O DIVINO ADEMIR DA GUIA: LENTO… E DAÍ?
por André Felipe de Lima
A crítica mais mordaz contra Ademir foi a de ser um jogador lento. Bobagem que foi insistentemente escrita e dita pela imprensa nos quase 20 anos de carreira do craque. Ademir não precisava correr muito porque suas passadas eram largas. Nada mais que isso. “Muita gente dizia que eu era lento. Até mesmo eu dizia. Em 1965, uma frase que eu havia dito transformou-se em manchete no caderno de esportes de um jornal: ‘Sou lento, mas não vou mudar.’
Ademir da Guia justificava o estilo por ser oriundo do Rio, onde se jogava um futebol mais cadenciado, mais compassado. Mas, para a imprensa paulista, a opinião de Ademir não convencia. “Durante muito tempo Ademir ficou no Parque Antártica aguardando uma oportunidade para surgir no conjunto esmeraldino. Houve inclusive quem esquecesse que Ademir pertencia ao Palmeiras. Todavia, quando a oportunidade chegou. Ademir não conseguiu aproveitá-la de acordo. Mostrou que é um craque na acepção da palavra, que sabe manobrar com a pelota. Entretanto, seus maiores inimigos foram exatamente os excessos de classe e lentidão. Com a bola nos pés, Ademir é um portento, porque sabe entregá-la com perfeição. Porém, sem ela, Ademir é figura decorativa no gramado, pois é lento demais e não é jogador que dê combate ao adversário para desarmá-lo […] É preciso considerar que há muita distinção entre o futebol jogado na Guanabara e o que se pratica em São Paulo. Lá, corre mais a bola que o jogador, pois é um futebol acadêmico, sem muito empenho individual. Aqui, as coisas são bem diferentes, pois é preciso garra, rapidez, entusiasmo, vibração. Estes argumentos destroem o garoto Ademir que, absolutamente, não conseguiu e tampouco conseguirá se adaptar ao futebol bandeirante.”
Ora, reconhecem-no “craque” e, mesmo assim, pediam que o devolvessem ao futebol carioca. O futuro tomaria conta da verdade sobre Ademir, provando aos seus críticos que ele, o “Divino”, estava fadado a ser o maior de todos os tempos no Palmeiras. O fundador legítimo da “Academia palmeirense”. Um estilo “acadêmico” de jogar bola que, como o próprio repórter despeitado escreveu, era genuinamente “guanabarino”.
A imprensa paulista só se renderia à genialidade de Ademir em 1964: “Ademir ‘tapou a boca’ de muita gente”, escreveram. Não havia mais o que falar [mal] do craque “guanabarino”. Até da Itália choviam propostas milionárias. Tudo na casa dos 300 milhões de cruzeiros. Ninguém confirmava, nem mesmo Ademir ou os cartolas do Palmeiras, mas a especulação corria solta na imprensa. Ademir desconversava, dizia que só sairia do Brasil depois de 1966. Tinha esperanças de ser convocado para a seleção brasileira que iria a Copa do Mundo a ser realizada na Inglaterra. E os jornalistas paulistas comentavam: “Está no caminho certo de Londres”. Mas com ressalvas.
Para o jornalista Armando de Castro, Ademir melhorara, contudo precisava desvencilhar-se da timidez para seguir adiante com brilho na carreira. “Agora, Ademir, resta ir em frente. Deixar para lá esse excesso de humildade e retomar o lugar que, de direito, lhe cabe dentro do ‘Esquadrão de Ouro’. Afinal, um ‘divino’ não se pode misturar a simples mortais…”
Conclui-se, portanto, que a posição na qual o craque jogava traz, até os nossos dias, um atavismo. Jogador meia-armador é execrado num dia e no outro recebe glórias aos montes. O périplo de Ademir da Guia nos campos de futebol foi assim. Sua personalidade nunca fora abalada com as críticas ou elogios. Manteve-se sempre sereno, surpreendentemente para a pouca idade que ostentava nos primeiros tempos de Palmeiras. Arroubos juvenis não combinavam com seu estilo consciencioso, dentro e fora dos campos. Em 1966, um cronista francês declarou: “Os brasileiros encontraram em Ademir da Guia o substituto ideal do grande meia Didi, talvez melhor, pois seu futebol é exuberante, pleno de beleza.”
Jornalistas argentinos definiam-no como um dos dez mais do futebol mundial em 1966. Elogios desse porte não o deixavam com nenhum sinal de máscara. Nem na juventude e tampouco na fase mais madura de seu extraordinário futebol.
Em 1971, corria um boato no Palmeiras de que os “mais velhos” receberiam passe livre. O ano não tinha sido bom para o time e as reclamações vinham de todos os lados, sobretudo dos cartolas. Na mira da diretoria estariam Nelson, Dudu, Hector Silva, Dé e Ademir da Guia: “Eu sei o que reclamam. Não leio jornais, não escuto rádio, não vejo televisão, mas sei o que reclamam […] Reclamam que eu não lanço e que sou lento, como sempre. Acontece que, sem querer me defender, o time do Palmeiras sempre teve esse estilo”. Reclamaram tanto que Ademir, coberto de razão, liderou o time ao “bi” brasileiro, em 1972 e 73.
Quando a carreira de Ademir ia se aproximando do fim, em 1976, sobrou-lhe, contudo, tempo para mais uma conquista. Como fiel parceiro de meio-campo, Dudu, conquistou o campeonato paulista de 1976, derrotando, na decisão, o XV de Novembro de Piracicaba.
Após o título, o time foi desfigurado. Ademir acreditava ter mais alguns anos de carreira. Ledo engano. Em 1977, durante o campeonato paulista, o “Divino” queixava-se de uma insistente dor na garganta. Do campo para a mesa de cirurgia. Pouco adiantou. Restou ao craque deixar os gramados no dia 18 de setembro do mesmo ano, em uma partida contra o Corinthians, que venceu a peleja por 2 a 0. Ademir não aguentou até o final da partida e foi substituído por Picolé.
No Palmeiras, Ademir da Guia ficou de 1961 a 1977. Disputou 901 partidas com a camisa do Verdão. Um recorde que até hoje ninguém conseguiu quebrar. Venceu 509 vezes e empatou 234. Fez 153 gols. Mas como foi a presença de Ademir da Guia na seleção brasileira? A resposta é das mais inusitadas: não foi.
Amanhã, no quinto e último capítulo da série “O Divino Ademir da Guia” a decepção com a seleção brasileira e o fim da carreira do genial craque palmeirense. Até lá.
O DIVINO ADEMIR DA GUIA: ENFIM, O PALMEIRAS
por André Felipe de Lima
Chamar um jogador de bonde é, dependendo das circunstâncias, uma indelicadeza. Chamar um craque, um gênio como Ademir da Guia de bonde é crime de lesa pátria. É pecado amoral, diria Nelson Rodrigues. E o cartola do Bangu Mauricio Cesar Buscácio cometeu este desatino, sem direito a sursis ou qualquer coisa que o valha. Depois do sucesso estrondoso de Ademir no torneio internacional de Nova Iorque conquistado pelo Bangu, em 1960, e na edição seguinte, em 1961, quando a imprensa divulgava que o Barcelona pagaria 16 mil dólares para tê-lo, o presidente do Bangu mandou redigir em ata ter “vendido um ‘bonde’ para o Palmeiras por três milhões e oitocentos mil cruzeiros”.
Mas a rusga do cartola não era, propriamente, com Ademir e sim com o pai do jovem craque. “O presidente do Bangu, naquela época, não me olhava com muito carinho. Outros dirigentes achavam que o Ademir não se firmaria na equipe principal. Eu tinha vontade de levá-lo para outro time”, confessou Domingos da Guia a Kleber Mazziero, biógrafo do filho. Até enterro simbólico do presidente do clube de Moça Bonita a torcida banguense fez na porta da sede do Bangu. Tudo em vão. Ademir iria mesmo embora.
Domingos deu a notícia ao filho: o destino é o Palmeiras. No dia 7 de agosto de 1961, Ademir assinara o contrato com o novo clube. Receberia um salário mensal de 35 mil cruzeiros. O pai, naturalmente, emendou alguns conselhos, o principal deles de que o futebol de Ademir era “de berço” e que, portanto, deveria se cuidar no campo, durante os contratos e na vida pessoal. “Nada de farras”. Ademir, ao longo de uma das mais brilhantes carreiras de um jogador de futebol, seguiu as recomendações do pai rigorosamente à risca.
Embora a animosidade entre os Da Guia e a diretoria do Bangu fosse explícita, o próprio Ademir reconheceu a ajuda financeira que o clube carioca ofereceu: “O Bangu me premiou com 300 mil cruzeiros, em sinal de gratidão pelos anos que o defendi, e o Palmeiras me deu, a título de luvas, um milhão e quinhentos e quarenta mil cruzeiros”. Há, contudo, uma contradição quanto ao valor das luvas. O jornal O Globo, em edição do dia 8 de agosto de 1961, afirma que Ademir recebeu de luvas 540 mil cruzeiros e não os mais de um milhão de cruzeiros, como afirma o próprio jogador, segundo informou a Gazeta Esportiva.
Levaria, no entanto, um tempo até Ademir se firmar no Palmeiras. Na posição de meia-atacante havia Chinesinho e na de centromédio, Zequinha. Ademais, um incômodo problema dentário atrapalhava sua performance e retardava sua estreia. “Além de não me encontrar em perfeitas condições físicas, estou fazendo um tratamento dentário que tem prejudicado sobremaneira minha recuperação.”
Em 1961, Ademir disputou apenas um jogo amistoso, contra a Associação Esportiva Promeca, em Jundiaí, no dia 10 de dezembro. Venceu por 2 a 0 sob o comando de Rubens Minelli. Como Chinesinho fora vendido para o futebol italiano, ficaria, em tese, mais fácil para Ademir da Guia assumir a vaga de titular, mas Hélio Burini, oriundo da Itália, também disputava a posição. A ascensão foi paulatina. Mas era flagrante que deixavam-no numa “salmoura” e a imprensa paulista já questionava se teria valido a pena pagar “milhões” pelo passe de um garoto que sequer era escaldo para amistosos. “Se algum outro clube o pretender, terá que pagar caro, embora a hipótese seja remotíssima. Afinal, quem vai se interessar por um craque que, até o momento, só se exibia nas colunas dos jornais?”
No dia 8 de abril de 1962, Ademir vestiu, enfim, a camisa 10 pela primeira vez na vitória de 4 a 2 sobre o Esporte Clube Paulista, em Santa Bárbara d’Oeste. A primeira partida oficial com o Verdão aconteceu, contudo, no dia 14 de julho, no Pacaembu, contra o Taubaté em jogo válido pelo campeonato paulista. Ademir jogou com a camisa seis e o Palmeiras venceu de 5 a 1.
Ademir, cujo primeiro apelido no clube era “Formigão”, por comer muito nas concentrações, teve de atuar em várias posições naqueles primeiros momentos em que vestiu a camisa do Palmeiras. Foi de centroavante a volante. E não foi somente no time de profissionais. Jogava também no time de aspirantes, tanto que conquistou o campeonato paulista da categoria em 1963. Naquele ano, a tão esperada chance aconteceu. O técnico Geninho o escalou como titular e a resposta viria com o título de campeão paulista para o “Palestra”. Uma conquista memorável que interrompeu a saga de títulos estaduais do Santos de Pelé e Coutinho, que “graças” ao Palmeiras de Ademir não se tornou tetracampeão.
Ademir sempre manteve um relacionamento profícuo com os treinadores que passaram pelo banco do Palmeiras. O “mago” Oswaldo Brandão foi um deles. Com o novo técnico, que chegou ao clube em 1972, o elenco foi reduzido e surgiu a segunda “Academia” palmeirense depois do sensacional esquadrão da década de 1960.
Ademir esteve nas duas “Academias”. É o maior símbolo de ambas.
GOL E TÍTULO INESQUECÍVEIS
Escolher o gol mais bonito da carreira de Ademir da Guia é tarefa das mais complicadas. Foram muitos. Mas o craque acredita ser o mais genial o que assinalou em 1964, contra a Prudentina, no Parque Antarctica. O jogo terminou 4 a 1 para o Palmeiras. “O Ademar entrou pela direita e atrasou a bola para mim, na altura da intermediária do time deles. Matei a bola no peito e resolvi entrar sozinho. Tive sorte. Driblei o primeiro zagueiro e, em seguida, o zagueiro da sobra. O goleiro Glauco saiu e eu tive de driblá-lo com uma finta seca, que me fez perder o ângulo. Não me afobei e voltei uns passos. Quando tive um ângulo melhor, chutei no alto.”
Em clássico contra os grandes paulistas, Ademir balançou a rede diversas vezes. Contra o São Paulo, apenas Evair o supera em gols pelo Palestra, com nove tentos. Ademir marcou oito. Contra o Santos e o Corinthians, fez sete e quatro, respectivamente.
Dos títulos com a camisa do Palmeiras, o mais vivo na memória de Ademir é o conquistado em 1974 numa das partidas mais difíceis do alviverde contra o Corinthians, que aguardava o título paulista há 20 anos. O time do parque São Jorge era o favorito porque lá estava o reizinho Rivelino. Se eles tinham um “rei”, o Palmeiras tinha o “Divino”.
Na série de reportagens “Meu jogo inesquecível”, publicada pela revista Placar , Ademir conta sobre a inesquecível partida contra o Corinthians: “O nervosismo que tomava conta dos jogadores, no entanto, denunciava: a partida era muito especial. O Corinthians não ganhava um titulo desde de 1954. Por isso, entrou em campo como se partisse para uma guerra […] Subimos os degraus que dão acesso ao gramado do Morumbi e, quando concluímos a caminhada, avistamos a multidão. Eram 120 mil torcedores, 70% dos quais torciam pelo Corinthians. Pior, todos estavam enlouquecidos para ver o alvinegro voltar e ser campeão […] uma cobrança de falta violenta do Rivelino acertou a cabeça do Dudu, na barreira. Ele caiu desmaiado e saiu de campo. Poucos minutos depois, estava de volta […] O cruzamento do Jair Gonçalves encontrou Leivinha, que subiu mais do que toda a defesa e cabeceou. A bola caiu exatamente no pé direito do Ronaldo. O chute saiu forte, indefensável, no canto esquerdo de Buttice, goleiro argentino do Corinthians. […] Uma emoção incalculável. Prova disso é que vários atletas foram ao Parque Antártica comemorar junto com a torcida mais um título para o Palmeiras. Eu preferi ficar em casa. A noite ainda assisti o videoteipe da partida. Tudo funcionava como se eu acabasse de participar de apenas mais uma, entre as muitas partidas da minha vida. A vitória contra o Corinthians, a faixa de campeão e tudo o que se passou dentro do campo, no entanto, garantiam que aquele tinha sido o melhor de todos os jogos.”
Amanhã, no quarto e penúltimo capítulo da série “O Divino Ademir da Guia” você recordará os títulos inesquecíveis do maior ídolo do Palmeiras em todos os tempos. Até lá.
O DIVINO ADEMIR DA GUIA: O CAMISA DEZ GENIAL QUE BROTOU EM BANGU
por André Felipe de Lima
Quando Ademir da Guia começou no Bangu, ele era reserva de um jogador chamado Valter. Por enxergarem semelhanças com o pai Domingos da Guia, o escalaram como zagueiro. Mas o que Ademir fazia de melhor era armar jogadas na meia cancha. Jogou pelo infantil do Bangu em 1957 e conquistou o terceiro lugar do campeonato estadual da categoria. No ano seguinte, o vice-campeonato estadual. Seus primeiros treinadores, Moacir Bueno e Elba de Pádua Lima, o Tim, foram essenciais para moldar o craque. “Tive muita ajuda e orientação do Moacir Bueno. Ele tinha jogado com meu pai no Bangu e foi meu primeiro treinador. Depois, no juvenil, o treinador era o Elba de Pádua Lima, o Tim. Também com ele tive um aprendizado muito grande, muito rico. Ele me ensinou muita coisa.”
No início de 1959, Domingos da Guia decidiu levar o filho para jogar em São Paulo. Pretendia um teste para o menino no Corinthians, mas o desembarcar na capital paulista, mudou de ideia e o levou para o Santos. Ademir fez o teste e foi aprovado, mas por divergências salariais, Domingos optou retornar ao Rio com o jovem e decidir se aceitaria os nove mil cruzeiros oferecidos a Ademir. O prazo expiraria no carnaval, mas antes disso, da Guia, o pai, recebeu uma proposta para treinar o infantil do Bangu e Ademir, para integrar-se ao juvenil. O salário dos dois correspondia quase a metade do que o Santos desembolsaria para ter Ademir.
Foi em 1959 — e no Bangu mesmo — que começou a ser desenhada a brilhante carreira do último remanescente da dinastia “Da Guia”. Com Ademir a frente do Bangu, os grandes clubes ficaram a ver navios. O time da zona oeste se sagraria campeão carioca de juvenis. Como prêmio pelo extraordinário feito, a diretoria integrou quatro juvenis ao time de profissionais que embarcou, em junho de 1960, para os Estados Unidos, onde o Bangu surpreenderia times como Sampdoria, Sporting de Lisboa, Rapid Viena e Estrela Vermelha, de Belgrado, sagrando-se campeão do I Torneio de Nova Iorque. Além de Ademir, viajaram Helinho, Durval — aquele mesmo, o amigo das primeiras peladas — e Zé Maria.
“Fomos para o Galeão, Super Constellation, aquele aviãozão (sic) grandão. Andamos (sic) 24 horas de avião para chegar à Nova York, aí a gente dormia, acordava, não chegava nunca [risos], o avião estava parado lá, o pessoal: ‘Ademir, pode abrir a janelinha!’ [risos] e eu ficava quietinho ali. Aí chegamos em Nova York, aquela cidade lá espetacular, a gente treinava no campo de, acho que era polo, porque não tinha campo de futebol, fizeram uma adaptação. E lá tinha o Sampdoria, tinha o Sporting, tinha time da Escócia, da Suécia, tinha vários times, e a gente não sabia falar também, a gente aprendia algumas palavrinhas, How much, Coca-Cola a gente pedia toda hora [risos]. Mas foi uma coisa sensacional, nós ficamos um mês em Nova York, na rua 42, toda hora a gente estava na rua 42, e foi uma coisa, assim, sensacional, porque a gente sair de Bangu, parar em Nova York, ver toda uma cidade espetacular, nem Gávea, nem Flamengo, nem Botafogo eu conhecia [risos]. A gente ia lá jogar contra o Fluminense, nas Laranjeiras, jogamos contra o Flamengo, na Gávea, contra o Vasco, lá em São Januário, mas não tinha assim, não conhecia direito o Rio. Ai se vê lá em Nova York, sendo campeão, e eu fui escolhido o melhor jogador do torneio, aí, na hora lá, me deram um envelope cheio de dólares, eu guardei, pensei comigo: ‘Deve ter bastante dólar!’ [risos]. Quando cheguei lá no quarto do hotel e tal, ‘o melhor jogador do torneio’, aí, quando eu fui abrir, eu vi que tinha um dólar só [risos]. Eu fiquei decepcionado, podiam ser dois mil dólares, estava pronto para comprar um monte de coisas. Mas aí fomos campeões, pegamos um jato, nove horas estávamos descendo no Galeão […] A gente levou 24 horas de Super Constellation para chegar lá, e a gente já começou a perceber que ser campeão era importante.”
O filho do ex-zagueiro Domingos da Guia entrou no time titular profissional do Bangu e lá ficou até o Palmeiras entrar em sua vida.
Um ano antes de chegar a São Paulo, o futebol de Ademir da Guia era motivo de reportagens na imprensa paulista que especulavam a possibilidade de o jovem craque do Bangu jogar ao lado do também jovem Pelé. Sendo filho de quem é o intenso holofote era mais que natural. Domingos da Guia apostava no sucesso do rapaz: “O pai não tem queixas do que ganhou com o futebol. Entretanto o filho tem tudo para brilhar e ganhar muito. Ganhar para viver, quando deixar o futebol. Tem futebol para isso. Cumpre a risca as determinações de seu técnico, bem como os conselhos dados pelo pai. Não poderia ser melhor. É um legítimo herdeiro do futebol praticado pela família.”
Ademir de Menezes, amigo dos Da Guia, também previa o sucesso do menino: “Grande futebol tem o garoto. Posso assegurar que será um dos integrantes da seleção brasileira nos jogos do Campeonato Mundial de 62. Sabe dominar com facilidade o meia da cancha. Entrega a bola com máxima perfeição. Em suma, é um jogador extraordinário. Está de parabéns o futebol brasileiro, contando com outro valor positivo. Se ouvir bem os conselhos do papai, não tenho a menos dúvida, irá longe. Seu técnico, meu amigo Tim, saberá elevar mais o seu futebol.”
O ingresso de Ademir no Palmeiras teve um responsável. Um, definitivamente não. Eram dois. O primeiro foi o então técnico do Guarani Armando Renganeschi. Ao vê-lo jogar pelo Bangu em uma partida contra o time de Campinas, não titubeou. Sugeriu aos dirigentes do Guarani que contratassem Ademir. Pedido recusado, o garoto permaneceria no Bangu e somente em 1961 uma nova investida de Renganeschi para ter Ademir seria bem-sucedida. O felizardo? O Palmeiras, onde o ex-técnico do Guarani passou a dar as cartas no futebol. O presidente do clube alviverde, Delfino Facchina, e o diretor de futebol, Arnaldo Tirone, acataram a “ordem” do técnico e pagaram três milhões e oitocentos mil cruzeiros ao Bangu para ter o russinho no Palestra. Quantia considerada na época muito abaixo do que realmente valia Ademir.
Amanhã, você saberá como Ademir da Guia foi recebido pelo Palmeiras. Uma das jornadas mais belas de um jogador de futebol com o clube que o fez gigante. Até lá.
CICATRIZES E SORRISOS
texto: Sergio Pugliese | vídeo e edição: Daniel Planel
Adoro os otimistas e, por isso, em tempos de Corona, a afirmação “vai passar” me agrada muito. Até porque vai passar mesmo. Não dá para estimar o saldo final, mas vai passar. Quem viver, verá!
Sempre sonhei em escrever um roteiro sobre a jornada de quatro velhos jornalistas, daqueles que fizeram de tudo e mais um pouco, cobriram guerras, campanhas políticas, impeachments, o assassinato do Kennedy, o da princesa Diana, atentados, o Carnaval, denunciaram falcatruas, descobriram personagens fantásticos, se infiltraram em grandes esquemas e deram furos espetaculares. Quatro velhinhos, com os olhares afiadíssimos, que se reúnem religiosamente em um boteco para recontar essas histórias. Eles sabem que tudo passa. Hoje existe um monumento onde brilhavam as monumentais Torres Gêmeas. Caiu, levante! A dor permanece, mas a banda passa, inapelavelmente. Tudo vira história.
Na Copa de 50, 200 mil brasileiros inundaram o Maracanã de lágrimas. O genial Zizinho saía de campo chorando compulsivamente quando foi amparado com um abraço pelo goleiro uruguaio Maspoli. O repórter fotográfico Luiz Carlos Barreto registrou a cena. Belíssima! Barretão também estava arrasado, mas precisava eternizar aquela imagem, ossos do ofício. Os jornalistas não são insensíveis, como em muitos casos possa parecer. Vendo a foto imaginei Maspoli sussurrando “vai passar” para Zizinho.
Oito anos depois, lá estava Barretão com sua Leica, agora na Suécia, para cobrir mais uma Copa do Mundo. Dessa vez, o abraço registrado por seu olho mágico foi o de Garrincha em Pelé, o da conquista, o do êxtase. Dois abraços, duas histórias, dois desfechos. Para o velho jornalista, o “vai passar” de 50 funcionou. Entre cicatrizes e sorrisos, tudo passa, tudo sempre passará.
O DIVINO ADEMIR DA GUIA: O COMEÇO DE TUDO
por André Felipe de Lima
A maior linhagem do futebol brasileiro tem um sobrenome inconfundível: Da Guia. O último da dinastia chama-se Ademir, ou simplesmente “Divino”, como o batizou a apaixonada torcida do Palmeiras. Sobre ele, o cronista Armando Nogueira escreveu: “Ademir da Guia, tens o nome, o sobrenome e a bola do craque”. O pai do craque, Domingos, o “Divino Mestre”, vaticinou em 1944, quando ele e Dona Maria, avó de Ademir, brincavam com o menino em um parque de Caxambu : “A nova geração de craques ‘made in Da Guia’ chamar-se-á Ademir. Ademir da Guia. Tem dois anos agora, mas já sabe usar os pés com eficiência. Não pode ver uma pedra ou uma bola de papel no chão que não sinta logo o desejo de chuta-la. Olha lá o que ele está fazendo. Está chutando o copo que trouxe para beber a água magnesiana. Ponha diante dele uma bola de borracha e verá como sabe o que deve fazer. Está ali o futuro Da Guia, o zagueiro mais caro da América do Sul. Dele é que vou cuidar, quando me aposentar”. E o pai cumpriu o prometido.
Foi nas ruas do bairro Bangu, na zona oeste do Rio, em que Ademir da Guia deu os primeiros passos, os primeiros chutes. Seus pais Domingos [o maior zagueiro da história do futebol brasileiro] e Erothides sempre zelaram pelo jovem que mais tarde encantaria banguenses e palmeirenses. Sobrinho dos incompreendidos craques de Moça Bonita Luis Antonio da Guia [vetado das primeiras seleções brasileiras no início do século por ser negro] e Ladislau da Guia [um dos maiores artilheiros da história dos campeonatos cariocas], Ademir jogava suas “peladas” nos campos de terra batida, que, mesmo após cinco décadas desde o surgimento daquele russinho de olhos claros e bom de bola, ainda insistem em encantar as crianças do bairro. O mesmo onde o próprio Ademir nasceu, no dia 3 de abril de 1942.
Ademir nasceu Da Guia, mas o nome principal foi uma homenagem de Domingos ao grande amigo e craque vascaíno Ademir de Menezes. Para desespero da torcida rubro-negra, que chiou muito por causa da reverência ao ídolo do time rival.
Antes de completar seis anos, Ademir da Guia, que acompanhou os pais a São Paulo quando Domingos jogava pelo Corinthians, retornou à rua Sulamérica, 1160, em Bangu. Aos sete, dividia o tempo entre a piscina do Bangu e as aulas do primário no colégio Getúlio Vargas. Evidentemente que o menino também jogava bola, mas a natação foi o esporte que norteou a infância e pré-adolescência do lourinho.
Em 1953, defendeu o estado da Guanabara no campeonato brasileiro de natação e, no ano seguinte, sagrou-se campeão carioca infanto-juvenil de natação pelo Bangu.
Mas outro esporte começou a motivá-lo. Os jogos no campo do Céres F.C. e as idas aos estádios para ver seus ídolos Rubens, do Vasco, e Dequinha, do Flamengo, o animavam mais que as piscinas. Dequinha, centromédio clássico, um dos melhores jogadores que já vestiram a camisa rubro-negra, foi a principal referência estilística para Ademir da Guia no início da carreira .
Mas o futebol estava dificultando os estudos. Ademir cursava o ginasial no colégio Campo Grande e, depois, no Belisário. Repetiu a sétima série e abandonou os estudos.
O moleque russinho seguiu a trilha do pai e dos tios e foi parar no Bangu, mas, curiosamente, quem o levou, em 1956, para lá foi um colega de “peladas”, o menino Durval. O técnico da garotada era o ex-atacante Moacir Bueno, que após alguns treinos de Ademir, o colocou na equipe. O filho de Domingos da Guia se preparava para ingressar nas divisões de base do Bangu, que já começava a esboçar o time que seria campeão carioca em 1966. Mas sem Ademir, que definitivamente marcaria seu território na história do futebol brasileiro somente no Palmeiras. Mas, antes disso, há uma singular trajetória vivida no Bangu.
Zizinho, o grande ídolo do Flamengo, do Bangu e do São Paulo, já havia ingressado na carreira de treinador quando teve o privilégio de acompanhar os primeiros passos de Ademir da Guia, em 1960, no time principal do Bangu, que enfrentaria a equipe do Vasco. Eram dois jogos, um entre os times principais dos dois clubes e outro entre os de reservas. Ademir já era titular no time de “cima” e Ziza pediu ao presidente do Bangu que liberasse o filho de Domingos e Ananias para o time de “baixo”. Mesmo descrente o cartola autorizou a liberação dos dois garotos. “Escalei Ademir como centroavante. O Domingos veio falar comigo”, disse Zizinho ao escritor e maestro Kleber Mazziero de Souza, biógrafo de Ademir.
Domingos da Guia alertou que Zizinho iria “acabar com o garoto” já que Ademir nunca havia jogado como centroavante. O Mestre Ziza ponderou ao preocupado pai: “Não tem problema. Ele não vai esquecer o que já sabe […] Vai aprender a partir para cima dos zagueiros, a entrar na área pelos dois lados.”
O treinador chamou o garoto Ademir em um canto e o orientou a utilizar as passadas largas que o caracterizavam em campo para ganhar mais velocidade ao entrar na área adversária. Resultado? O Bangu detonou o Vasco nos dois jogos.
O pai garantia que nunca influenciou o filho no estilo. Para Domingos, Ademir “nasceu sabendo jogar futebol”.
Amanhã, você terá os detalhes do começo da carreira de Ademir da Guia no Bangu. Até lá.