A VERDADEIRA HISTÓRIA DOS CRAQUE DA SÉRIE “THE ENGLISH GAME”
por Jorge Eduardo Antunes
Febre entre os amantes do futebol, que estão em crise de abstinência por falta de bola rolando, a minissérie “The English Game”, produção da Netflix, romanceia a história dos escoceses Fergus Suter e James Love, provavelmente os dois primeiros profissionais do esporte. Mas é o historiador Andy Mitchell que joga luz sobre a verdadeira história da dupla, que trocou o Partick pelo Darwen em 1878 para começar uma revolução mundial no esporte.
Em seu excelente site Scottish Sport History, em duas diferentes postagens, ele conta que a conexão entre Partick e Darwen começou antes da chegada da dupla, mais precisamente com William Kirkham, jogador nascido em Darwen (Inglaterra), em 1854, e que foi trabalhar em Partick (Escócia), como misturador de cores na indústria têxtil. Lá se tornou também fundador do Partick em 1875. Anos depois, ao retornar à cidade natal, juntou-se ao Darwen, iniciando um relacionamento entre os dois clubes.
Por conta disso, entre 1876 e 1880, o Partick enfrentou o Darwen cinco vezes, com três vitórias – duas por 7 x 0 – e duas derrotas. No mesmo condado, jogou com o Blackburn Rovers (duas vitórias e uma derrota), o Bolton & District (um empate) e o Turton (uma vitória). Entre esses anos, Love e Suter aportaram por lá. Mas, diferentemente do que mostra a minissérie, os dois não saíram juntos do time escocês para jogar em Darwen, cidade no condado de Lancashire, a 320 quilômetros de distância de Glasgow.
Jimmy Love foi o pioneiro. Dono de um negócio de limpeza de ruas em Partick, distrito de Glasgow, ele também jogava no ataque do time. Em outubro de 1878, sua empresa quebrou. Love foi citado em ação de falência e teve a prisão decretada por não comparecer às audiências. Mas nunca foi preso. Na mesma época, já estava em Darwen, como jogador. Tinha feito amigos lá no encontro Darwen 3 x 2 Partick, em 1° de janeiro de 1878.
Na época, Fergus Suter, pedreiro como seu pai, era um dos grandes jogadores do Partick, onde atuava desde 1876. Mas no mesmo outubro de 1878, a quebra do City of Glasgow Bank levou o construtor Peter McKissock a demitir seus empregados. Suter, aos 21 anos, provavelmente era um deles. Sem perspectivas de trabalho, teria escrito para Love, em busca de uma vaga no Darwen. Chegou na cidade e atuou como pedreiro por breve tempo, logo passando a sustentar-se apenas com o futebol, antes mesmo de o profissionalismo ser admitido.
Suter só estreou pelo Darwen em 30 de novembro de 1878. Uma semana depois, ele e Love fizeram seu début na tradicional FA Cup (para nós, Copa da Inglaterra), no 0 x 0 com o Eagley, em 7 de dezembro– time eliminado no jogo-desempate de 21 de dezembro de 1878, após Love, Suter e cia aplicarem um sonoro 4 x 1. A campanha da equipe de Lancashire foi longe naquela competição. Em 30 de janeiro de 1879, o Darwen venceria o Remnnants por 3 x 2 e venderia caro a eliminação nas quartas de final para o tradicional Old Etonians, time formado por ex-alunos do Eton College. Foram três encontros: o 5 x 5 retratado na minissérie, seguido de um 2 x 2 e da vitória por 6 x 2 do Old Etonians – que também é mostrada.
Ao contrário do que mostra a minissérie, a dupla seria desfeita em 1879. Love jogou algumas vezes pelo Darwen, mas deixou o clube em outubro, após a derrota para o Haslingden, pela Lancashire Cup. Em 10 de janeiro de 1880, atuou pelo Blackburn Rovers contra o mesmo adversário, naquela que foi, provavelmente, sua última partida de futebol. A minuciosa pesquisa de Andy Mitchell descobriu a trajetória de Love depois disso. Ele se alistou no corpo de fuzileiros navais em Liverpool, no dia 24 de fevereiro de 1880. Como cabo, embarcou para o Egito, em 1882, para controlar uma revolta nacionalista em Alexandria. Ali ele contraiu febre tifóide e morreu aos 24 anos, em um hospital militar de Ismaília. Foi enterrado no cemitério de Tel-el-Kebir.
Consultor da série, apaixonado pela história do esporte e autor de vários artigos, Mitchell afirma que “Jimmy Love foi pioneiro no futebol e, embora Fergie Suter seja frequentemente descrito como o primeiro profissional, devemos reconhecer que Jimmy esteve lá primeiro”. Se não foi o pioneiro, Suter teve mais sucesso e se tornou o capitão do Darwen, a rigor quem definia o estilo de jogo e a formação tática das equipes, a partir da temporada 1879/80.
No meio de 1880, trocou o time pelo Blackburn Rovers. A equipe de Darwen acusou os rivais de aliciarem seu craque, mas não havia provas disse e nenhuma vontade da Football Association (a federação inglesa) para averiguar o caso, pois o mesmo clube era suspeito de pagar a Suter – que, segundo a pesquisa de Mitchell, também tinha outro motivo para mudar de ares: a gravidez de uma criada na mesma época. No Blackburn Rovers, ele teve destacada carreira como jogador profissional. Foi finalista da FA Cup em 1882 e acabou por vencer a competição em 1884, 1885 e 1886. Também atuou no primeiro campeonato da Liga Inglesa, em 1888. Suter parou um ano mais tarde. Morreu em 1916, aos 58 anos.
Não deixe de ler os posts de Mitchell, que também foi, por dez anos, chefe de comunicação da Federação Escocesa e consultor do Museu Mundial de Futebol da FIFA:
O DIA EM QUE SÃO PAULO SE VOLTOU CONTRA ROBERTO DINAMITE
por Luis Filipe Chateaubriand
Uma das maiores injustiças que já vi no futebol aconteceu em 03 de Março de 1982. Tive o desprazer de ver Roberto Dinamite, o meu maior ídolo na infância, copiosamente vaiado, em um jogo da Seleção Brasileira.
Brasil e Tchecoslováquia jogaram naquele dia, em São Paulo. O Brasil formou com: Valdir Peres; Perivaldo, Oscar, Luisinho e Júnior; Toninho Cerezo (Renato Pé Murcho), Sócrates e Zico; Jairzinho (Paulo Isidoro), Roberto Dinamite e Mário Sérgio (Éder). Era a despedida do “Furacão” Jairzinho da Seleção Brasileira.
Na época, estava certo que um dos centroavantes que iriam à Copa do Mundo de 1982, na Espanha, era Careca (que acabou se contundindo e não foi à Copa). Uma vez que Telê Santana descartou, incompreensivelmente, o craque Reinaldo, a outra vaga de centroavante para a Copa era disputada por Serginho Chulapa e Roberto Dinamite.
Quem jogaria, naquela ocasião, era Serginho. Mas o atacante são paulino se machucou, e Roberto foi para o jogo. O craque vascaíno saiu jogando em São Paulo, terra de Serginho, em jogo no Morumbi, estádio do São Paulo, clube de Serginho.
O deplorável bairrismo que assola o nosso futebol, então, aconteceu.
Roberto Dinamite não podia pegar na bola, que era impiedosamente vaiado. Os gritos de “Fora Roberto” ecoavam por todo o estádio. Luciano do Valle, que desde um bom tempo fazia lobbie para que Serginho fosse à Copa, criticava Roberto de todos os jeitos e de todas as formas durante a transmissão.
Roberto jogou bem? Não. Inclusive, perdeu um gol feito, daqueles que raramente perdia. Mas o time todo jogou mal – tanto que não vencemos o jogo, este ficou empatado em 1 x 1.
Inclusive, o gol da Seleção, de Zico, surgiu depois de uma cabeçada de Roberto que bateu no travessão.
Depois disso, Roberto não teve mais chances na Seleção – foi ser convocado novamente quando Careca foi cortado da Copa, mas não jogou. O maior artilheiro do país na época ficou no banco, enquanto Serginho ia perdendo gol atrás de gol no Mundial.
Valeu, torcida paulista…
Luis Filipe Chateaubriand é Museu da Pelada
SIM, EU VI E TODO MUNDO VIU
por Claudio Henrique
Dos muitos milhões de “técnicos” que existem no mundo, o que mais entende e enxerga o futebol é o TEMPO. Daí eu ter sido enviado do futuro como comentarista para analisar esses jogos do passado da nossa Seleção, hoje já pentacampeã (mas, por favor, não espalhem). Vim e vi, aliás, como tantos, pois foi essa a primeira Copa transmitida em tempo real para o Brasil. E a cores, embora televisores coloridos no país sejam, nesses anos 70, tão raros quanto o número de “gols feitos” perdidos pelo Rei Pelé. E olha que nessa partida ele perdeu um, em lance que desconhecia antes dessa minha investida na máquina do tempo. A jogada jamais será selecionada entre os “melhores momentos”, embora mereça, pelo ineditismo. Mas lances memoráveis não faltaram. Vendo, enfim, os 90 minutos, certificarei ao torcedores de amanhã que foi um belo jogo esse Brasil 4 x 1 Tchecoslováquia. Abre-alas do grandioso desfile que se seguirá da nossa melhor Seleção de todos os tempos, pois acreditem: outra assim não teremos!
Devo confidenciar que no futuro dirão que esse “escrete canarinho” de 70 conseguiu a proeza de reunir entre os 11 em campo muitos “camisas 10”. De fato, vários dos craques com a amarelinha envergavam a 10 em seus clubes de origem. Mas em campo o criador dessa mística fez valer a sua autoridade. Pelé esteve mais uma vez eterno: o melhor jogador de todos os tempos. Anos depois, vou logo avisando, muitos tentarão contestar esse título irrevogável, atribuindo predicados e hipérboles a atletas como Maradona, um canhoto argentino muito bom de bola que em breve vocês conhecerão. Um cracaço, sem dúvida, que inspirou magias no esporte mas se perdeu aspirando outros feitiços. A chama insistente desta campanha contra o Rei só se apagará anos mais tarde, quando surge nos campos do mundo outro canhoto, Messi, também argentino. Desconfio que nos próximos 200 anos serão mais e mais pretensos candidatos ao trono. Talvez todos argentinos. Pobres mortais.
Mas vamos à bola rolando. Essa preta e branca, incomparável, acariciada por chuteiras que também ainda não exibem outras cores. Uma simplicidade que me fazia, na infância, acreditar que todos aqueles craques, como eu, jogavam de Ki-chute. Ainda no primeiro tempo, vimos o “negão”(expressão que uso aqui porque no futuro não me será permitido) surpreender a todos e mais alguns tentando um gol do meio campo, ao observar o goleiro tcheco adiantado. Épico. Testemunho a vocês que, no futuro, não serão poucos os jogadores que tentarão façanha semelhante, alguns com sucesso. Mas foi ali, naquele minuto sagrado da partida em Guadalarara, que pela primeira vez se viu algo parecido, tamanha genialidade. E Pelé não erra. Mesmo quando a bola não entra, seus lances ganham a História. A bola não entrou, mas foi gol. Gol do futebol.
O tento adversário, que deve ter deixado tensa a torcida brasileira (a mim não, claro, pois já conhecia esse enredo), não retratou o que víamos em campo. Sim, o Brasil não tremeu nessa estreia. Preparem-se, pois nas próximas edições do Mundial teremos primeiros jogos da Seleção infinitamente mais dramáticos. Não quero entregar o final do filme, mas, só para dar uma ideia, acreditem que daqui a quatro anos, na Alemanha, vocês terão que aturar o Brasil empatando os dois primeiros jogos, contra Iugoslávia e Escócia, e se classificando após um suado 3×0 contra o Zaire, com gol espírita de Valdomiro, nosso ponta após décadas de Garrincha e Jairzinho. Aguardem… A Alemanha, aliás, é protagonista de outro momento dramático da Seleção no futuro. Mas esse prefiro deixar em segredo. E tenho sete motivos para isso.
Todos jogaram bem, até o Everaldo, que não errou um chutão que deu na defesa e nem no ataque, isolando a pelota na arquibancada no único momento em que visitou o campo adversário. Foram perfeitas homenagens ao Sputnik dos russos (terá sido Everaldo ativista de esquerda?). Jairzinho foi um destaque. Vocês já deram a ele o apelido de Furacão? Deixa eu ver aqui no Goo.. Deixa eu pesquisar… Não, alguém ainda o batizará assim pelo fato de vir a marcar em todas as partidas no México. Foram dois nesse certame. Lindos, mas um deles fadado a ser eternamente uma incógnita na arbitragem mundial. Estaria nosso Furacão em posição de impedimento no terceiro gol brasileiro? Não temos aqui, ainda, câmeras laterais, que ajudam nessa avaliação, e nem uma tecnologia, ou melhor, uma “estrela” dos gramados que só chegará ao futebol daqui a quase 50 anos: o VAR. Outro segredo que não revelo. Mas decidirá muitos jogos.
Gerson e Rivelino também ganhariam notas altas no meu quadrinho de atuações, fosse eu o responsável em qualquer jornal brasileiro que hoje circula, mesmo sob censura. No futuro todos saberemos das notícias do futebol por uma sistema chamado Internet, sobre o qual não cabe aqui explicação _ e este “cabe” refere-se literalmente ao tamanho da resenha. E também pelo SporTV, um canal de televisão exclusivo de esporte que reprisará esses jogos em 2020, me dando a chance desta viagem ao México 70. Sim, teremos isso, um canal de esportes, podem começar a comemorar. Aliás, no século 21, de onde vim, teremos muitas coisas que vocês não desfrutam, amigos, como TV a cabo, liberdade de imprensa… Curiosamente, em 2020 também serão muitos os militares no poder. E muitos os dias em casa, confinados pela Pandemia do Corona. Mas deixemos isso pra lá. Sempre teremos a alegria de ser brasileiro. E de termos tido Pelé. E Riva, Gerson, Jair, Tostão… Que venha a Inglaterra! Eu vou às tequilas!
A MAGIA DA SELEÇÃO DE 70: UMA CONSTELAÇÃO DE CRAQUES
por Ivan Gomes
Vivemos dias tristes e mais estranhos do que os habituais, isso é fato! Mas durante esse período de confinamento e no qual o mundo virou de cabeça para baixo, ou para cima, depende do ponto de vista, a falta de futebol fez as emissoras revisitarem os arquivos do esporte. E na semana passada, o Sportv nos levou de volta à Copa do Mundo de 1970.
Quando garoto, a TV Cultura sempre reprisava alguns jogos clássicos e foi por meio desta emissora que vi muitos dos jogos da Copa de 1982 e também de 70. Gosto de futebol desde que me conheço por gente e com o passar do tempo nos envolvemos mais e mais, tentamos jogar, lemos sobre o esporte, acompanhamos as histórias.
Cresci vendo a programas esportivos nos quais comentaristas em debates acalourados exaltavam a seleção de 82, mas, do que eu havia visto, a seleção de 70 era algo sensacional. Não havia como ter tal comparação. E com isso, fui rever novamente os jogos. A seleção de 82 era ótima, mas a seleção de 70 é o ponto fora da curva. Que timaço! E além dos 11 que entraram em campo, era impressionante a quantidade de craques no banco de reservas.
Além da beleza do futebol apresentado, o que mais chamou atenção, ao rever os jogos, era a falta de vaidade, entrega em campo e companheirismo. Pelé era o rei do futebol quando chegou à Copa. Mas fiquei impressionado em vê-lo no auxílio à marcação… como contribuía com o sistema defensivo, dava combate, fazia falta e ainda revidava as agressões recebidas, que não foram poucas.
Também destaco o fato de não ver jogadores preocupados com o cabelo antes de bater uma falta ou arrumar o meião antes de ir para marcação. Ali havia apenas a preocupação em jogar futebol e infernizar as defesas adversárias. E como infernizaram. Foram 19 gols anotados em seis jogos. Sendo sete apenas entre a semi-final e a decisão. E não contra quaisquer timecos, como somos obrigados a engolir nos dias atuais. Foram sete gols anotados em duas seleções bicampeãs do mundo: Uruguai e Itália.
Portanto, ao rever esses jogos, é inevitável fazer a comparação com os dias atuais. Infelizmente o que vejo atualmente é somente marketing. Somos quase que obrigados a ouvir um monte de bobagens de muitos “especialistas” que desanimam tamanho absurdo que dizem. O futebol atual é mais negócio… não parece que o que se pratica hoje é a mesma modalidade que praticavam há 50 anos.
A seleção de 70 era toda formada por atletas que jogavam em nossos clubes. E a quantidade de camisas 10? Pelé, Rivellino, Gérson, Jairzinho… todos no mesmo time. Atualmente, os “entendidos” no esporte dizem que fulano não pode jogar com ciclano, beltrano. Ah… quem sabe jogar joga e joga ainda mais quando tem outro craque ao seu lado.
A magia de 70 é tanta que além do título, das vitórias acachapantes, belos gols, teve ainda lances maravilhosos como a tentativa do gol de Pelé antes do meio campo, a defesa magistral de Banks, o drible inacreditável no goleiro uruguaio…
Se atualmente a mídia trata Messi e Cristiano Ronaldo como “monstros”, imagino o que diriam sobre o cometa que passou pelo México em 1970. E Messi e Cristiano não apanham nem um quarto do que Pelé e companheiros apanhavam. E nem vou citar condições de gramado e material esportivo.
Para encerrar, faço das palavras do escritor inglês Nick Hornby, em sua obra “Febre de Bola”, as minhas: “o Brasil estragou tudo para nós. Tinha revelado, ali, uma espécie de ideal platônico que ninguém, nem o próprio Brasil, jamais seria capaz de atingir outra vez.”
ESPECIAL 70 ANOS DA COPA DE 1950 – EM MONTEVIDÉU, CARA A CARA COM OS FANTASMAS
por Marco Antonio Rocha
A ideia veio como um chute seco, que passa rente à trave antes de morrer no fundo do gol. Eu estava no 328, ônibus que liga a Ilha do Governador ao Centro, quando vi de longe o Maracanã. O gigante já havia passado por plásticas mal-sucedidas e perdido boa parte da velha forma, mas ainda guardava sua essência intocada. Como quase sempre fazia, por minutos recordei vitórias que ali comemorei, derrotas que ali me fizeram chorar… Mas naquele dia foi diferente: devia ser fevereiro ou março de 2000 e me dei conta de que em poucos meses seriam evocados os 50 anos da Copa do Mundo, do malfadado Maracanazo. O ponto que me deixaria perto do Lance! chegou logo e desci, com uma pressa maior que a habitual. Já na redação, liguei o computador e comecei a pesquisar quais uruguaios que fizeram nossos pais e avós chorarem ainda estavam vivos.
Depois de algumas ligações para jornais do Uruguai, tinha em mãos o mapa que me levaria a um tesouro: eram números de telefone de quatro heróis que viviam em Montevidéu. Na mesma semana a ideia foi comprada por Álvaro Oliveira Filho, então editor-chefe do Lance!, que retrucou com apenas uma recomendação: não poderia ser uma viagem cara, era preciso economizar na quantidade de diárias. A pequenina capital uruguaia seria uma aliada e tanto. No dia seguinte, liguei para o quarteto, a começar por Schiaffino, elegante meia-armador que abriu caminho para a virada que gelou o Maracanã. E, assim, a agenda de entrevistas foi sendo preenchida com o apoiador Pérez, o goleiro Máspoli… Faltava, porém, fechar essa pequena grande seleção com o maior de todos: Ghiggia, sete letras capazes de fazer tremer alguém que, entre todas as Copas, tem como lembrança mais antiga a de 1982! O telefone toca uma, duas, três, quatro vezes. Quando achava que não atenderia, uma voz grave paralisou meu corpo. Expliquei num espanhol gaguejante que desejava encontrá-lo; ele me disse que morava na rua tal, em frente ao McDonald´s. Sua pronúncia e meu nervosismo fizeram com que as letras da lanchonete se tornassem uma só. Pedi que falasse de novo. E de novo, de novo. Enfim deduzi o que se tratava e desliguei. Definitivamente, aquele contato, como o de 50 anos atrás, não havia terminado bem…
Nesta altura o jornalista Pedro Paulo Malta Santos e o fotógrafo Nelson Almeida já haviam entrado na aventura – o primeiro para produzir o material digital; o segundo para fotografar todos (e tudo). Desembarcamos no finalzinho de uma tarde de sábado, de olho no relógio para o bate-papo marcado com Schiaffino. Antes, porém, precisávamos comprar uma camisa da seleção. De táxi, peregrinamos por lojas de rua e shoppings. Absolutamente nenhuma tinha. A associação uruguaia havia rompido o contrato com a antiga fornecedora sem que tivesse fechado com uma nova. A hora ficava cada vez mais apertada até que, na última tentativa, enfim conseguimos a Celeste! E lá fomos nós para a orla de Montevidéu encontrar nosso personagem.
De suéter vinho e calça comprida, o elegante ex-meia-armador que acumulara títulos por Peñarol, Milan e Roma nos aguardava na porta de casa. Com sorriso largo, recebeu-nos com a simplicidade de um gênio. Durante a entrevista, fez questão de tirar de um armário recuerdos e regalos de 1950: uma bandeja imitando o calçadão de Copacabana, registros e mais registros fotográficos em momentos de folga no Brasil. As memórias guardadas na cabeça, porém, por vezes se perdiam no tempo e nas falas. Mas recorreu a uma precisão extrema para desqualificar não apenas seu gol, mas o de Ghiggia. Com a camisa devidamente autografada, fomos enfim para o hotel.
No domingo pela manhã, chegar à casa de Pérez não foi fácil. Uma feira livre bloqueava a rua de árvores enormes e casas de muros baixos. Não fossem os vendedores anunciando seus produtos em espanhol, poderíamos imaginar que estávamos no subúrbio carioca. Em um canto da sala, evidências da época de jogador: um quadro seu com a camisa do Nacional; um pequeno boneco de louça, em referência ao tempo em que desfilava uma técnica refinada pelos gramados; e a réplica da Jules Rimet. Aquele altar, porém, colocado estrategicamente de frente para a porta de entrada, era mais um monumento à amargura do que à Copa de 1950. Entre a tristeza que causou aos amigos brasileiros e a falta de reconhecimento dos dirigentes do Uruguai, Pérez deixava claro que não guardava boas lembranças do dia em que, em sua visão, brasileiros e uruguaios saíram derrotados. Antes da despedida, fomos brindados com doses de uísque caubói — não é todos os dias em que se bebe com um campeão do mundo!
A conversa com o craque, ídolo tardio do Nacional, dificultou a digestão do almoço de domingo, por melhor que seja a carne uruguaia. Ainda mais quando a sobremesa é uma entrevista com… Ghiggia. “Osso duro de roer!”, muitos diziam quando comentávamos sobre nossos planos. “Ele cobra para dar entrevistas. E caro!”, avisavam outros. Foi preciso pagar para ver, ficar frente a frente com uma fera que, do seu modo milongueiro, mostrou-se um doce. Quando chegamos ao endereço anotado, vi o tal McDonald´s e abri um sorriso. Era ali, em um sobrado acanhado e escuro, que vivia um Rei de Copas. Subimos por uma escada estreita, rente à parede sem pintura. A poucos degraus do fim, ele surgiu: cabelos milimetricamente alinhados para trás, bigode fino como o dos vilões da Disney e camisa preta de mangas compridas e gola rolê. Com 1,69m, visto de baixo, parecia mais alto; olhos nos olhos, parecia um gigante.
Já acomodados em torno de uma pequena mesa, achamos por bem puxar papo com assuntos triviais. Comentamos algo sobre sua coleção de fitas-cassetes de músicos brasileiros, cuidadosamente arrumada sobre a lareira: “Me encanta Gal Costa”, disse, como se quisesse deixar seus visitantes à vontade. Imaginamos que fosse a senha para falar do Brasil, do Mundial. A interrupção veio acompanhada de reticências, as mais demoradas de nossas vidas: “Pero yo cobro…”. As pernas tremeram, era como se estivéssemos diante de Ghiggia no Maracanazo de 50 anos antes. Um silêncio ensurdecedor tomou conta da casa nos segundos seguintes. E só foi quebrado pelo próprio craque: “Mas vou falar de graça com vocês, que saíram do Brasil só para recordar essa história. Aqui a imprensa parece não saber o que represento”. Após uma longa entrevista, saímos de lá com a sensação de termos virado, à moda uruguaia, um jogo improvável. Um jogo em que vilões e heróis se confundem. Tudo é divino e maravilhoso.
Da apreensão ao encantamento, começamos a segunda-feira sabendo que nada poderia dar errado naquela viagem. E tivemos certeza quando chegamos à casa de Máspoli, um simpático velhinho de 82 anos. Com visão muito particular sobre aquele 16 de julho, o goleiro campeão de 1950 nos surpreendeu ao dizer que o Brasil, pelo vexame que a derrota em casa provocaria, sentira o peso do gol de empate. E mais: que a seleção brasileira havia sido devidamente analisada antes da grande final — ao lado do capitão Obdulio Varela, Tejera e Gambetta, Máspoli era uma das vozes mais ativas junto ao técnico Juan López.
Estávamos bem perto do mítico Estádio Centenário que, por feliz coincidência, abrigava o museu dedicado às glórias uruguaias. A sorte, definitivamente, estava ao nosso lado. Ou pelo menos parecia estar… Procura daqui, procura dali e eis que, enfim, encontramos a entrada. Provavelmente passamos por ela mais de uma vez, já que estava escondida por um… caminhão de mudança! Caixas e mais caixas saíam de lá. “Vamos levar tudo para a associação, ficará guardado antes da exposição no shopping central”, explicou um dos funcionários. Gol do Uruguai, o Maracanã se cala, lágrimas ameaçam escorrer com aquele gol já nos acréscimos da nossa viagem. “O diretor virá em breve, ele pode falar com vocês”, disse outro homem, a caminho do veículo. E de fato logo chegou, mostrando surpresa pelo nosso interesse: “Vocês estão aqui para fazer uma reportagem sobre a Copa que nós ganhamos de vocês!? Venham comigo, há muitas coisas ainda lá dentro”.
O que vimos dentro daquele museu improvisado embaixo da arquibancada era uma espécie de arca perdida, o Santo Graal dos deuses de chuteiras: a réplica da taça; a camisa celeste usada por Obdulio, com o 5 em vermelho às costas; a bola que enganou Barbosa e condenou um dos maiores goleiros brasileiros do Brasil à sua prisão perpétua… Já fora das redomas, cada objeto passou pelas nossas mãos para serem fotografados por Nelson Almeida. Minutos antes, achávamos que não chegaríamos nem perto daquele tesouro; naquele momento, tínhamos a História entre os dedos. A vida é mesmo tão imprevisível quanto o futebol. As poucas horas em Montevidéu tiveram o valor de anos, décadas, uma vida inteira. A bordo do 328, passei outras tantas vezes pelo Maracanã, mas jamais olhei para o velho estádio da mesma forma.