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DANILO, 100 ANOS: SÃO JANUÁRIO RECEBE SUA ALTEZA

por André Felipe de Lima

No gramado, o repórter Jaime Moreira Filho aproximou-se, com um BTP, da RCA, sem fio, para ouvir Danilo, que tivera uma crise de choro. Não conseguiu. Chorou, também.” — Teixeira Heizer, jornalista, em depoimento do livro O jogo bruto das Copas do Mundo, de sua autoria


Campeão Sul-americano 1948 (Acervo Mário Américo)

Em 1945, Zizinho e Danilo Alvim estavam juntos na seleção brasileira que disputaria o campeonato sul-americano. Danilo, porém, na reserva de Rui Campos. Só entrou contra os chilenos quando a possibilidade de título já havia ido para o brejo. O rapaz regressou ao Brasil na esperança de o clube da rua Campos Sales sacudir o elenco e brigar palmo a palmo pelo título estadual. Mas nada disso aconteceu. No final do ano, o treinador uruguaio Ondino Vieira apareceu na sede do América para contratá-lo. Os cartolas americanos botaram a plaquinha de venda: o passe do Danilo valia 300 contos, quantia que dava para comprar casa, carro e até garagem, regozijava-se Danilo. Domingos da Guia estava no Corinthians[1] e tentava a todo custo convencer os cartolas a levar Danilo para o clube paulista. O Botafogo idem, também queira Danilo, e para tê-lo em General Severiano oferecera 90 mil cruzeiros mais o passe de dois jogadores. Os argentinos Papetti e Spinelli estavam na jogada. Danilo gostou da ideia de ir para o Botafogo, os cartolas do América ficaram de pensar na oferta alvinegra. Mas — após um pagamento de 250 mil cruzeiros — sua nova casa seria o Clube de Regatas Vasco da Gama, então campeão estadual de 1945, e invicto! Mas Danilo não era, formalmente, daquele time campeão. Na posição dele figurava como titular o uruguaio Berascochea, o “Bera”, simplesmente. Mas os cartolas estavam eufóricos com a chegada do jovem craque egresso do Américo. Colocaram-no até mesmo na fila para a entrega das faixas de campeão. “Eles estavam na deles, eu estava na minha, e a hora era de soltar foguetes. Aí, não me acanhei: entrei de cabeça. Que fazer? Já estava na fila, recebi [a faixa de campeão]. O pior foi que apanhei justamente a faixa de um titular que não faltara a um único jogo, o pobre Berascochea. Berascochea era um crioulo [sic] fosco, meio índio, meio negrão, cabelo e traços de branco, boa gente, boa pinta, bom apoiador. Quando Bera percebeu que eu estava armando o bote para levar comigo a faixa dele, pulou na frente e gritou não. ‘Pega outra, compadre, que esta é minha!’. Não dava mais para recuar. Meti a faixa dele no meu corpo e toquei pra frente. Assim, escamoteando uma faixa de campeão que não me pertencia, comecei a percorrer a minha longa e frutificante carreira de oito anos no Vasco da Gama.”[2]

A estreia formal de Danilo no Vasco aconteceu no dia 5 de junho de 1946, em um jogo amistoso com o América para levantar fundos que pudessem ajudar ao Vasco a pagar pelo passe do jovem talento. Na época, especulava-se na imprensa que o centromédio Dino, que também brilhara como médio esquerdo, sobretudo no Corinthians, onde formou a célebre linha média “Jango, Brandão e Dino”, teve o passe emprestado ao alvirrubro para facilitar a ida de Danilo para o Vasco. O jogo, realizado em São Januário, terminou 4 a 0 para os americanos, com Dino já vestindo vermelho. Mas a forra viria no dia 12 daquele mesmo mês, e novamente em uma partida amistosa em São Januário. No placar, 5 a 2 para os vascaínos. Com estes dois jogos, o Vasco conseguiu, presume-se, juntar a quantia necessária que atendesse aos anseios dos cartolas do América. Deveria haver um terceiro jogo entre os dois times, mas ele não foi realizado.


Acervo Vasco

Sobre a estreia de Danilo no Vasco, o Museu da Pelada conversou com o escritor e jornalista João Máximo, o biógrafo de Danilo, que narrou a história do craque no livro Gigantes do futebol brasileiro, cuja primeira edição foi lançada em novembro de 1965:

“Na ocasião em que eu o entrevistei para o livro, ele era técnico do São Cristóvão. Eu fui ao campo do São Cristóvão, e entrevistei ele depois de um treino. Foi muito legal, até. Agora, deixe eu te falar uma coisa interessante em relação à minha vida. A primeira partida de futebol que eu assisti na minha vida, o Danilo foi um dos personagens principais dessa partida. Foi um Vasco e América, amistoso, em 1946, eu tinha meus 10 anos de idade. Tive a sorte de ter um tio que me levava para todos os jogos de futebol. Na época não era o Maracanã, você tinha que ter um adulto para levar uma criança a um estádio de futebol. Era tudo muito apertado, muito sem conforto. E esse meu tio era torcedor do América. Ele foi lá, todo feliz da vida — para ver como as coisas foram enganosas para ele como torcedor e para muitos torcedores na época —, porque o América, naquele amistoso, trocava o Danilo pelo Dino, que, como se dizia, era um centromédio, center-half do Vasco. Então, o Dino foi para o América e o Danilo foi para o Vasco. Nessa troca, pelo o que eu vi ali, eu entendia muito pouco das coisas, mas sabia qual era o objetivo desse jogo, porque meu tio me falou, as pessoas achavam que o América tinha feito um grande negócio, porque o Danilo tinha quebrado a perna. Ele era um garoto, que jogava pelo América e era torcedor do América, e fraturou uma perna após ser atropelado na Praça da Bandeira. Ele ficou com uma perna mais curta que a outra, mas que a gente não notava bem vendo ele jogar. E houve essa troca. Só que quem ganhou, na verdade, embora o Dino fosse um bom jogador, foi o Vasco. Ele continuou jogando no América, mas some com o que o Danilo vai fazer no Vasco. O Danilo marcou muito a minha vida, embora eu seja torcedor do Fluminense, e cresci com admiração pelo time do Vasco, numa época em que comecei a acompanhar, ainda muito menino, o futebol.”


Os valores que envolviam a ida de Danilo para o Vasco eram altos para a época: 90 contos de réis de luvas e 2 contos por mês ao atleta. O América levou 400 contos mais a bilheteria daqueles dois jogos contra o Vasco. Investimento que valeu a pena porque deslocaram Ely do Amparo para a lateral-direita e Danilo manteve-se como centromédio [volante] e, posteriormente, grande líder da meia cancha vascaína até 1953. Teve, contudo, de cumprir espinhosa missão no início: ocupar a lacuna deixada por Fausto, a “Maravilha Negra”, centromédio ídolo da torcida nos anos de 1920 e 30. Danilo não decepcionou. Disputou pouco mais de 300 jogos com a camisa vascaína. Seus passes milimétricamente precisos alimentavam um ataque onde sobravam craques. Na primeira leva, Danilo jogou com Isaías, Jair Rosa Pinto e Lelé. Na segunda, com Tesourinha, Ademir de Menezes, Ipojucan, Maneca, Dimas, Chico e Friaça. Um Vasco impiedoso com os adversários, entre os quais o badalado River Plate de Di Stéfano, Labruna e Lostau. A turma da fuzarca não tomou conhecimento dos argentinos e fez do Vasco o primeiro clube campeão sul-americano, em 1948, em Santiago do Chile. Um ano depois da estupenda campanha, Danilo e o Vasco enfrentaram o Arsenal e impuseram aos ingleses a primeira derrota por estas paragens.

Show de bola no gramado e no altar, mas escondido. Contrariando os pais, Danilo casou-se com a ex-bailarina de cabaré Zelinda Tojal, exatamente dez anos mais velha que ele, que incorporou “Alvim” ao sobrenome. O casório na encolha — sacramentado pelo juiz Luciano Álvares Ferreira da Silva — e a lua de mel foram em Vassouras, em junho de 1948. Dias de sumiço que preocuparam a família de Danilo. Até a polícia foi acionada para tentar localizá-lo após queixa do pai ao delegado, pedindo garantias de vida para o filho. Quando o craque reapareceu, já usava no dedo anelar da mão esquerda uma reluzente aliança de ouro. Alcídio e Edite tiveram de aceitar Zelinda como novo membro dos Alvim. Mas muito a contragosto. O casamento estava marcado para o dia 25 de maio, mas Alcídio, na última hora, reteve Danilo em seu escritório. Com isso, o craque não compareceu à pretoria, deixando a noiva esperando-o. Danilo estava “dividido”, segundo reportagem de Jean Manzon[3]. Chegara a cogitar desfazer o casamento para atenuar a rusga com os pais. Mas foi o disfarce que encontrou para ludibriá-los e foi aí que escapou para o casamento às escondidas semanas depois.


Ficha no Vasco

O pai de Danilo abominava a ideia de ver o filho casado com Zelinda. No começo, tentou anular o casamento. Foram tumultos os primeiros momentos de casado do Danilo. “Meu filho, você não é um homem, é um covarde!”, chegou a ouvir do próprio pai impropérios como esse. Ramiro Simões e Seltímio Gavio, amigos de Danilo, foram testemunhas do casamento. Mas para o pai do jogador os amigos do filho não passavam de raptores. Amigas de Zenilda foram à delegacia para desfazer a tese de Alcídio. Danilo casara por livre e espontânea vontade. Após o quiproquó diante dos policiais, Danilo e Zenilda procuraram uma igreja em Olaria. No altar, acenderam velas. Era o primeiro momento de paz do casal.

VASCO E SELEÇÃO; GLÓRIA E TRISTEZA

Danilo exibiu toda a elegância no trato da bola que lhe valeu a alcunha de “Príncipe Danilo”, que viraria até nome para o corte de cabelo que usava, verdadeira febre nas barbearias cariocas. O apelido partiu do locutor Oduvaldo Cozzi, que se encantara com o desempenho de Danilo no campeonato sul-americano de clubes, em 1948, no Chile, armando jogadas para a linha de ataque ou mesmo paralisando os avanços do River Plate, especialmente os que partiam do armador Nestor Rossi e do ponta-de-lança Di Stéfano. Cozzi se inspirara[4] na personagem Príncipe Danilo, da opereta Viúva Alegre, de Franz Lehar, que teve um roteiro adaptado para o cinema, em 1934, tendo o ator Maurice Chevalier como protagonista no papel não de um conde Danilo, mas sim de um “Príncipe Danilo”. Apenas dois repórteres acompanharam Cozzi, a quem coube a cobertura radiofônica da inesquecível e pioneira competição continental: Hélio Fernandes, então repórter da revista O Cruzeiro, e Ricardo Serran, na época editor de esportes de O Globo. “De fato fiquei devendo a existência de meu apelido de ‘Príncipe’ à bondade do amigo Cozzi.”[5]

Pelo clube de São Januário, Danilo foi também campeão estadual em 1947, 49, 50 e 52, comandando o meio de campo do “Expresso da Vitória”, como era chamado o time vascaíno. Mas a conquista mais emblemática foi mesmo aquele campeonato sul-americano de clubes de 1948, o primeiro do gênero no continente, considerado hoje o preâmbulo da Taça Libertadores da América implantada doze anos depois, em 1960. Para Danilo, o “Expresso” vascaíno foi incomparável e seu comandante, o técnico Flávio Costa, um gigante inigualável naquele torneio e em toda a trajetória daquela geração de craques do cruz-maltino:

“Foi um torneio tão importante que transformou nosso time em base da seleção brasileira. A vantagem de ser campeão, numa briga dessas, é que para botar a faixa tinha-se, também, que enfrentar autênticas seleções: a Argentina, representada pelo River Plate de Alfredo Di Stéfano e outros cobras famosos; o Uruguai puxado pelo Nacional; o Chile, pelo Colo-Colo; o Peru, pelo Alianza, de Lima, e o Equador, pelo Emelec, de menor potência, naturalmente, mas defendido por jogadores vibrantes e de fôlego inesgotável. Nessa época, posso garantir, sem nenhum ranço de saudosismo e despeito, que nada foi mais importante no grande futebol brasileiro desse tempo, nem capaz de produzir maior atração onde quer que aparecesse, inclusive no estrangeiro, do que esse time mitológico. Era time demais. Para o que desse e viesse. Apesar de imbatível e do apelido envolvente que ganhou, jamais perdeu a humildade, a consciência da força de que dispunha para triunfar. Sabia, ao mesmo tempo, ser modesto e agressivo, imponente e discreto, brilhante e pau puro. Pronto para dançar conforme a música. Mas sem rebolar. Flávio [Costa] não consentia. E quando Flávio dava bronca, as paredes tremiam de medo. Apesar de sábio e justo, Flávio não perdoava insensatez. Fosse de quem fosse. Aí endurecia. Somente ele mandava e desmandava nos jogadores. Tinha que ser assim. Se quisessem. Se não quisessem, ia embora, de cabeça erguida. Não faltava clube para trabalhar. Foi o melhor, sempre, e por muitos e muitos anos continuará sendo o melhor de todos que eu conheci […] a autoridade de Flávio Costa não se apoiava no poder de aconselhar, apenas aconselhar, mas impor sua vontade acima de conveniências e das intuições pessoais. O admirável dom de Flávio estava em detestar defeitos, e não pessoas […] como o homem não gostava de rebolado, ninguém rebolava.”[6]


Danilo (Revista Goal 1950)

O título internacional de 1948 foi, sem dúvida, o marco mais expressivo de Danilo com a camisa do Vasco, porém, foi em um jogo contra o Flamengo, em 1949, que Danilo talvez tenha feito seu melhor jogo pelo cruz-maltino. Para João Máximo, não há dúvida quanto a isso:

“Houve um jogo fundamental para o campeonato de 1949. Esse jogo foi um Vasco e Flamengo. Para o Vasco era questão só de manter a invencibilidade. E se o Flamengo perdesse aquela partida, ficava mais ou menos fora da luta pelo título, que ficou mais ou menos no final com o Vasco e o Fluminense, mas o Vasco bem na frente do Fluminense. Ary Barrozo, nosso grande compositor, mas também locutor esportivo, e um torcedor do Flamengo mais do que conhecido, foi visitar a concentração do Flamengo na véspera do jogo. Os jogadores estavam lá, jogando dominó, aqueles negócios todos que faziam na concentração. O Ary foi cumprimentando um a um. Ele tinha acesso à concentração do Flamengo na hora que quisesse pela importância que tinha como compositor e torcedor do Flamengo. Ary vai para o Jair Rosa Pinto e diz: ‘Olha, eu apostei uma grande nesse jogo’. Jair, com aquele jeito debochado, irônico, que ele tinha, de gozador, diz: ‘Mas você apostou em quem, Ary?’. O Ary Barrozo ficou uma fera com aquilo, porque, em quem ele apostaria? Era Vasco e Flamengo e, claro, ele apostaria no Flamengo. O Jair não tinha a menor confiança no Flamengo naquele dia. Por quê? Durante a semana o Flamengo fez um treinamento todo pensando no Danilo, que era o seguinte: o centroavante do Flamengo chamado Gringo cairia mais para a esquerda, quase como um meia-esquerda, atraindo o Danilo. No famoso jogo com o Vasco, conhecido como o ‘jogo da camisa do Jair’, o Togo Renan Soares, o Kanela, que também era treinador de basquete e tio do Jô Soares, fez uma tática — segundo o Jair me contou — que era de jogar o Gringo bem para o lado esquerdo para tirar o Danilo daquele meio onde ele ficava. O Danilo estava de olho no Zizinho, de quem era grande rival e amigo pessoal. Como o Gringo era um jogador que marcava gol, um centroavante esperto, o Kanela achou que o Gringo indo para o lado do Jair, o Danilo teria dois caras ali para tentar anular, tentar marcar, e isso, na cabeça do Kanela, ia abrir um buraco no meio para o Zizinho entrar. Nenhum deles acreditou que daria certo. O Danilo não caiu nessa conversa. Foi uma das melhores partidas dele, aliás, e o Vasco goleou de 5 a 2.”

A seleção brasileira também treinada por Flávio Costa foi outro capítulo especial na vida de Danilo, que disputou 27 jogos e marcou dois gols pelo escrete, e sempre treinado por Costa, que tinha no craque o seu homem de confiança em campo. Danilo despontou como peça essencial do meio-campo da seleção campeã sul-americana em 1949. Um indício indelével de que o Brasil caminhava célere rumo ao título mundial que seria disputado no ano seguinte. Danilo tinha todas as credenciais para isso. Era calmo, tinha a dose certa de malandragem — Danilo era um contumaz jogador de sinuca nas concentrações e fora delas — para acalmar ânimos mais exaltados. Jamais se compreendeu porque Flávio Costa não o escolheu para capitão e sim Augusto. Situação que o treinador levara do Vasco para o escrete.


Acervo da Família

Danilo e todos os que fizeram daquela seleção de 50 uma das melhores de todos os tempos viveram, porém, uma tragédia: o maracanazo do dia 16 de julho. Uma derrota de 2 a 1 para o Uruguai na final da Copa do Mundo, de virada, com o Brasil jogando pelo empate. Um Maracanã com 200 mil pessoas chorou copiosamente. Quantos não enfartaram com o ouvido colado ao rádio? Muitos. É de Danilo uma das mais marcantes imagens da dor que marcou o país naquela tarde, sendo consolado por repórteres. Assim, como tantos que estavam em campo, Danilo jamais se recuperaria da derrota, embora sempre negasse isso em entrevistas. Naquela Copa, só não permaneceu durante um jogo inteiro contra a Suíça, partida realizada no Pacaembu. Flávio Costa decidira acalmar os ânimos dos paulistas exaltados por Cláudio, craque corintiano, ter sido preterido da lista de convocados. Nem mesmo Baltazar, que por sua vez era reserva de Ademir, servia de consolo aos corintianos. Queriam Cláudio, que para Danilo era o craque da época. Então Costa escalou Rui Campos, que formava a linha média do São Paulo com Bauer e Noronha, no lugar do “Príncipe”, que fez um comentário conciso, porém preciso, sobre a euforia que embalou a delegação brasileira e os equívocos que destruíram o sonho de um título conquistado dentro de casa: “O maior erro de 50 foi a transferência da concentração para o estádio do Vasco, em São Januário. Estávamos tranquilos na Barra da Tijuca, então um lugar de difícil acesso para o público. De repente os cartolas mudaram tudo, e no campo do Vasco foi aquele inferno. A época era de campanha eleitoral, e não pararam as fotos, as entrevistas, as reuniões com figurões que disputavam cargos […] Na manhã do jogo com o Uruguai a coisa piorou: todo mundo era campeão do mundo, amigo e protetor de jogador A ou B. E tome de fotografia, de discurso, de um movimento digno de feira-livre. Nós, a mercadoria, estávamos apodrecendo e não sabíamos […] Eu já disse que a gente devia colocar uma pedra sobre tudo isso. Mas é preciso falar, transmitir a lição. A questão dos erros técnicos, por exemplo. É claro que Flávio Costa não foi o culpado direto, mas ele teve pecados, como a dispensa de Cláudio, do Corinthians. Depois de Tesourinha. Cláudio era o melhor da época. Aí Tesourinha se machucou e nós ficamos com o Maneca na ponta. Maneca era craque, mas não era ponta. E sua índole não se coadunava com o espírito de uma decisão como Brasil e Uruguai. Na reta final sentiu dores nas pernas. Aí entrou o Friaça […] E o Cláudio acompanhando a Copa como um torcedor qualquer.”[7]


(O Cruzeiro 1948)

A jogatina no banheiro da concentração era o único “lazer” dos jogadores, e isso com a conivência do próprio Flávio Costa. Afinal, estavam todos sufocados por políticos, jornalistas e celebridades apinhados dia a dia na concentração impedindo os craques até de comerem sossegados. Isso tudo teria contribuído para a que a seleção caísse na final. Mas Danilo sempre afirmou o contrário. Nada daquilo prejudicou a seleção. Nem mesmo a história de que no caminho para o estádio o ônibus enguiçou e todos teriam descido para empurrá-lo. “Não é verdade”. Quando o jogo contra os uruguaios acabou, o choro copioso de Danilo era um misto de vergonha e tristeza. Ele estava errado. As horas intermináveis de carteado e o assédio impertinente dos políticos influenciaram na alma dos jogadores. Do Maracanã, junto com a delegação, seguiram para a concentração, em São Januário. Chegaram sob vaias de parte da multidão. Dali, Danilo foi para casa, na Praça João Pessoa, num edifício de esquina, na Lapa, Centro do Rio. Uns vizinhos o vaiavam, outros o apoiavam. Não conseguiu permanecer muito em casa, e na segunda-feira arrumou as malas e refugiou-se no interior. “Quando consegui chegar em casa, foi um problema descer do carro. Quando saltei, parecia que tinha chegado o presidente da República. Vaias. Era eu. Tive que sair do Rio. Fui para Miguel Pereira.”[8]

Para o “Príncipe”, a pouca experiência em decisões foi outro fator que pesou. Ao contrário, os uruguaios — defendia-se sempre Danilo — eram mais cascudos, mais traquejados em finais. “No dia do jogo, já no vestiário, sentindo que deveria advertir o técnico, corri para Flávio e falei: ‘Professor, precisamos tomar cuidado. O pessoal anda meio contagiado com facilidades criadas pela imaginação da imprensa e da torcida, Tenho medo de nos estreparmos.”[9]


(Esporte Ilustrado 1950)

O jornalista João Máximo narrou ao Museu da Pelada o que ouvira de um comentarista já falecido e de quem era amigo que Danilo não deveria ter sido titular na Copa de 50. “E esse comentarista achou que o Ruy deveria ser o titular na Copa do Mundo porque o Danilo era “lento”. Ora, o futebol, na época, era mais lento. O Danilo tinha um jogo compassado. Lembra o do Carlinhos, do Flamengo. Tinha seu próprio estilo, naturalmente, muito bom jogador também, mas acontece que ele lembrava um pouco o Danilo, com aquele jogo de muita elegância e de precisão no passe. O Danilo foi um cracaço. Lembrando esse amigo comentarista, se houve algum erro que o Flávio Costa cometeu na Copa de 50, e é possível até que tenha cometido, esse ‘erro’ não foi barrar o Danilo. Na cabeça dele jamais passaria a ideia de barrar o Danilo.”

O Príncipe garantiu ao repórter Geraldo Romualdo da Silva que Flávio Costa ouviu atentamente o alerta e que exigiu dos jogadores sacrifício extremo em campo. Nada de firula: “No fim, foi o eu se viu. Nada adiantou. Nem havia de adiantar. Estava marcado. Foi um equívoco universal… deplorável.”[10]

O amargurado jogador deixou o gramado sob um choro intenso, que perdurou no vestiário, do estádio à concentração e da concentração a sua casa, um pequeno apartamento na Praça João Pessoa, encravada no centro da cidade do Rio de Janeiro. Chorava sem parar. Ficou dois dias trancado em sua residência. Sentia-se culpado pela derrota. Tinha a sensação de que o olhavam com raiva na rua. Mas Danilo tinha de recomeçar. O Brasil e o seu futebol tinham também de recomeçar. Um mês após a derrota para os uruguaios, o craque voltava ao Maracanã para disputar um clássico do Vasco com o Botafogo. “Aí é que eu sofri mesmo. Quando saí do túnel, olhei o campo, as arquibancadas, palavra de honra que me arrepiei todo. Ninguém viu e eu estou contando isso pela primeira vez, mas naquela hora eu chorei de novo. Um companheiro, não me lembro quem, aproximou-se e perguntou se eu tinha alguma coisa. Continuei passando a gola da camisa nos olhos e respondi que era só um cisco no olho.”[11]


Danilo Alvim sendo consolado

Danilo estava mal em campo. Era como se só visse pela frente jogadores vestidos de azul celeste e não de preto e branco do Botafogo. Mas reagiria no momento em que um adversário, cujo nome jamais revelara, virou-se para ele e disse: “Vocês entregaram a Copa e ainda querem cantar de galo?”

“Juro que suei frio. Aquilo era demais. Depois fui me acostumando, de tanto ouvir gracejos. Há tanta gente inconsequente e má no mundo que o homem acaba endurecendo, quase virando pedra. Mal sabem que uma desgraça daquelas é capaz de arrasar uma pessoa para o resto da vida. Se a gente vencesse, eu e o resto daquela geração de jogadores estaríamos em outra situação, inclusive financeiramente. Más nós perdemos, e tivemos de recomeçar a vida como verdadeiros principiantes. Caímos do penúltimo degrau, e ninguém apareceu para amparar nossa queda. O destino é cruel. Por que eu não fui campeão do mundo?”[12]

Vinte anos após aquele dia fatídico, Danilo comparou a seleção de 50 com a campeã de 58. Ao repórter Márcio Guedes[13], ele narrou o seguinte: “Você vê. Tanto na seleção de 58 como na de 50, havia uns quatro ou cinco craques e o resto constituído de jogadores de um nível técnico razoável. Creio que o amadurecimento do jogador brasileiro, a experiência anterior de nomes como Didi e Nilton Santos, a liderança de um Zito e o aparecimento de revelações como Pelé e Garrincha foram as razões simples do sucesso de 58, assim como a falta de personalidade, de ímpeto na decisão, as causas do fracasso de 50.”


(O Globo Sportivo)

Ainda abatido pela decepção de 1950, Danilo obteve outros títulos com o Vasco, mas não era a mesma coisa. Não era mais o garoto prodígio dos tempos de América e também lhe faltava fôlego. Reconhecia esse estágio físico, mas acreditava que permaneceria no Vasco ou até mesmo encerrasse a carreira no clube. “Acreditei demais nos homens do Vasco e eles falharam incrivelmente comigo. Eu podia esperar tudo do Vasco; menos que o Vasco fizesse o que fez comigo; menos me deixar de mãos abanando, sem emprego, e o que é pior, sem recursos, sem meios para me empregar. Pedi meu ‘passe’ e não quiseram de dar. Reiterei, formulei apelos constantes, disseram que me responderiam depois. Os dias ia passando. As dificuldades aumentando. Até que o campeonato chegou e não houve mais jeito. Fiquei desesperado, mas resignei-me. Supunha que os diretores voltassem atrás. Uma prova é que não recorri a ninguém, não disse uma palavra de mágoa a quem quer que seja. Sofri em silêncio, calado, sem perceber que estava sendo ludibriado. Sempre supus que o Vasco não me largasse na rua. Sempre pensei que o Vasco também me ajudaria, como ajudou a outros, que o defenderam com carinho e sacrifício. Comigo, entretanto, o Vasco procedeu diferente.”[14]


Com Zelinda e Carlos (Manchete Esportiva, 1950)

Danilo estava profundamente magoado com o Vasco. Dizia que merecia ter recebido o mesmo tratamento dado a jogadores como o lateral-esquerdo Jorge e o ponta-direita Friaça, que receberam o passe livre. Danilo pedia o mesmo, não recebia. Com o impasse, a as regras da federação carioca de futebol o impediam de jogar pelo Vasco ou mesmo outro clube. Seu pai, que era advogado, acompanhava-o frequentemente à sede da federação para tentar liberá-lo do Vasco. Havia clubes interessados. Dentre eles, o Botafogo. Danilo alegava ter defendido o clube por nove anos e que por conta disso mereceria um tratamento mais generoso. Alegava não ter disputado apenas cinco jogos. Ficou fora de três jogos seguidos devido a uma suspensão e os outros dois por contusão e por uma substituição de última hora do treinador. A glória, a fama, os elogios e os sucessivos retratos em jornais e revistas de nada valiam quando os cartolas do clube decidem que o ídolo, o craque, está em fim de carreira. Danilo queixava-se que jamais assinara um contrato vantajoso com o cruz-maltino. O primeiro contrato durou de 1946 a 1948 e rendeu ao jogador 90 mil cruzeiros da época; o segundo, de 1948 a 1950, 120 mil cruzeiros e o terceiro e derradeiro, de 1950 a 1952, 200 mil cruzeiros, com os quais, confessara Danilo, conseguiu comprar sua primeira casa, alguns terrenos — em Niterói, Miguel Pereira e Nova Iguaçu — e um carro. Além de todo esse dinheiro ao longo da carreira no Vasco, Danilo recebia “bichos” por vitórias e salários fixos mensais, que giravam entre dois mil e quatro mil cruzeiros. No dia 26 de setembro de 1954, o Vasco liberava Danilo em definitivo. Era o fim do glorioso ciclo em São Januário.

***

Na quarta reportagem da série DANILO, 100 ANOS, o fim da carreira de jogador e começo auspicioso da trajetória como treinador, inclusive com um inédito título de campeão sul-americano com os bolivianos, maior façanha da Seleção da Bolívia no futebol até hoje.

 

 

[1] A.D.. “Com um pé no Vasco e outro no América”. O Globo Sportivo: Rio de Janeiro, 3 de maio de 1945, p.15.

[2] SILVA, Geraldo Romualdo da. “O príncipe Danilo [I]: Jogou futebol-arte, agora ensina futebol total”. Jornal dos Sports: Rio de Janeiro, 25 de setembro de 1974, p.12.

[3] MANZON, Jean. “O rapto do campeão”. O Cruzeiro: Rio de Janeiro, 26 de junho de 1948, pp. 28-33 e 90.

[4] ANDRADE, Aristélio. “O príncipe perfeito”. Placar/ Ed.Abril: São Paulo, 26 de janeiro de 1979, pp.30-3.

[5] SILVA, Geraldo Romualdo da. “O príncipe Danilo [III]: Também está de acordo com Cruyff: — Derrota não se chora”. Jornal dos Sports: Rio de Janeiro, 27 de setembro de 1974, p.12.

[6] SILVA, Geraldo Romualdo da. “O príncipe Danilo [II]: Com Flávio, beque tinha que dar chutão. Ninguém rebolava”. Jornal dos Sports: Rio de Janeiro, 26 de setembro de 1974, p.12.

[7] A.D.. “Lições do passado”. In “O drama do príncipe de 50”. Placar/Ed.Abril: São Paulo,  26 de novembro de 1971, pp.26-7.

[8] MORAES NETO, Geneton. Dossiê 50. Ed.Objetiva, Rio, 2000, pp. 83-4.

[9] SILVA, Geraldo Romualdo da. “O príncipe Danilo [III]: Também está de acordo com Cruyff: — Derrota não se chora”. Jornal dos Sports: Rio de Janeiro, 27 de setembro de 1974, p.12.

[10] Idem.

[11] A.D.. “O drama do príncipe de 50”. Placar/Ed.Abril: São Paulo, 26 de novembro de 1971, pp.26-7.

[12] Idem.

[13] GUEDES, Márcio. “A Copa só se ganha com catimba”. Correio da Manhã: Rio de Janeiro, 3 de janeiro de 1970, p.8.

[14] A.D.. “‘O Vasco me faltou na hora mais difícil’”. O Globo: Rio de Janeiro, 28 de setembro de 1954, p.12.

Saiba mais:

https://www.museudapelada.com/resenha/-danilo-100-anos-um-prncipe-patrimonio-histrico-da-bola-

https://www.museudapelada.com/resenha/-danilo-100-anos-ensaio-para-um-pico-do-futebol-brasileiro

https://www.museudapelada.com/resenha/-danilo-100-anos-so-januario-recebe-sua-alteza

NELINHO, O CANHÃO DA LATERAL DIREITA

por Luis Filipe Chateaubriand 


Nelinho era um lateral direito como poucos. Vigoroso no ataque, fazia cruzamentos fortes e precisos. Mas, especialmente, desferia chutes fortes e precisos contra o gol adversário.

Marcou época jogando pelo Cruzeiro e, depois de curta passagem pelo Grêmio, acabou no grande rival cruzeirense, o Atlético Mineiro. Grande jogador que era, foi ídolo das duas torcidas antagonistas entre si. 

Uma passagem memorável do futebol de Nelinho foi o duelo que ocorreu com o goleiro Manga, do Internacional de Porto Alegre, na decisão do Campeonato Brasileiro de 1975, que este signatário só viu por imagens recuperadas. 

Mas o escriba teve o privilégio de ver, pela televisão, o gol que Nelinho fez na disputa do terceiro lugar da Copa do Mundo de 1978: tiro desferido com muita força e a meia altura para o gol a partir da intermediária direita, parecia que a bola ia para fora, passando a alguns metros da meta; contudo, durante a trajetória para o gol, a bola faz uma curva inacreditável, mudando de rumo e indo morrer, sorrateira, no fundo das redes do goleiro Zoff. Uma trivela inacreditável, feita pelo mago dos chutes certeiros. 

Nelinho será lembrado com o cara que, no futebol, fez dos chutes quase sempre indefensáveis sua marca registrada.

Luis Filipe Chateaubriand é Museu da Pelada!    

MARADONA FOI UM GÊNIO DA BOLA, NÃO UM DEUS ACIMA DO BEM E DO MAL

::::::: por Paulo Cézar Caju ::::::::


Juan Mabromata/AFP

Nunca fiquei em cima do muro e não seria agora, aos 71 anos, que eu ficaria. Maradona foi um monstro jogando bola e até uma vovozinha que não acompanha futebol sabe disso. Mas, sinceramente, acho essa idolatria exagerada. E nem falo dos argentinos, mas dos brasileiros. O que o Maradona fez, além de jogar um belo futebol, para estar sendo tratado como santo? Por que ele vem sendo reverenciado como um Deus, acima do bem e do mal?

Quando falam do Pelé nas redes sociais sempre aparece uma turma que, mesmo sem conhecer a real versão do caso, vem lembrar de uma filha não assumida pelo Rei. É incrível como pisoteamos nossos ídolos e admiramos a grama do vizinho. Maradona fez gol de mão, atuou dopado e “envenenou” os jogadores brasileiros, tudo em Copas do Mundo. Depois ainda deu entrevista em rede nacional divertindo-se com a situação, gozando do lateral Branco que bebeu a água batizada.

Maradona apareceu em público, incontáveis vezes, drogado, pagando mico, tirando onda com os brasileiros. Que exemplo Maradona foi para os jovens? O exemplo que deve ficar para os jovens é que ele poderia estar aqui até hoje, se não fosse o efeito devastador das drogas. Acho que essa idolatria deve ir até a página dois. Garrincha também teve problemas com alcoolismo e a mídia nunca o tratou com a devida relevância.

Se Maradona ganhou uma Copa sozinho, o “bêbado” Garrincha, o Charles Chaplin dos gramados, também. Garrincha até hoje é tratado como um coitadinho, como um matuto, um idiota, que achava que a Copa do Mundo era um torneiozinho de merda, me desculpem a expressão. Garrincha foi anos luz mais genial do que Maradona e morreu pobre. Pelé nunca fez um gol de mão, nunca batizou água dos adversários, nunca jogou dopado e, apesar de único, incomparável, sem igual, ainda é esculhambado por torcedores.

Na internet, quando são exibidos vídeos com as jogadas preciosas do Rei muita gente diz que os marcadores eram ingênuos, que isso, que aquilo. Mas nos vídeos do Maradona fazendo embaixadinhas no treino, óóóó, que gênio!!! Vejam os vídeos de Ronaldinho Gaúcho e entendam o que é habilidade. O próprio Zico é massacrado nas redes sociais por nunca ter vencido uma Copa do Mundo, o chamam de amarelão e outros nomes impublicáveis.

Eu mesmo fui viciado por quase vinte anos, já parei há dezoito e continuam me chamando de drogado. Se o Maradona é considerado um ídolo de carne e osso, que cometeu erros e tem fraquezas como todos nós, que seja tratado como somos, sem idolatrias e histerias. E lembrem-se, nossa grama não é sintética, não é de plástico, como a do vizinho. Nossa grama é raiz e nela surgiram gênios que encantaram o mundo, ídolos BRASILEIROS que merecem respeito. O argentino Maradona tem o meu máximo respeito. O problema é que não estamos regando nossa grama e ela vem morrendo aos poucos.

DANILO, 100 ANOS: ENSAIO PARA UM ÉPICO DO FUTEBOL BRASILEIRO

“A classe e a habilidade de Danilo no trato com a bola eram algo de anormal. Eu me lembro muito dele quando vejo jogo em campo pesado. Era na lama, no gramado escorregadio, que ele mais demonstrava seu talento. Era o dono do jogo alto. No campo pesado, o adversário o respeitava mais ainda, pois tinha medo de ser desmoralizado por aqueles dribles e cortes que o homem criava não sei como.” — Ademir Marques de Menezes, o Queixada, maior ídolo da história do Vasco, em depoimento à revista Placar[i], em novembro de 1971.

[i] A.D.. “O drama do príncipe de 50”. Placar/Ed.Abril: São Paulo, 26 de novembro de 1971, pp.26-7.

por André Felipe de Lima


América (Sport Illustrado)

Setembro de 1940. Em um dia daquele longínquo ano, o repórter saiu da redação para cumprir mais uma pauta corriqueira de sua jornada diária cobrindo o futebol carioca. Teria de ir à Tijuca entrevistar um rapaz de 19 anos que diziam jogar muita bola, um jovem que, e isso também comentaram com ele na redação, sempre desejou ser jogador profissional de futebol desde as peladas disputadas nos asfaltos das ruas do Rocha, bairro em que nascera, e depois nos da própria Tijuca, onde foi morar com os pais nos primeiros momentos da adolescência. Não havia erro para o repórter, que lera o papel várias vezes para certificar-se de que a pauta era realmente mais uma do dia a dia do futebol na cidade. Clubes, cartolas, jogadores, torcedores, peladeiros, enfim, era um cotidiano com o qual se acostumara. Nada, mas nada mesmo o surpreenderia mais no futebol. Estava convicto disso. Nada soaria como novidade no futebol. Convencera-se de que tudo o que podia ter visto, realmente presenciara. Mas o resignado e não menos entediado repórter rumou a mais tijucana de todas as ruas da Tijuca: a Campos Sales. Chegando ao local e na hora combinados com o rapaz que entrevistaria, o periodista mirou-o, desconfiado, e questionou-se a si mesmo, em voz baixa para não constranger o menino: “Será que tudo o que ouvi dele é verdade? Não é possível? Vendo-o de perto parece tratar-se de um personagem de opereta do que uma figura de atleta”. O espanto do jornalista não era de um todo infundado. Estava diante de um garoto sem músculos, franzino demais, de caminhar vagaroso e de poucas palavras. Monossilabicamente tímido. Impossível que fosse a mesma pessoa da pauta determinada pelo editor. “Você gosta de futebol, menino?”, indagou o desconfiado repórter imaginando àquela altura tratar-se de uma pauta perdida ou mesmo de uma brincadeira de mau gosto do colega editor. “Sim, gosto”, respondeu a figura acanhada como se soletrasse cada palavra. Surgindo como se fosse um anjo da guarda, ou algo do gênero, um camarada interveio em defesa do retraído garoto. Interrompeu a entrevista sem a menor parcimônia ou pudor. Poderíamos compará-lo a um senador romano no parlatório da Cidade Eterna e naqueles dias de oratória afiada contra os que desafiassem os direitos dos plebeus. Sem temor, o “advogado do rapaz emendou: “Mas será craque e viverá muito!”. O convicto em questão não estava definitivamente incorporado por uma entidade da Roma Antiga ou algo que o valha. Estava em sua plena e sã consciência dos que enxergam o futuro como se dele fosse o irmão mais velho. Um conselheiro. Um oráculo de carne e osso. O cidadão uruguaio Ricardo Diez era, sem dúvida, pródigo em vaticínios. O cético repórter acreditava nele e não acreditava em Deus. Conversara outras vezes com Diez. Ele e outros jornalistas também. Fonte com novidades no futebol como ele eram poucas. Diez falava das coisas da bola, mas, em especial, dos bons fatos do América, e um deles era aquele menino sereno, porém magrelo, que conhecera semanas antes daquela entrevista. Ao olhá-lo pela primeira vez com uma bola nos pés estava certo de que naquele instante mágico a realeza personificara-se no tranquilo garoto, regido por uma calma e técnica que o determinariam, sim, o craque que se avizinhava, o craque do profético Diez, que sob uma leitura subjetiva, quase ontologicamente filosófica, tentou convencer o incrédulo repórter do que verdadeiramente significava aquele introspectivo garoto para o futuro do futebol brasileiro: “O dinamismo é uma personalidade; a calma é uma virtude inquebrantável. Um footballer pode perder o dinamismo pelo desespero, mas o jogador sereno jamais. A serenidade só admite uma expansão: é a reação para o absolutismo, para o desdobramento de suas forças. Consegue-as quando deseja. Eis aí porque acredito nele, porque vejo nele a pinta do craque, porque não o troco por ninguém.”[1]


Canto do Rio. Botinha e Alcebíades (Sport Illustrado)

Danilo Faria Alvim. Assim foi batizado aquele garoto aparentemente macambúzio, mas de uma eloquência futebolística fora de série e nunca contrito. Um clássico por natureza, como o descreveu Diez. Clássico para encantar um deus grego ou inspirar um Mozart, um Liszt para que compusessem a ópera das óperas. Danilo ensaiava os primeiros passos para se tornar uma celebridade da bola. Dizia naqueles primeiros momentos de fama que nunca trocaria o clube que o revelara, o América, e que por ele seria um dia campeão, exatamente como foi Oswaldinho, ídolo do clube, duas décadas antes. Para Oswaldinho, que era carinhosamente chamado de “Príncipe” por torcedores e jornalistas, Danilo era indiscutivelmente seu herdeiro. “Parece-se comigo. É o único que joga como eu costumava jogar”. Mas era pilhéria de Oswaldinho. Não havia dúvida de que o rapaz diante dele, do repórter e de Diez estava um grau acima, muito acima, por sinal, de qualquer outro craque de sua época. “Eu estava brincando. Imaginem vocês se eu tivesse começado assim! Naturalmente que teria sido um craque”. Oswaldinho disse aquilo sob uma devastadora humildade. Foi ele craque também, obviamente, mas tanto ele quanto Diez sabiam que diante de ambos estava um menino que entraria para a história do futebol brasileiro, com direito a bola, cetro e coroa de ouro, indefectíveis apetrechos dignos de um… príncipe!

QUANDO O DESTINO ENGANA A MORTE

A história de Danilo Alvim encontrava-se entre dois “principados” do futebol carioca. O de Oswaldinho, ídolo do América, na década de 1920, e o do propalado por Nelson Rodrigues em torno de Didi, o “Príncipe Etíope de rancho” rodrigueano. Três “príncipes” da pelota. Quanto ao Danilo, ele foi indiscutivelmente o melhor centromédio [hoje volante] do futebol brasileiro dos anos de 1940 e 50. Para compreender com mais exatidão quem foi este exímio jogador, ele representou para sua época o mesmo que Zito e Falcão significaram para os anos de 1960 e 70, respectivamente. Embora, ressalta-se, o estilo de Falcão é o que mais lembrou a desenvoltura do magro e alto Danilo, um craque que só jogava com a cabeça erguida e matava a bola na coxa ou no peito, fosse a mesma oriunda de um petardo. Com Danilo, ela se acalmava.

É deste assombro de jogador a singular história — com certeza uma das mais impressionantes — de “volta por cima” e amor ao futebol.

Nascido[2] e criado na rua Conde de Porto Alegre, número 64, no Rocha, bairro da zona norte carioca, no dia 3 de dezembro de 1920, bem perto da estação de trem da Central do Brasil, Danilo cresceu torcendo pelo América, paixão da qual nunca se desfez, e jogando muitas peladas pelas ruas próximas de casa. Seu primeiro clube foi o Ana Néri, também no Rocha. Teve uma infância feliz, que se tornou ainda mais alegre quando o pai Alcídio Alvim contou a ele que toda a família se mudaria para um apartamento alugado na esquina da rua Campos Sales com a praça Afonso Pena, quase enfrente ao campo tijucano do América. O sonho de garoto começava a se tornar realidade, para isso bastava atravessar a rua, e foi o que passou a fazer diariamente, mas, em 1940, deparou-se com o [quase] fim do sonho de um dia tornar-se um dos melhores jogadores do Brasil, como profetizara o técnico Ricardo Diez. Um atropelamento quebrou-lhe as duas pernas, somando 39 fraturas e a tíbia exposta na direita. O motorista que o atropelou acelerou o carro e fugiu. Quando o acidente aconteceu, Danilo já era um senhor jogador. O “Olívia Palito”[3], como os amigos o chamavam por causa da silhueta. Magro vara-pau, mas craque dos bons. Na época, o América estava sob o comando de Diez e Danilo transitava entre o time de aspirantes e o profissional. “O América está fazendo o maior center-half do Brasil”. Diez inflava o peito com indisfarçável orgulho para falar do jovem talento[4].


Kim e Amaro (Sport Illustrado)

O acidente foi assim: o jovem meio-campista, que ambicionava ser centroavante, voltava da comemoração com amigos na zona boêmia da Lapa, no Rio. Festejavam o convite que Danilo recebera de Flávio Costa para integrar-se à seleção carioca[5]. O fato é que, na Praça da Bandeira, bem em frente ao Corpo de Bombeiros, Danilo tentou pegar um bonde em movimento e foi atingido por um automóvel. Na verdade, foi tanta dor que ele nem se lembrava da pancada que levara. “Desci do ônibus e fui correndo para pegar o Malvino Reis [um bonde que passava na porta do América], quando senti a pancada e a vista escureceu. Ao dar por mim, vi a perna partida, virada para trás. Mas enquanto me curava aproveitei para por a cuca no lugar. No fim, até que a fratura me fez um bem danado.”[6]

Quando acordou[7] após o violento baque, Danilo estava cercado de um sem número de curiosos e preocupados. A maioria, como sempre, curiosos. Não sentia dor, apenas dormência nas pernas. Desmaiou novamente e quando acordou já estava no hospital, ouvindo a conversa velada dos médicos de que, provavelmente, nem andar poderia mais. Restou-lhe o choro calado. Contido, mas com esperança sutil.

Foram 18 meses com as duas pernas engessadas, muita reeducação muscular, o apoio das muletas e o carinho dos pais Alcídio e Edith Alvim, que sempre cercaram o filho de cuidados. As irmãs mais novas, Délia e Dalva [que se tornaria nadadora do América na mesma época], estavam sempre por perto. Nada faltou para que Danilo tivesse a garantia de que voltaria a andar e, inclusive, ao futebol. E voltou mesmo. Em 1940. Após uma recuperação espantosa para os parâmetros médicos da época. Na rua Campos Sales, no campo do seu América, retomou o contato com a bola. No início, tímidas embaixadas, um chute ali outro lá. Precisava, contudo, correr. Arriscou um pique e percebeu que a perna direita não dobrava como antes.

O médico do clube querendo saber de Danilo se tudo estava bem. Danilo respondendo que sim. Mas ele sabia que não. E sempre escondeu o problema. Não queria deixar o América, time do coração dele e do pai. Esforçava-se, portanto, para evitar que se desfizessem dele. Não corria tanto, mas aprimorou o estilo. Mais paradão, mais técnico. Cerebral. Exatamente como o Brasil o conheceu e, sobretudo, reverenciou. Mais se parecia com um príncipe. Talvez fosse mesmo, em vida pregressa, em encarnação anterior, quem sabe.

TIMIDEZ QUASE PAROU O JOVEM ‘PRÍNCIPE’


Antes do acidente (O Globo Sportivo 1940)

Quando garoto Danilo jogava bola [feita de meia] com a molecada num terreno baldio ao lado da estação de trem do Rocha. Estudava no Ginásio Vinte e Oito de Setembro [onde hoje há um centro politécnico do Senac], na avenida 24 de maio, número 543, para onde levava livros, lápis e, claro, a inseparável bolinha de meia. Com 15 anos, trocou a improvisada pelota por uma de couro e também calçou chuteiras para jogar no antigo campo do Garnier. Acreditava piamente ser um centroavante “fora de série”[8]. E ai de Sebinho, ex-técnico do São Cristóvão e dirigindo o Garnier, discordar do garoto. Mas ele não discordou. Constatou que o magrinho e longilíneo Danilo, com dribles desconcertantes, daria mesmo para a coisa.

O pai de Danilo, corretor de imóveis, levou a família para a Tijuca, mais precisamente para um sobrado em cima de um bar na esquina da rua Campos Sales com a praça Afonso Pena. Danilo instigou-o a levar a família para bem perto do América. Defronte ao clube seria melhor. Alcídio fez a vontade do filho na esperança de vê-lo craque do Alvirrubro, mas nada de Danilo ingressar no América. Estava, segundo João Máximo[9], sem confiança. Afinal, o América foi campeão da categoria em 1938, com um elenco que dava de dez a zero no simulacro de time do Garnier. O pai de Danilo não estava satisfeito. Fez um grande sacrifício e tanto, mais pelo filho que pelo restante da família. E Danilo preferia, contudo, as peladas na rua a bater na porta do América.


Danilo, Biguá e Jayme

Mas a timidez de Danilo tinha de ter fim. Um amigo o convidou para jogar como centromédio do time de uma fábrica de calçados da rua Mariz e Barros. Só havia peladeiro como ele. Aceitou o convite meio contrariado. Achava-se “o centroavante”. De centromédio aparecia pouco ou quase nada. Danilo era tímido, mas vaidoso. Sabia que era bom de bola. Acima da média. Terminada a pelada, Armando Coelho Antunes, o “Coelhão”, técnico do América, abordou Danilo e o intimou a trocar o asfalto pelo gramado. Mas o garoto teimou. Batia a mesma tecla: “Sou centroavante e não quero jogar como médio”. Coelhão foi paciente e sempre que o via, alertava. “Me dou por satisfeito com você de center-half, garoto. Largue estas peladas”. O pai ajudava a convencê-lo, os amigos da rua, idem. Uma hora ou outra se daria por vencido.

Não demorou. No finzinho de 1939, Danilo já era titular do time juvenil do América. No ano seguinte, foi campeão do carioca de amadores. Mal começou 1941, assistindo a um treino da seleção carioca no campo do América, Danilo acabou sendo surpreendido com um convite de Flávio Costa para que descesse da arquibancada, calçasse as chuteiras e participasse do treino do escrete do Rio. Rui Campos, centromédio titular, machucou-se e o técnico havia colocado Zarzur em seu lugar. Para completar o time reserva, Costa aproveitou Danilo, que agradou e foi convocado pelo entusiasmado técnico.

Festa dos Alvim, mas não mais no sobrado da Campos Sales. Alcídio mudou-se com todos para Niterói. Apenas a mãe do futuro craque estava receosa. Afinal, futebol profissional tem lá suas mazelas. Entram para valer. E Danilo, aos olhos de dona Edite, era ainda um garoto magrinho, “indefeso”, “imaturo” para cumprir jornada tão ousada. De Campos Sales à Niterói era mesmo uma jornada e tanto. Ônibus até a Praça Quinze e depois a travessia de barca pela Baía de Guanabara.


Danilo (Sport Illustrado)

Foi na então capital fluminense que Danilo serviu ao Exército com outro craque de primeira grandeza que viria a ser seu grande amigo fora das quatro linhas: Zizinho, que já era considerado genial e também fazia parte do escrete de Flávio Costa. Como o treinador da seleção carioca queria a contraprova do futebol de Danilo, testou-o mais uma vez. Marcaria justamente o amigo Zizinho. Não se intimidou com o jogo sensacional de Ziza e saiu de campo para comemorar. Flávio Costa estava convencido de que Danilo também era um fora de série. Que geração aquela…

Costa fez, porém, uma ressalva: “Quero você mais tarde na concentração da seleção”. Danilo respondeu um “sim senhor” e foi para a farra na Lapa com os amigos. Já pensou, dividir o mesmo espaço com Tim, Domingos da Guia? Mas veio o acidente na Praça da Bandeira e acabou com o sonho do garoto Danilo.

Todo mundo o visitava no hospital Gaffrée Guinle, na rua Mariz e Barros, ali mesmo na Tijuca. No dia seguinte ao atropelamento, o próprio Flávio Costa foi consolá-lo junto ao leito. Dizia para que não desistisse, mas Danilo, que tanto custou para entrar no América devido à timidez e insegurança, convenceu-se de que era o fim. Ricardo Diez, que o viu brotar em Campos Sales, também o visitava e comentava com jornalistas que Danilo seria o “maior centromédio desta terra”. Mas nenhum estímulo, palavra amiga mudava sua desesperançada opinião. Implicava até com o sobrenome: “Ao ‘Faria’ eu renuncio: só serve para gozação, já que é, também, um verbo fantasiado de substantivo”, respondeu aos médicos, que ouviam a lamúria do Danilo e, num átimo respondiam aos parentes e amigos do jovem um diagnóstico desesperançado: “Se esse rapaz tornar a jogar é bem possível que estejamos diante de algum milagre”. Eles não estavam errados. Danilo quebrara as duas pernas, e em várias partes, ou seja, em 39 lugares. Foi o primeiro grande desafio de sua vida, como contou ao repórter Geraldo Romualdo da Silva[10], em uma série de reportagens biográficas, em 1974: “Aquele calor de esperança que me afagava, havia desaparecido. E não era para menos. Afinal, quem poderia adivinhar que jogador de perna quebrada em muitos lugares, numa época em que menisco costumava destruir carreiras fascinantes como a de Adolfo Milman, o grande Russo, do Fluminense, tivesse sorte e tutano para dobrar tanto azar?”


Acervo Pessoal

João Máximo[11] o biografou melhor que qualquer outro jornalista ou pesquisador e pinçou minúcias da luta de Danilo, do América e dos médicos para recuperar a saúde do jovem jogador: “O tratamento a que Danilo se submeteu, orientado pelo Dr. Caio do Amaral, compreendia, após a retirada do gesso, uma série de exercícios especiais, massagens e radioterapia. O América pôs todos os recursos do seu modesto Departamento Médico à disposição do centromédio que queria ver recuperado, talvez para jogar ao lado de Oscar e Laxixa no time titular. No princípio, seu Alcídio saía de casa com Danilo, todas as manhãs, e ia ao clube acompanhar de perto o tratamento. Depois, viu que nova mudança seria melhor para todos, e a família voltou para a Tijuca, desta vez indo morar na Travessa São Vicente, bem atrás do campo do América.”

Gentil Cardoso acabara de assumir o comando técnico do América no lugar de Ricardo Diez e precisava diminuir os gastos do clube. Danilo estava na lista de dispensas. No topo dela, assinala-se. Mas nada a ver com o fato de estar aquém do que poderia fazer antes do acidente, quando se achava um “grande” centroavante. Gentil não descobriu o “segredo” de Danilo. Sequer referiu-se à perna direita dele, o motivo do “segredo”. O caixa do clube estava vazio mesmo e a limpa no elenco era inevitável. Danilo tentara ingressar no Fluminense, mas corria um boato de que sofria do pulmão. O fato é que as portas do estádio das Laranjeiras foram fechadas para ele.


Acidente com Délia e Dalva (O Globo Sportivo)

Martim Silveira[12], ex-craque do Botafogo e capitão da seleção nas Copas de 34 e 38, treinava o Canto do Rio quando decidiu convidar Danilo para jogar pelo clube de Niterói. Já corria o ano de 1942. Final do ano, mais precisamente. O garoto estava deprimido, mas tentou a volta por cima. Aliás, Martim intercedeu junto a Gentil e aos cartolas do América para que o liberassem o quanto antes. Um ano de empréstimo estava de bom tamanho. Martim fez um trato com Danilo. Deu três meses para que recuperasse a boa forma que tanto impressionou torcedores, dirigentes e jogadores do América antes do trágico acidente da Praça da Bandeira. Não haveria contrato assinado, mas o rapaz receberia um salário de 300 mil réis. Caso se recuperasse, antecipara Martim a Danilo, a prioridade de registro na Federação de Futebol seria do Canto do Rio. Danilo, obviamente, topou. Na manhã seguinte atravessou a Baía de Guanabara rumo a Niterói, convicto de que venceria todos os obstáculos físicos e, talvez os mais difíceis de superar, os da alma. A paixão pelo futebol era tudo. Era onde podia se agarrar para vencer. “Era uma alucinação. No fundo, é isso aí, foi o toque que me conduziu ao ponto mais alto da minha felicidade”. O América até tentaria emperrar a ida de Danilo, em 1943. Tinha o passe dele. Desdenhara o garoto, que mal se livrara dos gessos e talas em ambas as pernas. Não venderam o passe de Danilo, mas o emprestaram ao Canto do Rio, que já não tinha mais como treinador Martim e sim Orlando Fantoni. “Emprestado pelo América, tive de enfrentá-lo. Me senti mal antes do jogo e pedi ao técnico, Fantoni, que era também centroavante, que não me escalasse. Mandou-me trocar de roupa e empurrou-me para dentro do campo [do estádio Caio Martins, em Niterói]. Fiquei 15 minutos sem ver a bola. No final, vencemos de 2 a 1.”[13]

Pelo Canto do Rio, Danilo não ganhava jogos do campeonato carioca de 1943 — a equipe de Niterói terminaria em penúltimo lugar na tabela —, mas se destacava no time. A mais pura verdade. Caso contrário, Flávio Costa não o chamaria novamente para compor uma linha média na seleção carioca com Ivã e o bastião rubro-negro Jaime de Almeida. Era, enfim, a tão desejada e não menos surpreendente volta por cima. Ao lado dos companheiros da linha média, de Zizinho, o amigo e compadre de Niterói, de Heleno de Freitas e de Ademir de Menezes, Danilo Alvim sagrou-se campeão brasileiro pelo Rio de Janeiro. O destino lhe reservava, porém, o retorno ao time da rua Campos Sales, levado pelo mesmo Gentil Cardoso, arrependido e, evidentemente, constrangido.


Acidente com Ricardo Diez (O Globo Sportivo 1941)

O América figurou mal na tabela do campeonato de 1944. No ano seguinte, outro papelão. Até conquistou um torneio início, mas era pouco. Muito pouco para a grandeza do América e também para Danilo, que já demonstrava impaciência. Chegou ao ponto de trocar pontapés com Zizinho, logo o Ziza, seu grande amigo, durante um clássico contra o Flamengo. O pai o repreendeu. Disse que futebol não era simplesmente jogo para macho. Era muito mais. Era para ser praticado por craque. E craque, todos sabem, tem de ser sábio, nunca um cabeça-de-bagre. Alcídio não admitia os dois amigos se engalfinhado nos gramados. Eram craques genuínos e muito amigos mesmo. Disputavam peladas juntos em Niterói quando Danilo serviu o Exército na cidade. Aproximaram-se naquele momento e não se desgrudaram mais. Tanto que, anos depois, tornar-se-iam compadres. Talvez, naquela metade da década de 1940, os dois estavam na seletíssima lista dos melhores do momento no futebol brasileiro. E como disse Ricardo Diez ao Danilo e ao repórter que o entrevistara quatro anos atrás, para ser craque era preciso calma, serenidade, leveza. Danilo nunca poderia se desfazer dessa qualidade. Ainda mais em um arranca-rabo com um amigo do peito como Zizinho.

Os dias de Danilo no América estavam contados. Quem muito lamentaria era um menino filho de um conselheiro do clube e ardoroso fã do centromédio. O nome do garoto ficaria imortalizado na história do futebol alguns anos depois, mas ninguém poderia imaginar isso naquele instante, nem mesmo o próprio menino Mário Jorge Lobo Zagallo, que desejava somente que o seu ídolo permanecesse em Campos Salles.

***

Na terceira reportagem da série DANILO, 100 ANOS, a chegada triunfal ao Vasco do jovem ex-craque do América e, após muitas conquistas e notoriedade, uma amarga despedida de São Januário.

 

[1] A.D.. “Danilo, a promessa real do football brasileiro”. O Globo Sportivo: Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1940, p.9.

[2] Nota do autor: como consta em sua ficha cadastral no Vasco da Gama. Porém Danilo, em várias entrevistas, sempre afirmara ter nascido em 1921.

[3] SILVA PINTO, José Luiz da. Campeão da magreza e da técnica. Reportagem publicada pela revista O Globo Sportivo, em 14 de julho de 1951, p. 15.

[4] SILVA, Geraldo Romualdo da. “Existe um crack perfeito? Danilo é um milagre da natureza”. O Globo Sportivo: Rio de Janeiro, 2 de janeiro de 1948, pp.8-9.

[5] CASTRO, Marcos de, e MÁXIMO, João. Gigantes do futebol brasileiro. Editora Lidador, Rio: 1965, p. 231.

[6] ANDRADE, Aristélio. “O príncipe perfeito”. Placar/ Ed.Abril: São Paulo, 26 de janeiro de 1979, pp.30-3.

[7] SILVA PINTO, José Luiz da. “Campeão da magreza e da técnica”. Reportagem publicada pela revista O Globo Sportivo, em 14 de julho de 1951, p. 15.

[8] CASTRO, Marcos de, e MÁXIMO, João. Gigantes do futebol brasileiro. Editora Lidador, Rio: 1965, p. 232.

[9] Idem, p. 233.

[10] SILVA, Geraldo Romualdo da. “O príncipe Danilo [I]: Jogou futebol-arte, agora ensina futebol total”. Jornal dos Sports: Rio de Janeiro, 25 de setembro de 1974, p.12.

[11] CASTRO, Marcos de, e MÁXIMO, João. Gigantes do futebol brasileiro. Editora Lidador, Rio: 1965, p. 237.

[12] SILVA PINTO, José Luiz da. “Campeão da magreza e da técnica”. Reportagem publicada pela revista O Globo Esportivo, em 14 de julho de 1951, p. 16.

[13] A.D.. “Dos cães aos craques, o paraíso do incrível”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 de outubro de 1986, p.46.

FLUMINENSE 1980, COM A BENÇÃO DE JOÃO DE DEUS

por Paulo-Roberto Andel


Quarenta anos depois, o Fluminense de 1980 desperta saudades dos cinquentões em diante. E neste 30 de novembro, é o aniversário de um inesquecível time tricolor, campeão diante de adversários fortíssimos. 

Naquele tempo o Flu vivia uma crise. Não tinha dinheiro e vinha de três anos sem conquistas, algo até então raro na trajetória tricolor. Para piorar, fez uma péssima Taça Guanabara (naquele ano, uma competição separada do campeonato carioca). Por fim, perdeu seu treinador, Zagallo, que foi para o Vasco dizendo que queria ser campeão. 

Ao Tricolor, restou a reconstrução. Um time com vários jogadores jovens, todos formados nas divisões de base do clube, somados a dois reforços: Gilberto, excelente meio campista que veio do Atlético Goianiense mas tinha começado no Botafogo, e Cláudio Adão, um craque mas de futuro incerto depois de praticamente ter sido enxotado de Botafogo e Flamengo. Para liderar a equipe, ficou Edinho, craque de Seleção.

Paulo Goulart, Edevaldo, Tadeu, Edinho e Rubens Galaxe; Deley, Gilberto e Mário; Robertinho, Cláudio Adão e Zezé. O treinador, Nelsinho – uma fera de Madureira e Flamengo nos anos 1960. Mas é justo falar de Mário Jorge, jovem ponta-direita que jogou boa parte do campeonato no lugar do contundido Robertinho.

O Fluminense começou sua campanha longe das manchetes do favoritismo, mas a garotada foi ganhando espaço. Um ponto marcante da jornada foi a goleada por 4 a 0 sobre o Botafogo, devolvendo o placar do ano anterior e com uma atuação de gala de Cláudio Adão, autor de dois golaços. Depois o Flu empatou com o poderoso Flamengo campeão brasileiro (1 a 1) e virou em cima do não menos poderoso Vasco de Roberto, Guina, Paulo Cezar Caju e Pintinho (2 a 1). O Tricolor e o Cruz-maltino terminaram empatados no turno e foi preciso um jogo extra para a decisão do turno. Deu Flu na disputa de pênaltis, 4 a 1 com o brilho do goleiro Paulo Goulart nas cobranças, garantindo o time na final do campeonato.

No segundo turno, a equipe tricolor fez uma campanha irregular. Mesmo assim, não perdeu para os chamados três grandes, empatando com Flamengo e Botafogo em 2 a 2, mais o Vasco em 3 a 3. O Flamengo sonhava com a final mas o Serrano de Anapolina lhe impôs uma vitória histórica e o Vasco faturou o segundo turno. No final das contas, o Flu engoliu a seco mesmo foi diante do America, que o derrotou nos dois turnos. 

A partida final foi disputada numa tarde de chuva no Maracanã. A torcida do Fluminense repetiu o canto de João de Deus, cantado em boa parte da competição – era o tema de homenagem ao Papa João Paulo II, que veio ao Brasil naquele ano. O Vasco tinha um timaço mas era difícil encarar a garotada tricolor. Aos 22 minutos do segundo tempo, Edinho marcou de falta o gol que garantiu o título que quebrou a sequência rubro-negra no futebol carioca. O outrora desacreditado Cláudio Adão foi o artilheiro do campeonato, e Edinho foi o craque do começo ao fim, mas o Fluminense tinha muitos recursos: Mário e Zezé eram rápidos, com suas canhotas mortais e bons chutadores; Robertinho e Gilberto eram extremamente habilidosos e, para completar, o Brasil via um craque de grandes passes e lançamentos surgir no pedaço – Deley, fera! Foi o último campeonato de Cleber, tetracampeão carioca pelo Fluminense. 


Eram tempos de Maracanã lotado, clássicos para mais de cem mil torcedores, a monumental nuvem de pó de arroz e um maravilhoso time que encarou seus grandes rivais olhando de cima. O Canal 100 mostrava tudo antes das sessões de cinema. João Saldanha comentava, Jorge Curi e Waldyr Amaral narravam, as bancas de jornais ficavam alinhadas às segundas-feiras – cheias de gente espiando as manchetes do futebol carioca. E a decisão de 1980 também foi marcada pela despedida de dois ícones tricolores, que também são admirados por todo mundo até hoje: Cartola, a maior expressão da história do samba, que morreu no dia do título tricolor, e Nelson Rodrigues, cuja última crônica (ditada para seu filho, o jornalista Nelsinho Rodrigues) foi a da celebração da conquista – o maior dramaturgo da história do país morreria 21 dias depois da volta olímpica tricolor. 

Quarenta anos depois, o jovem e desacreditado Flu de 1980 é uma página eterna da história do clube. Uma equipe de enorme talento individual, muito empenho coletivo e um jovem craque de 25 anos que liderava o time de ponta a ponta, desarmando, marcando, arrancando para o ataque e fazendo gols: Edinho. Ele foi uma grande herança da imortal Máquina Tricolor e um dos maiores zagueiros da história, não só do Fluminense mas também de todo o futebol brasileiro.

Dos campeões de 40 anos atrás, há muitas imagens, mas a mais significativa é a do treinador Nelsinho à beira do campo no dia do título. Sereno, protegido da chuva por um capuz plástico no banco de reservas, ele mostrou ali a mesma categoria que desfilou antes nos gramados cariocas. Simples e tímido, mas de uma competência enorme. 

@pauloandel