DA LAMA À GRAMA: UMA VIAGEM PELA TERCEIRA DIVISÃO
por André Luiz Pereira Nunes
“A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakesperiana”, escreveu Nelson Rodrigues.
O Campeonato Estadual da Terceira Divisão do Rio de Janeiro, hoje cognominado Série B2, é um verdadeiro celeiro de craques do futebol brasileiro e internacional. O artilheiro do recente Campeonato Estadual, João Carlos, do Volta Redonda, despontou no Arraial do Cabo, agremiação criada e presidida pelo saudoso ex-árbitro e dirigente Walquir Pimentel. O habilidoso atacante Pedro, do Flamengo, foi revelado pelo Duquecaxiense, antes de se transferir para o Fluminense. Uma outra histórica revelação é a do meia Válber, surgido no Tomazinho, o qual posteriormente se consagraria por clubes como São Cristóvão, São Paulo, Vasco, Fluminense, Seleção Brasileira e outros. O modesto Barcelona, de Jacarepaguá, pode não ter um histórico de títulos em seu pavilhão, mas revelou o zagueiro Thiago Silva, o qual chegou ao Fluminense e Seleção Brasileira.
A vida, contudo, nem sempre é gratificante para quem atua no submundo do futebol fluminense. Os atletas costumeiramente não recebem salários, mas se dispõem a jogar na tentativa de serem notados para que consigam galgar o que pouquíssimos alcançaram: o sucesso em suas carreiras. A tarefa é árdua, pois além da incipiente cobertura da imprensa, falta apoio por parte da Federação de Futebol do Rio. A ausência de médicos e ambulâncias nas partidas, fato que inviabiliza totalmente a realização das mesmas, a ausência de sinal de internet, água, portas e lavatórios nos banheiros e até marcações no campo feitas com farinha de trigo já são cenas conhecidas no conturbado cenário da terceirona fluminense.
Não obstante, Da lama à grama, do estreante Kléber Monteiro, retrata a atmosfera inusitada e ao mesmo tempo lúdica desse universo bizarro e apaixonante cujos protagonistas são heróis invisíveis. O autor percorre diversos estádios em várias cidades, algumas bem longínquas, como Cardoso Moreira, no norte fluminense, na tentativa de dissecar todas as nuances do meio. Não faltam cenas cômicas e bizarras para que o sarcasmo e o bom-humor destilem e prevaleçam em uma crônica permeada de impressões e reflexões, às quais não se restringem apenas à realidade futebolística, mas se estendem à própria vida. Cada capítulo percorre um jogo por rodada da competição, retratando dramas, conquistas, tristezas e alegrias. A obra nos ensina que esses certames merecem ser vistos além da superfície com a qual a maioria está habituada. Até a capa é bastante emblemática. Porém, uma coisa é certa. O cenário é tão complexo que nem tudo, em se tratando de uma terceira divisão, pode ser contado.
Não faltam referências às históricas agremiações, algumas centenárias como Mesquita, Queimados e Mageense, e outras insólitas como Barcelona e Juventus, que tentam sem sucesso capitalizar o êxito de suas inspirações européias. O autor ainda discorre acerca das dificuldades em obter informações sobre estádios e clubes, observando que a falta de interesse e apoio acerca das competições menores é predominante ainda que estejamos em um país que respira futebol.
Todavia, fica claro que mesmo nesse meio de grandes dificuldades há uma riqueza histórica e humana que são incomensuráveis. A falta de incentivo, visibilidade e patrocínios não impede a bola de rolar. Da lama à grama é uma ode ao futebol-raiz e leitura obrigatória àqueles que realmente apreciam o velho e verdadeiro esporte bretão.
Como já dizia o sociólogo inglês David Goldblatt:
“nenhuma história do mundo moderno é completa sem levar em conta o futebol.”
PELÉ NO VELHO TESTAMENTO
por André Felipe de Lima
Há fatos que surpreendem pelo simples, vá lá, fato de serem quase inverossímeis, e, por incrível que possa parecer isso, acontece muito com personagens memoráveis da história. Pelé, obviamente, está entre elas. Logo após marcar seu milésimo gol, o Rei viu seu feito ganhar o planeta. No mundo inteiro não se falava em outra coisa senão do gol de número mil do Pelé. Das histórias que ouvi ou li sobre Pelé naquela época em que bateu o vascaíno Andrada no Maracanã, a mais impressionante pesquei em uma edição do Jornal do Brasil e partiu de um rabino chamado Herz Torenheim, que se encantou com o apelo que o rei fez ao mundo para que cuidassem das crianças desamparadas. O religioso sugeriu, inclusive, que se criasse um fundo internacional nesse sentido e tendo Pelé como sigla e nome. Torenheim devia gostar muito de futebol e, claro, do Rei. A ponto de simplesmente descobrir (preparados?) Pelé citado no Velho Testamento. “O milésimo gol do Pelé repercutiu mais que o voo dos cosmonautas à Lua”, dizia o empolgado rabino, que revelou à humanidade o fato: Pelé, escrito em hebraico de trás para frente, significa “apelo” e o seu anagrama é “mil”. Vejam: o Pelé chegou ao seu milésimo gol e, em seguida, fez um apelo que ecoou intensamente no mundo inteiro a ponto de o rabino pescar essa memorável história no Velho Testamento. Pelé não é (sempre será) apenas o maior e melhor jogador de futebol em todos os tempos. Pelé é transcendental. Pelé em sua tradução na cosmogênese que explica o planeta bola só pode ser mesmo um deus mágico. E assim falou Torenheim.
1982: O ANO EM QUE O VASCO MUDOU MEIO TIME PARA SER CAMPEÃO
por André Luiz Pereira Nunes
Em 1982, havia 5 anos em que o Vasco sofria um incômodo jejum de conquistas, acumulando vice-campeonatos regionais para Fluminense e Flamengo. Os rubro-negros vivenciavam simplesmente o auge de sua história. No ano anterior haviam derrotado o Liverpool e se sagrado campeões do Mundial Interclubes, em Tóquio. Vale ressaltar que as frustrações cruzmaltinas não se restringiam somente ao Campeonato Estadual. No Brasileiro de 1978, o Gigante da Colina capitulara na semifinal diante do futuro campeão Guarani, a grande surpresa da competição. Já no ano seguinte, houve novo revés vascaíno, dessa vez por parte do fortíssimo Internacional, de Falcão, Mário Sérgio e companhia.
Tudo levava a crer que na disputa do triangular final do Campeonato Estadual do Rio de Janeiro, Vasco e America seriam meros partícipes, enquanto o Flamengo abocanharia com justiça mais um título. Na própria edição daquele ano não houve comemoração de conquista de um turno. A Taça Guanabara ficou em posse do Flamengo enquanto a Taça Rio com o America, a grande surpresa do certame. O Vasco chegaria ao triangular final por conta da melhor campanha geral.
A inspiração para mudar meio time partiu do então treinador, Antônio Lopes, a partir de uma vitória por 3 a 1 sobre o Flamengo na última partida do returno. Acácio veio a substituir Mazaropi, Galvão ocupara o posto de Rosemiro, Ivan o de Nei, Ernâni entrara no lugar de Geovani e Jérson foi designado para a ponta-esquerda. Gostando do rendimento de seus reservas, Lopes os manteria como titulares para a etapa decisiva.
No entanto, a imprensa não aprovaria as mudanças, tratando o comandante da nau vascaína como louco. Não faltaram pesadas críticas e até piadas ao técnico vascaíno que não se fez de rogado. Os argumentos contrários partiam do pressuposto de que Mazaropi e Rosemiro eram atletas experientes e que Geovani, 18 anos, tratado como uma verdadeira jóia preciosa, não poderia ser sacado do time. De fato, no ano seguinte, ele conduziria com maestria a Seleção Brasileira para o seu primeiro título mundial de juniores em decisão memorável contra a Argentina, em um torneio no qual foi grande destaque e também artilheiro.
Porém, com muita raça e liderados por Roberto Dinamite, os vascaínos venceram o forte America por 1 a 0, gol de Ivan, um dos que haviam se transformado em titulares. Vale ressaltar a magnífica atuação de Acácio, o mesmo que fechara a meta do Serrano, de Petrópolis, dois anos antes na lendária vitória sobre o Flamengo por 1 a 0, com um gol antológico do folclórico atacante Anapolina, o qual veio a sepultar as chances do escrete rubro-negro de conquistar o inédito tetracampeonato na Era Maracanã.
Para a decisão foi mantida a escalação contra o Flamengo. Do time rubro-negro estariam em campo dez dos onze titulares que haviam vencido o Liverpool no ano anterior por 3 a 0. A única mudança residia na zaga com a entrada de Figueiredo no lugar de Mozer. Contudo, os ventos não pareciam assim tão favoráveis aos comandados de Paulo César Carpegiani. A equipe parecia desanimada ante à eliminação recente para o Peñarol pela Taça Libertadores da América. Sem contar que Zico, Leandro e Júnior ainda ressentiam do dissabor sofrido na Copa do Mundo quando a Seleção fora eliminada dramaticamente pela Itália.
Na base mesmo da superação, o Vasco fez valer a sua melhor atuação no certame e bateu o Flamengo por 1 a 0. Curiosamente, o gol do título foi marcado por um dos titulares que haviam parado no banco de reservas: Marquinho, um atleta pequenino que subiria majestosamente entre Leandro, Figueiredo e Marinho, para escorar de cabeça para as redes após cobrança de escanteio de Pedrinho Gaúcho pela esquerda.
O fim da sequência de insucessos do Vasco culminaria por decretar também o fim de um vitorioso ciclo daquela inesquecível formação do Flamengo que, remodelado e já sob o comando de Carlos Alberto Torres no lugar de Paulo César Carpegiani, conquistaria o Brasileiro de 1983. Porém, graças às arrojadas defesas de Acácio, à liderança incontestável de Roberto Dinamite e à entrega de Galvão, Ivan, Ernâni e Jerson, os quais agarraram com força a oportunidade, o Vasco levantou o caneco de campeão estadual de 1982. Graças, acima de tudo, à coragem e visão de Antônio Lopes para mudar tanto a base titular em uma reta final de competição.
TAFFAREL, O “ALEMÃO” VOADOR
por Luis Filipe Chateaubriand
Cláudio Taffarel é um dos goleiros brasileiros mais impressionantes que este escriba viu em ação. Brasileiro com jeito de alemão, era verdadeira muralha a ser transposta pelos atacantes que o enfrentavam.
Tinha uma noção de posicionamento no gol extremamente acurada, sabia que bom goleiro não é aquele que a toda hora faz pontes acrobáticas, mas sim o que, bem colocado, tem facilitado seu caminho em direção à bola.
Jogador de voleibol na juventude, tinha um tempo de bola excepcional, o que fazia com que sua saída de gol em bolas altas – notória deficiência de goleiros brasileiros – fosse excelente.
Dono de uma frieza e de uma concentração fartos, tornou-se especialista em defender cobranças de pênaltis. Aliás, esta habilidade impressionante do guarda redes ajudou a Seleção Brasileira a ganhar uma Copa do Mundo, a chegar à final em outra e a chegar em final de Jogos Olímpicos.
O signatário deste texto teve a oportunidade de ver, in loco, Taffarel fazer uma defesa das mais inacreditáveis de todos os tempos.
Maracanã, 1990, jogo de despedida de Zico, entre o Flamengo de 1981 e os Amigos do Zico.
Tita, craque de bola, recebe esta no meio da grande área, e fica cara a cara com Taffarel. Desfere um chute violentíssimo, uma “bomba”.
Taffarel, na maior calma do mundo, estende os dois braços, encaixa a bola entre as duas mãos e sai jogando.
Impressionante!
Por essas e outras, é que sempre se saberá: sai que é tua, Taffarel!
Luis Filipe Chateaubriand é Museu da Pelada!
ESPECIAL 70 ANOS DA COPA DE 1950: OBRIGADO, HERÓIS BRASILEIROS!
por Marco Antonio Rocha
Quanto custa o bilhete de entrada para a galeria dos grandes do futebol? Se a resposta for a conquista de uma Copa do Mundo, então veremos Lionel Messi e Cristiano Ronaldo barrados na porta… E o que falar de Cruyff, Puskas e uma infinidade de outros gênios que encantaram multidões com seu talento? Durante a publicação da série especial sobre os 70 anos da Copa do Mundo de 1950, alguns amigos seguidores do Museu da Pelada questionaram por que não falamos dos brasileiros que formaram aquele time dos sonhos. Seria um pesadelo momentâneo capaz de perturbar seu sono durante anos, no caso de Barbosa até a morte, o mais indefensável dos chutes?
Não fosse a virada na decisão, aquele Brasil que pulverizou marcas e triturou adversários teria entrado para a história do futebol como uma das seleções de campanha mais irretocável de todos os tempos: 4 a 0 no México; 2 a 2 com a Suíça; 2 a 0 na Iugoslávia; 7 a 1 na Suécia (numa época em que esse placar não era sinônimo de vergonha para nós); e 6 a 1 na Espanha, com direito ao Maracanã cantando em uníssono “Touradas de Madri”, de Braguinha e Alberto Ribeiro – um carnaval fora de época, espécie de catarse pós Segunda Guerra Mundial que havia cancelado as Copas de 1942 e 1946.
Coube a Ademir Marques de Menezes, craque do Vasco, o papel de artilheiro do Mundial, com nove gols em apenas seis jogos. Habilidoso e dono de um chute que beirava a perfeição, Queixada teve na Seleção a companhia de outros colegas de Expresso da Vitória, alguns deles que haviam, dois anos antes, conquistado o inédito Sul-Americano. Entre eles o mítico Barbosa, goleiro que ainda acumulou seis Cariocas e um Rio-São Paulo pelo clube. A lista de destaques brasileiros é extensa, com jogadores épicos como Jair Rosa Pinto, Chico e Zizinho.
Ex-Flamengo e São Paulo e, na época, jogador do Bangu, Zizinho atribuía aos bastidores grande parte da culpa pela derrota para o Uruguai. Tudo porque a delegação, a seis dias da final, trocou a tranquilidade da concentração no Joá pelo tumulto de São Januário.
– Era uma desconcentração, ninguém tinha tempo para nada. São Januário vivia cheio de gente. Não aguentava mais tanta bagunça. Eu quis largar aquilo na véspera da decisão! – revelou o ídolo:
– Em meses aconteceria a eleição presidencial. Entrava um político e saía outro. Era muita gente pedindo autógrafo, querendo tirar foto. Minutos antes da final, o prefeito Mendes de Moraes ainda discursou, dizendo que havia feito um estádio para nós e que exigia a vitória.
Outra passagem contada por Zizinho mostra como os jogadores, na verdade, foram vítimas, não vilões:
– Eu estava com o joelho inchado e eles nem cuidavam de mim. Depois do empate com a Suíça em São Paulo, o (técnico) Flávio Costa me disse que precisaria de mim, que eu teria de fazer um teste. Meu Deus, que teste? Mal podia andar… Puseram um remédio no meu joelho e lá fui eu. Segundo Augusto, nosso capitão, era um remédio para cavalos. Mas eu não acredito que fosse, porque um cavalo não aguentaria aquilo, não.
O ex-atacante jamais se furtou de recordar a decisão contra os uruguaios, mas preferia falar de samba, em especial da amizade com Wilson Batista, Ataulfo Alves e Walter Alfaiate. É de Alfaiate uma letra que, por linhas tortas, simboliza aquele jogo que começou na tarde de 16 de julho de 1950, mas parece não ter acabado:
“Olha aí, toda a minha gente reunida; Parece que está bem decidida e que atingiu o seu ideal; Olha aí, veja a euforia como é grande; Note como o pessoal se expande, num gesto tão humilde e leal; Cante com vontade, minha gente, porque hoje já é carnaval; Em cada bloco havia um estandarte, em cada estandarte um dizer; Simbolizando que, nesses três dias, ninguém se lembraria como é o sofrer; Após a batucada pela rua, quarta-feira a vida continua”.
Obrigado, Barbosa, Augusto e Juvenal; Bauer, Danilo e Bigode; Friaça, Zizinho, Ademir, Jair e Chico!