem é o intenso holofote era mais que natural. Domingos da Guia apostava no sucesso do rapaz: “O pai não tem queixas do que ganhou com o futebol. Entretanto o filho tem tudo para brilhar e ganhar muito. Ganhar para viver, quando deixar o futebol. Tem futebol para isso. Cumpre a risca as determinações de seu técnico, bem como os conselhos dados pelo pai. Não poderia ser melhor. É um legítimo herdeiro do futebol praticado pela família.”

Ademir de Menezes, amigo dos Da Guia, também previa o sucesso do menino: “Grande futebol tem o garoto. Posso assegurar que será um dos integrantes da seleção brasileira nos jogos do Campeonato Mundial de 62. Sabe dominar com facilidade o meia da cancha. Entrega a bola com máxima perfeição. Em suma, é um jogador extraordinário. Está de parabéns o futebol brasileiro, contando com outro valor positivo. Se ouvir bem os conselhos do papai, não tenho a menos dúvida, irá longe. Seu técnico, meu amigo Tim, saberá elevar mais o seu futebol.” 

O ingresso de Ademir no Palmeiras teve um responsável. Um, definitivamente não. Eram dois. O primeiro foi o então técnico do Guarani Armando Renganeschi. Ao vê-lo jogar pelo Bangu em uma partida contra o time de Campinas, não titubeou. Sugeriu aos dirigentes do Guarani que contratassem Ademir. Pedido recusado, o garoto permaneceria no Bangu e somente em 1961 uma nova investida de Renganeschi para ter Ademir seria bem-sucedida. O felizardo? O Palmeiras, onde o ex-técnico do Guarani passou a dar as cartas no futebol. O presidente do clube alviverde, Delfino Facchina, e o diretor de futebol, Arnaldo Tirone, acataram a “ordem” do técnico e pagaram três milhões e oitocentos mil cruzeiros ao Bangu para ter o russinho no Palestra. Quantia considerada na época muito abaixo do que realmente valia Ademir.

Amanhã, você saberá como Ademir da Guia foi recebido pelo Palmeiras. Uma das jornadas mais belas de um jogador de futebol com o clube que o fez gigante. Até lá.

CICATRIZES E SORRISOS

texto: Sergio Pugliese | vídeo e edição: Daniel Planel

Adoro os otimistas e, por isso, em tempos de Corona, a afirmação “vai passar” me agrada muito. Até porque vai passar mesmo. Não dá para estimar o saldo final, mas vai passar. Quem viver, verá!


Sempre sonhei em escrever um roteiro sobre a jornada de quatro velhos jornalistas, daqueles que fizeram de tudo e mais um pouco, cobriram guerras, campanhas políticas, impeachments, o assassinato do Kennedy, o da princesa Diana, atentados, o Carnaval, denunciaram falcatruas, descobriram personagens fantásticos, se infiltraram em grandes esquemas e deram furos espetaculares. Quatro velhinhos, com os olhares afiadíssimos, que se reúnem religiosamente em um boteco para recontar essas histórias. Eles sabem que tudo passa. Hoje existe um monumento onde brilhavam as monumentais Torres Gêmeas. Caiu, levante! A dor permanece, mas a banda passa, inapelavelmente. Tudo vira história.

Na Copa de 50, 200 mil brasileiros inundaram o Maracanã de lágrimas. O genial Zizinho saía de campo chorando compulsivamente quando foi amparado com um abraço pelo goleiro uruguaio Maspoli. O repórter fotográfico Luiz Carlos Barreto registrou a cena. Belíssima! Barretão também estava arrasado, mas precisava eternizar aquela imagem, ossos do ofício. Os jornalistas não são insensíveis, como em muitos casos possa parecer. Vendo a foto imaginei Maspoli sussurrando “vai passar” para Zizinho.


Oito anos depois, lá estava Barretão com sua Leica, agora na Suécia, para cobrir mais uma Copa do Mundo. Dessa vez, o abraço registrado por seu olho mágico foi o de Garrincha em Pelé, o da conquista, o do êxtase. Dois abraços, duas histórias, dois desfechos. Para o velho jornalista, o “vai passar” de 50 funcionou. Entre cicatrizes e sorrisos, tudo passa, tudo sempre passará.

O DIVINO ADEMIR DA GUIA: O COMEÇO DE TUDO

por André Felipe de Lima


A maior linhagem do futebol brasileiro tem um sobrenome inconfundível: Da Guia. O último da dinastia chama-se Ademir, ou simplesmente “Divino”, como o batizou a apaixonada torcida do Palmeiras. Sobre ele, o cronista Armando Nogueira escreveu: “Ademir da Guia, tens o nome, o sobrenome e a bola do craque”. O pai do craque, Domingos, o “Divino Mestre”, vaticinou em 1944, quando ele e Dona Maria, avó de Ademir, brincavam com o menino em um parque de Caxambu : “A nova geração de craques ‘made in Da Guia’ chamar-se-á Ademir. Ademir da Guia. Tem dois anos agora, mas já sabe usar os pés com eficiência. Não pode ver uma pedra ou uma bola de papel no chão que não sinta logo o desejo de chuta-la. Olha lá o que ele está fazendo. Está chutando o copo que trouxe para beber a água magnesiana. Ponha diante dele uma bola de borracha e verá como sabe o que deve fazer. Está ali o futuro Da Guia, o zagueiro mais caro da América do Sul. Dele é que vou cuidar, quando me aposentar”. E o pai cumpriu o prometido.

Foi nas ruas do bairro Bangu, na zona oeste do Rio, em que Ademir da Guia deu os primeiros passos, os primeiros chutes. Seus pais Domingos [o maior zagueiro da história do futebol brasileiro] e Erothides sempre zelaram pelo jovem que mais tarde encantaria banguenses e palmeirenses. Sobrinho dos incompreendidos craques de Moça Bonita Luis Antonio da Guia [vetado das primeiras seleções brasileiras no início do século por ser negro] e Ladislau da Guia [um dos maiores artilheiros da história dos campeonatos cariocas], Ademir jogava suas “peladas” nos campos de terra batida, que, mesmo após cinco décadas desde o surgimento daquele russinho de olhos claros e bom de bola, ainda insistem em encantar as crianças do bairro. O mesmo onde o próprio Ademir nasceu, no dia 3 de abril de 1942.

Ademir nasceu Da Guia, mas o nome principal foi uma homenagem de Domingos ao grande amigo e craque vascaíno Ademir de Menezes. Para desespero da torcida rubro-negra, que chiou muito por causa da reverência ao ídolo do time rival.

Antes de completar seis anos, Ademir da Guia, que acompanhou os pais a São Paulo quando Domingos jogava pelo Corinthians, retornou à rua Sulamérica, 1160, em Bangu. Aos sete, dividia o tempo entre a piscina do Bangu e as aulas do primário no colégio Getúlio Vargas. Evidentemente que o menino também jogava bola, mas a natação foi o esporte que norteou a infância e pré-adolescência do lourinho.

Em 1953, defendeu o estado da Guanabara no campeonato brasileiro de natação e, no ano seguinte, sagrou-se campeão carioca infanto-juvenil de natação pelo Bangu.

Mas outro esporte começou a motivá-lo. Os jogos no campo do Céres F.C. e as idas aos estádios para ver seus ídolos Rubens, do Vasco, e Dequinha, do Flamengo, o animavam mais que as piscinas. Dequinha, centromédio clássico, um dos melhores jogadores que já vestiram a camisa rubro-negra, foi a principal referência estilística para Ademir da Guia no início da carreira .

Mas o futebol estava dificultando os estudos. Ademir cursava o ginasial no colégio Campo Grande e, depois, no Belisário. Repetiu a sétima série e abandonou os estudos.


O moleque russinho seguiu a trilha do pai e dos tios e foi parar no Bangu, mas, curiosamente, quem o levou, em 1956, para lá foi um colega de “peladas”, o menino Durval. O técnico da garotada era o ex-atacante Moacir Bueno, que após alguns treinos de Ademir, o colocou na equipe. O filho de Domingos da Guia se preparava para ingressar nas divisões de base do Bangu, que já começava a esboçar o time que seria campeão carioca em 1966. Mas sem Ademir, que definitivamente marcaria seu território na história do futebol brasileiro somente no Palmeiras. Mas, antes disso, há uma singular trajetória vivida no Bangu.

Zizinho, o grande ídolo do Flamengo, do Bangu e do São Paulo, já havia ingressado na carreira de treinador quando teve o privilégio de acompanhar os primeiros passos de Ademir da Guia, em 1960, no time principal do Bangu, que enfrentaria a equipe do Vasco. Eram dois jogos, um entre os times principais dos dois clubes e outro entre os de reservas. Ademir já era titular no time de “cima” e Ziza pediu ao presidente do Bangu que liberasse o filho de Domingos e Ananias para o time de “baixo”. Mesmo descrente o cartola autorizou a liberação dos dois garotos. “Escalei Ademir como centroavante. O Domingos veio falar comigo”, disse Zizinho ao escritor e maestro Kleber Mazziero de Souza, biógrafo de Ademir.

Domingos da Guia alertou que Zizinho iria “acabar com o garoto” já que Ademir nunca havia jogado como centroavante. O Mestre Ziza ponderou ao preocupado pai: “Não tem problema. Ele não vai esquecer o que já sabe […] Vai aprender a partir para cima dos zagueiros, a entrar na área pelos dois lados.”

O treinador chamou o garoto Ademir em um canto e o orientou a utilizar as passadas largas que o caracterizavam em campo para ganhar mais velocidade ao entrar na área adversária. Resultado? O Bangu detonou o Vasco nos dois jogos.

O pai garantia que nunca influenciou o filho no estilo. Para Domingos, Ademir “nasceu sabendo jogar futebol”.

Amanhã, você terá os detalhes do começo da carreira de Ademir da Guia no Bangu. Até lá.

PUSKAS E A MAIOR INJUSTIÇA DE TODAS AS COPAS

por André Felipe de Lima


“Eu estava com a razão. Tinha certeza de que com aquele jogo lento e quase exclusivamente defensivo venceríamos o Brasil. Sucede apenas que não contei com as possibilidades de Garrincha. Iniciamos a Copa com uma equipe que deveria ser modificada. Isso só foi feito contra o Brasil. Com aquele mesmo time e apenas uma modificação — Di Stefano em lugar de Adelardo — jamais teríamos sido derrotados”. Estas palavras do genial Ferenc Puskas, referindo-se à vitória da seleção brasileira na Copa de 62 e à derrota de sua Espanha para os brasileiros no mesmo mundial, acolhe uma dose cavalar de despeito. O que era perfeitamente natural. Afinal, Puskas é considerado um dos maiores e melhores jogadores de futebol em todas as épocas, mas o destino negou-lhe o prazer de erguer a taça Jules Rimet uma única vez sequer. 

Mas o que ele fez com a canhota no Honved, clube onde despontou na sua terra natal (a Hungria), e depois no Real Madrid, em um dos times mais extraordinários da história, definitivamente não tem parâmetro. Foi, contudo, a partir da seleção da Hungria que o mundo conheceu a magia do futebol de Puskas, e foi com aquele esquadrão que o próprio Puskas conheceu o sonho e o pesadelo ao mesmo tempo. 


Na Copa do Mundo de 1954, o gênio da bola e sua poderosa Hungria, que também contava com craques do porte de Czibor e Kosics, tombaram diante da Alemanha de Fritz Walter na final pelo placar de 3 a 2. Perderam para os alemães que semanas antes haviam sido humilhados pelos mesmos húngaros pela acachapante goleada de 8 a 3. O mundo jamais compreendeu aquela derrota da Hungria que, para muitos, até mesmo mais que o Maracanazo de 50 e o fracasso do Carrossel Holandês em 74, constitui-se na maior injustiça da história das Copas. Daí a compreensão que devemos ao Puskas pelo despeito com a vitoriosa seleção brasileira em 62.

As marcas de 54 nunca o deixaram em paz. No fundo, mas bem no fundo de sua alma nunca se resignou após o apito final do juiz inglês Ling. A imagem daquele momento, que deveria ter sido um sonho, traduziu-se em pesadelo. As pessoas que lotaram a arquibancada do estádio Wankdorf, em Berna, recusavam-se a acreditar no que acabaram de assistir. A Hungria, que havia sido campeã olímpica dois anos antes, estava destroçada. Quanto à Alemanha, que buscava um motivo de orgulho para a sua nação após a tragédia do regime nazista e a Segunda Guerra mundial, resgatara sua autoestima. O genial Puskas somente chorava lágrimas contidas.

Se no futebol o país de Puskas viveu aquela tragédia, na política não seria diferente. Dois anos após a derrota em Berna, os húngaros se defrontaram com a acidez do regime soviético que impregnou a política do país anos após a Segunda Guerra. Movimentos sociais tentavam manter a Hungria no rumo democrático, mas os rebeldes foram sufocados. Entre eles o militar Puskas. Sim, Puskas era major do exército húngaro quando a revolta social contra os soviéticos eclodiu em outubro de 1956 e logo foi sufocada no mês seguinte. Porém o craque não estava no país. Ele viajara com o Honved para Bilbao, onde disputaria, em 22 de novembro de 1956, contra o Athletic local, um jogo pela segunda edição (1956/57) da Copa dos Campeões da UEFA, a Champions League como hoje a conhecemos.


Temendo o retorno ao país dominado pelos soviéticos, Puskas liderou os companheiros do time para que não retornassem à Hungria para o jogo de volta contra os espanhóis. Todos toparam e o Honved encarou o Athletic Bilbao em Bruxelas. A tensão era grande e os desconcentrados húngaros acabaram eliminados da competição. 

Longe da Hungria, os craques do Honved realizaram amistosos pelo mundo (inclusive no Brasil) para manter o mínimo de renda possível. A Fifa foi uma grande barreira para aqueles jogadores. A entidade máxima do futebol proibia todos eles de jogarem até que regularizassem a situação com a Federação Húngara de Futebol. Essa ladainha durou mais de um ano até que oito dos craques do Honved decidiram regressar ao país enquanto o restante, incluindo Puskas, Kosics e Czibor, optaram por outros rumos.

Puskas morou um tempo na Áustria, mas não conseguiu jogar bola por lá. Tentou radicar-se na Itália, em 1958, acompanhado da esposa Elisabeth (1934-2015, que o craque conheceu quando ela jogava handebol pelo Kipset) e da filha Anikó (1952-2011). Juventus, Internazionale, Milan e Napoli o disputaram a tapa. Mas o Real Madrid correu por fora e atropelou os clubes italianos na reta final do páreo. Os companheiros Kosics e Cizbor partiram, entretanto, para o arquirrival Barcelona.

O Honved, onde Puskas começara a carreira nos infantis (quando o clube ainda se chamava Kipest), estava definitivamente no passado do gênio da canhota, que assinalou pelo clube 379 gols em 366 jogos, uma média espetacular de praticamente um gol por partida. Muitos húngaros ficaram magoados com ele. Obviamente induzidos por uma propaganda do governo soviético que o pintava como “desertor” e até mesmo “contrabandista”. Isso magoou muito craque.

Mas a vida na Espanha o ajudaria a superar a desilusão com a terra natal. Surpreendera-se com o convite do Real Madrid, e foi sincero com o mítico presidente do clube, Santiago Bernabéu, ao dizer que, além dos 31 anos de idade, estava bem acima do peso. “Estou gordo!”. Mas o cartola deu de ombros para os quase 20 quilos a mais de Puskas.


O risco da contratação foi compensado com 242 gols e 262 jogos. Sobre aquele Real monumental, Puskas disse certa vez ao britânico The Times: “O Real Madrid caminha pela Europa como os Vikings costumavam caminhar, destruindo tudo em seu caminho.”

Vestindo o manto “blanco”, ele formou uma dupla extraordinária de ataque com Di Stéfano e foi campeão três vezes do campeonato europeu de clubes campeões (a atual Champions League); uma vez do Mundial Interclubes (a antiga Copa Intercontinental) e cinco vezes do campeonato espanhol. Em quatro temporadas, Puskas foi o goleador máximo do campeonato nacional da Espanha, país que defendeu em quatro jogos. 

Ferenc Puskas nasceu em Budapeste, no dia 2 de abril de 1927. Há, contudo, registros que apontam o dia 1 de abril. Sua família era bastante humilde e seu pai, que o treinava no antigo Kispest, foi seu principal incentivador para que seguisse a carreira de jogador. As primeiras bolas que chutara na vida eram feitas de papel de jornal e trapos. Seu brilho no Kispset era intenso. Com 16 anos já estava no time principal. O clube mudou de nome. Passou a se chamar Honved, e com a nova chancela conquistou cinco campeonatos húngaros. O craque do time, obviamente, era Puskas.

Se pudesse, jamais deixaria o Honved, seu clube de coração. O destino lhe pregou essa peça. Mas nunca se arrependeu de deixar a Hungria tomada pelos soviéticos. Não concordava com a opressão a que seu povo foi submetido.

O genial Puskas morreu em Budapeste, no dia 17 de novembro de 2006, depois de quase dois meses internado para tratar uma pneumonia. Sofria também do Mal de Alzheimer. 

Seu nome é inesquecível. Seu futebol? Esse, ainda mais. Desde 2009, a Fifa (que o perseguiu na década de 1950) concede o Prêmio Ferenc Puskas ao autor do gol mais bonito do ano. Mas a reverência maior fica por conta de nós, torcedores do bom futebol e de sua linda história. Puskas é imortal.